sábado, 19 de novembro de 2011

Relembrando - Traços e Cartas Que Esboçaram o Processo de Redemocratização do Brasil Nos Anos 70

10 jun 2011
Felipe Torres Bueno - Lailiane Freitas Moreira - Laiza Ferreira Kertscher.

“Procuro dar o meu recado através do humor.
Humor pelo humor é sofisticação, é frescura.
E nesta eu não estou: meu negócio é pé na cara.
E levo o humorismo a sério.”
Henfil 

Resumo: Com o período da redemocratização do Brasil no final da ditadura militar como plano de fundo, esse artigo busca analisar as crônicas e charges de Henfil publicadas na revista ISTOÉ em 1977. O cartunista está entre os maiores – senão o maior – nomes do desenho humorístico brasileiro e sua importância no processo de transição democrática do país é inegável. Através de traços tortos, metáforas, disfarces na linguagem e muito humor, Henfil construiu uma das mais significativas formas de oposição ao regime militar. Ao dar voz ao personagem Ubaldo o paranóico e nas crônicas Cartas a mãe, o cartunista conseguiu driblar a repressão e discutir pensamentos e ideias abafadas pela ditadura. O estudo e a análise dos assuntos retratados por Henfil ajudam a compreender como se deu o desfecho da ditadura militar no Brasil, até chegarmos ao período democrático.

Palavras-chave: humor – ditadura – charge – crônica

Abstract: Using Brazilian redemocratization period at the end of military dictatorship as background, this article pursuit to analyze Henfil’s chronics and cartoons published in ISTOÉ magazine in 1977. The cartoonist is among the biggest – if not the biggest – names in Brazilian humorous drawing and his importance in the process of democratic transition of the country is undeniable. Through crooked lines, metaphors, disguises in language and a lot of humor, Henfil built one of the most significant opposition ways to military rule. By giving voice to the character Ubaldo the paranoid and by the chronics Letters to Mom, the cartoonist managed to circumvent the repression and discuss thoughts and ideas stifled by the dictatorship. The study and analysis of those issues portrayed by Henfil help to understand how was the outcome of military dictatorship in Brazil, until we get to the democratic period.

Palavras-chave: humor – dictatorship – cartoons – chronics

Introdução
A democracia como conhecemos e como o mundo hoje amplamente discute teve ao longo dos tempos entraves em seu exercício. Esse artigo visa resgatar dados para reconstruir a imagem de um período da história que ficou conhecido pela sua intransigência e suspensão dos direitos dos cidadãos. Os governos de cunho antidemocrático faziam parte do cenário político na América Latina. No Brasil, a ditadura militar teve início em 1964 e durou até 1985, mas deixou para trás um período com muitas lacunas. Ao partir desse problema de pesquisa, esse trabalho busca completar uma parte desse complexo quebra-cabeça, agravado pela forte censura praticada na época. A pesquisa em livros, artigos e documentos em geral revelou uma parte pequena da população, que apesar de reprimida, ainda se colocava contra o autoritarismo. Recolher o discurso da oposição se fez importante no trajeto da construção do artigo.

Nesse contexto, destaca-se com um dos mais notáveis integrantes dessa oposição, que representou com louvor a opinião e ideias compartilhadas por muitos, o cartunista Henfil. Sua obra, bem como sua importância política e na manifestação da opinião de uma parte da população, foi delimitada como objeto de estudo dessa pesquisa. De seu extenso trabalho em jornais e revistas, optou-se pela análise de suas charges e crônicas publicadas na revista ISTOÉ, já no período de distensão política do país, no final dos anos 70. Através de metáforas, ironia e um humor ácido, Henfil expunha ideias e dizia o que grande parte da população engajada na luta pela democracia gostaria de poder dizer. Com isso, um dos objetivos desse trabalho é analisar como essa postura irreverente de Henfil se posicionava contra o autoritarismo. O primeiro ano de publicações semanais de Henfil na ISTOÉ, 1977, foi escolhido como período a ser estudado, ano em que a censura estava menos ativa e a anistia dos perseguidos políticos já era discutida.

Preservar a memória é algo importante na medida em que serve de instrumento para se pensar na sociedade e nas mudanças ocorridas nela. Nesse percurso pesquisadores encontram cotidianamente dificuldades no acesso a materiais que relatem o objeto de estudo. Durante a pesquisa nos arquivos originais da revista ISTOÉ da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa, em Belo Horizonte, Minas Gerais, foi constatado que em seu acervo faltavam peças importantes para a construção do quebra-cabeça. Várias edições da revista do ano de 1977 não constam mais no arquivo da biblioteca, e delas apenas restaram vestígios como capas rasgadas e páginas desprendidas. Das poucas edições que ainda restavam, foram feitas fotocopias das páginas originais das publicações de Henfil para análise e pesquisa.

Além dos textos de Henfil na ISTOÉ, o principal norteador para a construção da pesquisa foi o livro “O rebelde do traço: a vida de Henfil”. O livro lançado em 1996 traz a trajetória do cartunista, contada por Denis de Moraes, que descreve os principais fatos da vida e da obra de Henfil. O também cartunista Márcio José Melo Malta é outra importante referência para os estudos, e suas pesquisas, bem como o livro “Henfil: o humor subversivo” contribuíram para a construção do artigo. Outras pesquisas previamente realizadas também colaboraram para o conhecimento sobre a vida de Henfil.

Para contextualização histórica, serviram de apoio as pesquisas realizadas por Cândida Emília Borges Lemos sobre o período da ditadura militar e, principalmente, sobre a posição da imprensa no período. Obras da jornalista Ana Maria Bahiana e do historiador Boris Fausto também foram de grande importância para a compreensão da situação política em que se encontrava o Brasil. Para uma melhor compreensão sobre a vida de Henfil, que teve influência fundamental em seu trabalho, serviram como base os documentários “Três Irmãos de Sangue”, dirigido por Ângela Patrícia Reiniger, e “Henfil Plural”, idealizado pela TV Cultura.

De Ribeirão das Neves a ISTOÉ
Em 1944 o Brasil presenciava o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas e o restabelecimento da democracia, quando, em Ribeirão das Neves, Minas Gerais, nascia Henrique de Souza Filho (1944-1988), o Henfil. Filho de Henrique de Souza e Maria da Conceição e criado sob a rígida moral católica, os primeiros traços foram feitos ainda criança, quando desenhava santos para sua mãe. Poucos anos depois de seu nascimento, “Henriquinho”, como era chamado, se mudou com a família para a capital mineira, onde deu os passos iniciais para a futura carreira de cartunista e teve os primeiros contatos com questões sociais e políticas (MORAES, 1996).

Henfil e seus dois irmãos, o sociólogo Herbert de Souza (Betinho) e o músico Chico Mário, compartilhavam de uma doença hereditária que incapacita o corpo de controlar sangramentos e compromete a coagulação sanguínea, a hemofilia (MALTA, 2011). A doença trouxe complicações para a vida dos irmãos, mas ao mesmo tempo, deu à eles mais vontade de viver e reforçou outra herança, o sentimento de indignação com a injustiça, herdado de Dona Conceição.

Henfil teve seu primeiro cartum publicado aos 17 anos, em um periódico da Juventude Estudantil Católica (JEC), onde começou a desenvolver sua visão política. Depois, com ajuda de Betinho, conseguiu o emprego de revisor da revista Alterosa e foi lá que percebeu sua verdadeira vocação de cartunista, enquanto divertia a equipe ao fazer desenhos pornográficos. Foi nessa época também que Henrique Filho passou a utilizar a corruptela de seu nome, Henfil (MORAES, 1996). A partir daí, ele passou a desenhar charges para a revista e criou dois dos seus mais conhecidos personagens, Os Fradinhos. O frade baixinho, que representava a esquerda, uma denuncia da hipocrisia dos poderosos e o frade cumprido, o oposto, pois fazia uma paródia do autoritarismo.

Depois vieram outros personagens, que sempre na fronteira do atrevimento, criticavam o duro período da ditadura que vivia o país, como a talvez mais conhecida de suas criações, Graúna. Henfil também passou por um dos críticos e bem humorados veículos de oposição na imprensa, o tablóide O Pasquim, onde desenhou por muitos anos. Bahiana (2006) inclui Henfil no grupo que ficou conhecido como “patrulheiros ideológicos”. Na segunda metade dos anos 1970, aparentemente, toda a cultura, a mídia e a intelectualidade brasileira era de esquerda. Com isso, algumas pessoas desse grupo, mesmo que fossem contra a ditadura, faziam uma espécie de “vistoria ideológica”, para fiscalizar se os outros membros da oposição não haviam passado do limite.

Cada personagem criado por Henfil retrata uma frente de luta de seu criador, que junto ao seu humor afiado, representou uma das principais manifestações da oposição do período militar. Outro personagem famoso, Ubaldo o paranóico, tinha suas charges publicadas ao lado das crônicas que Henfil intitulava Cartas a mãe, que inicialmente foram publicadas no Pasquim, mas em março de 1977 passaram a ser um item semanal da revista ISTOÉ. Lemos (2008) descreve o nascimento da revista em 1976, durante o processo de abertura política, e portanto, com a tesoura da censura menos ativa. A ISTOÉ apresentava uma visão mais à esquerda e reunia um rol de jornalistas veteranos, com artigos assinados, em que eram manifestadas opiniões voltadas para a busca pela democracia.

Foi nesse contexto em que eram publicadas as Cartas a mãe, crônicas na qual Henfil manifestava idéias políticas sobre o regime, como se conversasse com sua mãe. A figura de Dona Conceição era usada como um escudo, pois segundo o próprio Henfil, ninguém poderia se intrometer em uma relação de filho pra mãe (REINIGER, 2006). As crônicas e as charges de Ubaldo resistiam através metáforas, jogos de imagens e disfarces excessivos de linguagens, mas durante os sete anos de sua publicação, representaram um alívio e um fio de esperança para os engajados na luta pela democracia (MORAES, 1996).

 A paranóia de Ubaldo: o retrato do medo no Brasil
Ao partir de uma análise comportamental das pessoas em pleno regime ditatorial, Henfil cria um personagem baseado na onda de medo em que a população vivia. É a partir da observação que “Ubaldo o paranóico” nasce. Visto isto, a identificação de parte dos brasileiros com a figura cômico-trágica do quadrinho é inevitável.  Com um toque de humor ácido a tirinha passou a integrar às suas crônicas, Cartas a Mãe, que eram publicadas semanalmente pela revista ISTOÉ.

Nos textos de Henfil, seja numa leitura de seus desenhos ou mesmo nas crônicas, era possível constatar um discurso de esquerda, de posicionamento contrário à ditadura, bem como as conseqüências por ela trazidas. Não satisfeito com esse quadro opressor, o cartunista e articulista passa a denunciar a censura do governo militar, a intransigência e tortura, a forte campanha de alienação das massas através de falsas propagandas do governo e a desigualdade social gerada por um imbróglio modelo desenvolvimentista.

Criado em 1975, numa parceria com jornalista Tárik de Souza, Ubaldo foi inspirado em seus criadores e em tantos outros intelectuais da época. Características de Tárik – a barba e o cabelo comprido – e dele próprio – como o hábito de andar de sandálias de couro, para não apertar os dedos dos pés(MORAES, 1997, p.219). Assim, foi assimilada no quadrinho a personalidade de Henfil e Tárik, como a forma de agir e a paranóia obsessiva de perseguição frente às situações recorrentes em relação ao terror da tortura. As cenas sempre apresentam a figura da charge em uma situação de medo eminente. Sobre esse episódio Souza relata:

Ambos nos acusávamos de paranóicos – e não faltavam razões de todas as ordens para que estivéssemos certos. (…). Até que resolvemos transformar num personagem de papel e traço essas inquietações comuns. Naquele tempo, os arrastões eram feitos pelos militares, que já manifestavam preferência tétrica finais de semana. Muitos amigos desapareceram assim. (SOUZA, 2006: 8).

Desta forma, Henfil, ao desenhar charges como Ubaldo traz a tona muitas características da sociedade que vivia sob a ditadura, e satiriza o fato do grande temor de todos. Ubaldo não denuncia o regime e nem faz nada que possa ser considerado revolucionário, apenas receia ser perseguido e reprimido, para tanto em nenhuma charge ele cria uma situação que possa colocá-lo em oposição ao regime militar. Ao contrário, ele evita palavras de ordem como constituição, protesto, civil, diálogo, parada, entre outras. Além de sempre se precaver e fugir de pessoas ligadas às ideias da redemocratização. Ele vive uma constante paranóia de perseguição, fato que o impede de expor livremente suas opiniões e que o coloca como vítima do regime.

O traço do personagem é simples, não há detalhamento rebuscado dos braços, cabelos, pernas, roupas e não explora a ambientação do cenário. A personificação da figura do paranóico está manifestada no olhar, na expressão facial. A técnica do desenho explora os movimentos, algo importante para se dar dimensão do posicionamento de Ubaldo frente às situações de pensamento antagônico à repressão.

Bandas, cavalarias, e… censura?
Figura 1 - Charge do dia 7 de setembro
de 1977 (ISTOÉ, nº 37, p. 82)

Diferente dos cartuns, as charges nem sempre são divididas em quadrinhos. E não era diferente com as histórias de Ubaldo o paranóico, em que muitas vezes suas imagens eram dispostas sem organização definida. Mas havia casos em que Henfil utilizava do quadrinho como um recurso adicional para sua charge, para melhor demonstrar mudanças na atitude do personagem ou definir cada quadrinho como uma cena distinta.

E uma desses casos foi na charge do dia 7 de setembro de 1977 (ISTOÉ, nº 37, p. 82). No dia em que a independência do Brasil completava 155 anos, Henfil não pôde deixar tornar burlesca a paranóia de Ubaldo também na data comemorativa. Logo nos primeiros quadrinhos, o personagem demonstra com empolgação seu desejo de ir ao desfile de comemoração da independência do país. Ubaldo também mencionou seu apreço por itens característicos da parada, como as bandas, a cavalaria e os tanques.

Mas, logo em seguida, Henfil usa um quadrinho completamente em branco, sem qualquer traço. Uma cena que visualmente não diz muito, mas que no contexto histórico do período pode ter vários significados. Depois da demonstração do interesse do personagem por um desfile de exaltação ao Brasil, o quadrinho em branco pode significar a censura ao próprio sentimento nacionalista de Ubaldo. A censura prévia da palavra escrita e das imagens publicadas e publicáveis, através do decreto-lei no. 1.077 de 26 de janeiro de 1970, proibia sumariamente qualquer manifestação considerada contra o regime, tais como menções positivas que pudessem ser tomadas como divulgação de indivíduos considerados inimigos do governo vigente ou vistos como ameaça a sua soberania (BAHIANA, 2006).

Embora em 1977 o Brasil estivesse às vésperas da abolição da censura, Henfil satiriza o sentimento de privação das exposições de ideias contrárias ao regime que ainda preocupava os opositores. Ubaldo, que sempre prenunciava um perigo eminente, teme que sua manifestação de interesse por itens que exaltem o nacionalismo, seja interpretada como uma provocação e logo desiste da ideia de participar do desfile.

Uma conversa com o presidente
“Dona Maria de Deus!”. Foi acompanhado dessa interjeição que Henfil iniciou a crônica em forma de carta para sua mãe, publicada no dia 7 de setembro de 1977 (ISTOÉ, nº 37, p. 82). Nela, o cartunista disse ter acabado de chegar de uma conversa “de bastidores”, na qual ele teria sido convocado para discutir uma proposta com o presidente. Logo de início, já afirmou que estava disposto a trocar sua tara por pés pela volta de seu irmão no Brasil. O irmão de Henfil, como foi homenageado na canção “O Bêbado e a Equilibrista”, famosa na voz de Elis Regina, era Betinho, importante sociólogo e ativista político, que se encontrava exilado do país naquele ano.

Segundo Malta (2011), Betinho sempre serviu de parâmetro para o irmão, e seguiu seus passos na luta pela redemocratização do Brasil. A tara por pés, por sua vez, era uma paixão conhecida de Henfil. Quando pequeno, sua mãe cortava os corpos das mulheres de maiôs nas revistas, e restava ao pequeno Henfil se fixar no que sobrava: os pés das moças. E como ele mesmo se definia, acabou por se tornar o maior tarado por pés (MILAN e GUERRA, 2009). O humor, elemento essencial nas crônicas e nos quadrinhos de Henfil, pode ser notado quando ele brincou ao dizer que não sabe se o irmão valeria esse sacrifício, mas disse que depois pediria o habeas corpus. A garantia constitucional, que na época estava suspensa pelo Ato Institucional nº5, é mais uma alusão à luta pelos direitos democráticos do país.

A tara bem como a coleção de pares de sapatos foram usadas como representação de algo de grande importância para Henfil, mas que ainda assim ele ofereceu em troca da volta do irmão exilado para o país. Ao usar como exemplo uma hipotética conversa com o então presidente Ernesto Geisel, cujo nome não é citado, Henfil se mostrou engajado na luta pela anistia política. Os perseguidos políticos eram representados na crônica pela figura de Betinho. Luta pela qual Henfil não hesita em trocar seus “valiosos sapatos” e disse ter entregado tudo para o presidente.

A luta pela redemocratização e a posição política de Henfil ficaram claras quando, na conversa fictícia, o presidente colocou algo no bolso de Henfil e disse ter devolvido o poder aos civis. Henfil logo afirmou não ser o representante ideal para os brasileiros graças a elementos estrangeiros e capitalistas que sempre estiveram presentes em sua vida. Em sua justificativa, ele diz que toda essa influência externa, além de não lhe dar legitimidade para ser considerado um representante dos brasileiros, tornava ilegível toda a sua intelectualidade. O cartunista ainda citou exemplos da cultura pop, em sua maioria, tipicamente norte-americana que influenciou a ele e a outros jovens da época, como o rock, produtos de marcas famosas e até Walt Disney.

Por fim, Henfil afirmou ser o operário civil, o representante ideal que indicaria para o poder do Brasil. No final da década de 70, o cartunista começou a desenhar para a imprensa sindical, e quando conheceu a liderança que estava mudando os rumos do sindicalismo no Brasil, o então metalúrgico Lula (Henfil: Filho Do Brasil, 2008). Essa sua fase de militante de esquerda levou a fundar, junto com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o PT (Partido dos Trabalhadores) (FENAE, 2005).

Avanços e retrocessos da distensão política 
O final da década de 1970 veio como a promessa de abertura política. Porém não foi só um momento de avanços nos direitos constitucionais, houve também recuos. A população brasileira estava esperançosa de que enfim o país pudesse respirar e agir com naturalidade ao expor suas ideias. O caminho para esse resultado foi complicado e representou tensões de várias partes. O povo que ansiava pela redemocratização, a facção linha dura da ditadura que não queria rachar com o regime ditatorial, e a linha branda dentre os militares, conhecida como o grupo Sorbonne, os responsáveis pela viabilização do retrocesso do governo militarista (LEMOS, 2009).

Figura 2 - Charge do dia 14 de setembro de 1977 (ISTOÉ, nº 38, p. 86)

O cartunista Henfil em seu quadrinho do dia 14 de setembro de 1977 (ISTOÉ, nº 38, p. 86) refletiu sobre o momento de instabilidade, que ora tendia para uma abertura, ora dirigia-se para um cerco feito de leis autoritárias. Nesse impasse, o último quadro da charge traz um menino segurando um catavento, objeto com a qual o governo do presidente Geisel fez as comemorações em 1977 do dia da independência.

A figura do garotinho e seu brinquedo movido a vento representam algo que é recorrente, cíclico, que sempre volta ao um mesmo ponto. O regime militar teve seus períodos de afrouxamento e tempos de extremo rigor e intolerância. Além também de reproduzir a idéia dos regimes totalitários na Europa, como o fascismo e o nazismo, em que num momento crítico de desconfiança e temor, crianças e pessoas aparentemente inofensivas poderiam significar espiões do governo. Muitos jovens chegaram de fato a servir a esses regimes, e assim os pais tinham de ser cautelosos ao conversar sobre questões políticas sem que seus filhos ouvissem.

Algo bem semelhante nesses regimes eram a manipulação através das propagandas e a da educação, sobre isso Carvalho (2007, p. 9-10) comenta que “o fascismo perpetua-se com uma Nação submissa, sem espíritos críticos, sem vontades individuais, mas com “uma alma coletiva”. Os ideais fascistas, eram inculcados, primeiramente, nos jovens, pois se considera que as crianças, antes de pertencerem às famílias, pertenciam ao Estado.

Ubaldo sempre temeroso frente à situação do Brasil se esquivava de todas as formas das discussões a respeito dos progressos e da resistência do governo relativo à proposta de uma nova institucionalidade. Um cidadão então se dirige ao personagem e afirma que só em 1978 decidiriam sobre a ação que estabeleceria novas leis de caráter democrático. Significa aí a pugnação do governo na decisão do novo projeto político, que na figura do presidente Geisel estava associado ao “pacote de abril”, um plano de medidas para conter o avanço da oposição, o partido MDB.

As propagandas do governo e a censura à imprensa
A censura à imprensa foi instaurada junto ao golpe de 1964 com a finalidade de se autenticar o regime militar e foi instrumento de controle dos militares para se criar uma boa imagem do país. Apesar de fazer um retrato bonito de uma nação, essa imagem era ilusória. Esse processo de alienação da população dava-se por meio de proibições aos meios de comunicação em propagar o descontentamento e pensamentos contrários à ditadura. Além disso, também vetava a disseminação de filmes, livros, músicas e estudos históricos que reforçassem uma ideologia de tendência esquerdista ou mesmo qualquer possibilidade contestatória ou libertária.

A exemplo disso, Henfil, em sua crônica semanal publicada na revista ISTOÉ no dia 14 de setembro de 1977 (ISTOÉ, nº 38, p. 86), evidenciou a forma como a imprensa transmitia sua programação de teor ufanista, mais especificamente a “TV Blim Blim”, forma como o cronista gostava de chamar a Rede Globo. Ao citar o programa Globo Repórter, ele pretendia ilustrar o que seria a forte campanha do governo de criar uma visão positiva do Brasil, um país de grande extensão, de vasta natureza e de diversidade étnica. Martins explica esse esquema de legitimação do governo militar por meio dos meios de comunicação:

Em sua maioria, os meios de comunicação compartilhavam com o regime, na fase áurea do milagre econômico brasileiro, sua proposta político-econômica excludente. O governo exercia um forte controle sobre os meios de comunicação que tendiam, obviamente a apoiá-lo. Através de uma política de concessão de licenças ou registros para atuação de emissoras de televisão, jornais, revistas, etc., o governo criava uma espécie de vínculo político que, de certa forma, convertia o apoio inicial dado pelo Estado aos donos das empresas de comunicação em dividendos políticos, criando assim uma poderosa infra-estrutura no nível da propaganda ideológica. (MARTINS, 1999, p.15).

E assim o antivestibular, palavra citada para caracterizar uma sociedade que está ilhada da informação, é também a representação do falso sistema de seleção de estudantes ao ingresso do ensino superior, que cobrava nas provas um conhecimento sobre pontos da história proibidos de serem falados. Sem o acesso ao conhecimento e com a desconstrução da visão crítica através da repressão do governo à imprensa, as pessoas tinham uma visão limitada e equivocada sobre assuntos de viés político e sobre tudo o que estava acontecendo no mundo.

Henfil, ao final da crônica, fez uma desconstrução das propagandas do governo antidemocrático. Ele formulou perguntas sobre essas campanhas publicitárias e frases de ordem do momento, sejam a favor ou contrárias à ditadura. Assim, Henfil ironicamente responde com uma das campanhas do governo Geisel o que seria um povo desenvolvido. Propaganda que ficou famosa por ter criado o emblemático personagem Sujismundo, explorava a noção de que “povo desenvolvido é povo limpo”.  E segue, ao dizer que a liberdade é “uma calça velha, azul e desbotada”, em alusão ao movimento Tropicália, aos Mutantes, a Caetano Veloso e a Gilberto Gil que propuseram uma difusão da cultura.

Ao questionar o que seria inflação, ele cita o verso “Digo: não” da música “É proibido proibir”, de Caetano Veloso. “Quantos partidos existem no país?” foi a indagação que permitiu expor o quanto antidemocrático o regime era, isso estava expresso na frase da campanha do regime “Brasil: ame-o ou deixe-o”.

Ao se discutir sobre a renda per capita, a reposta não poderia deixar de ser sarcástica frente à discrepante desigualdade social que assolou o país no período de 1968-1985, “Mexa-se!” era o discurso da política nessa época para que unidos e munidos da força de trabalho os brasileiros pudessem construir um futuro promissor.

O governo também tentou inculcar na cabeça das pessoas a noção de uma nação grande, de pessoas iguais, apesar da diversidade. Dessa maneira, sobre a pergunta quantas raças formaram o Brasil, Henfil responde com uma frase do jogador de futebol Pelé, que disse que “o Brasil foi feito por nós, mas nós ainda não estamos preparados para democracia”. (citação) A propriedade do futebol nas suas inúmeras vitórias e a importância para a população brasileira levou o governo a explorar e propagar valores progressistas como, “90 milhões em ação, para frente Brasil salve a seleção!”, música sobre o êxito da seleção na Copa do Mundo do México em 1970, que reforçou o poderio do país e a idoneidade dos estadistas.

Esse jogo de perguntas e repostas se encerra com o trecho da música “Eu te amo, meu Brasil” (DOM, 1970), de uma propaganda do governo no objetivo de exaltar o país. O verso em questão é “Aí vão ver que ninguém segura a juventude do Brasil” e está em diálogo com a lição passada por Henfil sobre todas essa indagações lançadas por ele como forma de refutar o sistema do governo que propiciava uma desinformação em massa, que deixava estudantes sem memória histórica, soltos dentro de um tempo na qual eles não podem refletir.

A gente te vê por aqui
Figura 3 - Charge do dia 21 de setembro de 1977 (ISTOÉ, nº 39, p. 82)

Na charge do dia 21 de setembro de 1977 (ISTOÉ, nº 39, p. 82), Henfil mostra como nem ao assistir televisão, Ubaldo conseguia se ver livre de sua mania de perseguição. Pelo contrário, para o personagem, durante um simples momento de lazer, ele poderia ser alvo de um dos meios de manipulação do regime ditatorial. Logo no primeiro quadrinho, Ubaldo sentado em frente ao aparelho televisor, se pergunta se além de assistir a televisão, ela não poderia assisti-lo também. O personagem logo se prepara para desligar o aparelho, quando surge o logotipo da Rede Globo na tela com o seu famoso “blim blim”, que instantaneamente assusta Ubaldo.

O logotipo da Globo apareceu como uma metáfora, de um olho que observa quem o assiste. Desde sua fundação, em pleno regime ditatorial, a Globo já exercia grande influência sobre os brasileiros. Lemos (1988, p. 6) descreve o nascimento da TV Globo Rio, em 1965, ainda aliada à companhia norte-americana Time-Life. Anos depois, a Globo é nacionalizada, mas desse período ficaram o método empresarial de direção norte-americano. Com a criação do primeiro telejornal em rede brasileiro, o Jornal Nacional, a Globo foi sintonizada por todo o país e começava a criar sua supremacia sobre as outras redes de televisão. A nova rede de TV brasileira florescia sob a influência da ditadura militar, e seguia como um auxílio na divulgação para as campanhas ufanistas do governo.

Ainda assustado, Ubaldo dialoga com a televisão, e se justifica ao dizer: “Tava brincado! Tava só brincando, Doutor! (sic)” (HENFIL, 1977, p. 82). O “doutor” tão temido por Ubaldo era Roberto Marinho, então diretor-presidente da Globo. Ubaldo, ao se dar conta que também estava sendo “assistido” pela Rede Globo, logo teme a força política de Roberto Marinho e de sua rede de televisão, que assumiu um papel importante na legitimação de propostas do governo militar e foi utilizada como instrumento importante para promover idéias em favor do governo.

Henfil, Diaféria e o medo
Em uma das crônicas mais claramente direcionadas aos militares, o assunto da carta à Dona Maria do dia 21 de setembro de 1977 (ISTOÉ, nº 39, p. 82)é o medo. O temor que a população sentia de seus então governantes, mas que não podia sequer ser demonstrado. Henfil começa com justificativas à mãe, e já avisa que o que tem pra falar é algo que interessa não só aos militares, mas principalmente a todos os brasileiros. O cartunista tranquiliza a mãe, e diz que sabe lidar com situações difíceis e que não vai se envolver em problemas.

O que inspirou Henfil a tratar do assunto foi o caso de Lourenço Diaféria, cronista que foi preso e processado por ter escrito “Herói. Morto. Nós.” na “Folha de São Paulo”, em 1977. A crônica homenageava o heroísmo do sargento Silvio Hollembach, que morreu ao cair num poço de ariranhas no zoológico de Brasília para salvar um garoto. No texto, o cronista também citou o Duque de Caxias, e a menção foi considerada uma ofensa ao Exército Brasileiro pelo autoritário governo Geiseil e pelo então Ministro do Exército Silvio Frota (Folha de São Paulo, 1980). Inicialmente, Henfil descreve como a identificação com o caso lhe provocou medo, mas ele logo acrescenta e provoca, ao dizer que sentiu mesmo foi decepção ao ver que os “fortes” militares se deixaram atingir por uma simples crônica.

O cartunista sintetiza o problema ao definí-lo como a falta de aceitação dos militares para o fato de que as pessoas possam temê-los, e não apenas respeitá-los. Mas ao mesmo tempo que critica, Henfil é cauteloso em sua provocação, e usa seu humor afiado para expor uma explicação. Como se conversasse amigavelmente com os militares, ele afirma que se as pessoas os feriam, não era por não gostarem deles, mas que essa agressão era apenas um mecanismo de defesa de alguém temeroso. Medo esse que admitiu lutar contra para escrever a crônica em defesa à Diaféria, mas também para que se pudesse enfim respeitar os governantes do Brasil, sem adesismo, adulação ou oportunismo.

Muito mais do que atacar agressivamente o governo militar, as críticas de Henfil eram um forma de instigar quem lia suas crônicas e charges a refletir sobre a situação então vivida pelo país. E foi nessa linha de ponderação e com muito humor que Henfil terminou sua defesa. O cartunista propôs que, ao invés de atacarem a Diaféria com um processo, os militares lhe respondessem com outra crônica. E se ele contra-atacasse com um poema, os responderiam com outro “com todas as redondilhas e sextilhas”.

Os ventos que fazem o Brasil
Figura 4 - Charge do dia 19 de outubro de 1977 (ISTOÉ, nº 43, p. 82)

Na charge Catavento II (Final), que acompanha a crônica publicada na revista ISTOÉ do dia 19 de outubro de 1977 (ISTOÉ, nº 43, p. 82), na seção Cartas a mãe, Henfil critica a abertura econômica brasileira ao capital estrangeiro e a vinda de diversas multinacionais para o país. Essa abertura aconteceu durante o período do Milagre Econômico, que durou de 1968 até 1973, quando ocorreu a crise do petróleo. As medidas tomadas nesse período geraram um aumento exorbitante na dívida externa brasileira e acentuou a dependência do capital estrangeiro. Outras conseqüências também afetaram o país, como a enorme concentração de renda por uma parte determinada parte sociedade em detrimento da maioria. Na charge ficam explicitadas essas questões, além de criticar o uso das propagandas ufanistas, ao utilizar mais uma vez os desenhos de cataventos.

No quadrinho, o Cartunista desenha um homem de terno, que seria responsável por uma das multinacionais instaladas no Brasil. Esse personagem cobra a conta de pela utilização do vento de outro cidadão que utilizava o catavento, com a seguinte frase: “isto ser à conta do vento…” (HENFIL, 1977). Sobre o cenário econômico do Brasil na década de 1970, Fausto relata:

Um problema existente desde a fase do “milagre” residia no fato de que o crescimento econômico acelerado tinha como alavanca importante a capacidade ociosa das empresas [...]. Para continuar crescendo seria necessária ampliar o investimento, contando com novos e maiores recursos externos, pois a poupança interna era insuficiente. Esses recursos não faltaram. Eles entraram no país principalmente sob a forma de empréstimos.  Daí resultou porém o aumento da dívida externa, tanto pública como privada (FAUSTO, 2009, p. 497).

O catavento foi utilizado pela primeira vez pelo Regime Militar na década de 70, quando lançou mais uma de suas campanhas Ufanistas, desta vez com o slogan “O Brasil é feito por nós”. De acordo com Alves, outro slogan muito divulgado na década de 70 foi: “O Brasil é feito por nós”, no qual podemos perceber que o enunciador busca identificar todos os cidadãos em um mesmo espaço, dessa forma a construção do país passa a ser de responsabilidade de todos. No entanto, é possível perceber certa contradição entre a idéia de construção em conjunto (feito por nós) e o símbolo usado para representar esta construção, o cata-vento. Este é um objeto não estático que se move com a ação do vento. Pode-se então ver um “nós” simbolizando o governo e assim são eles os que fazem o país, e um cata-vento simbolizando o povo que é levado pelos ventos a fazer o que os “construtores” do país querem que seja feito (ALVES, [200-], p. 2988). A Agência Nacional de Comunicação desenvolveu uma propaganda ensinando a população a fazer um catavento verde e amarelo e convocando-a sair às ruas com seus brinquedos em punho para comemorar a Semana da Pátria.

Uma partida de futebol
Henfil, em sua crônica semanal do dia 19 de outubro de 1977 (ISTOÉ, nº 43, p. 82), escreve para sua mãe comparando a situação política da época com uma partida de futebol. O cartunista escreve como se fosse um torcedor fanático pelo seu time e com esperanças de vitória, mesmo depois de várias derrotas, mas ainda assim não consegue prever o resultado do jogo. Porém o que estava em disputa não era uma partida de futebol, e sim o futuro do país.

Em 1977 quem estava no poder era o General Ernesto Geisel, que assumiu a presidência em 1974, após o fim do milagre econômico. O general encontrou grande insatisfação de boa parte da população, e teve que enfrentar os avanços legais dos partidos de esquerda naquele momento. Devido a isso ele inicia o processo de abertura política do país, que de acordo com ele seria gradual, lento e seguro.

Durante toda a crônica o autor faz menções e utiliza expressões típicas do vocabulário esportivo. Por exemplo, ao descrever o quanto a luta pelo fim da ditadura está mais intensa em todas as regiões do país e como a “massa fiel” está cada vez maior, e demonstra com isso o grande descontentamento de parte da sociedade com o Regime.

Em determinado momento do texto, Henfil relembra as eleições de 1974 ao dizer “quantas e quantas vezes nossos gols (legítimos!) não foram anulados? Me lembro que conseguimos uma vitória limpa em 1974 e eles conseguiram anular. Pô! Ganharam da gente no tapetão! E depois mudaram as regras do jogo para evitar que chegássemos na liderança” (HENFIL, 1977). A eleição para Presidente da República ocorreu de forma indireta, sendo eleito por um colégio eleitoral; já os Senadores e Deputados Federais e Estaduais foram escolhidos de forma direta.

O MDB, partido de oposição ao Governo, conseguiu expressiva vitória sobre a ARENA, partido da situação. Além disso, o MDB lançou a candidatura do então deputado Ulysses Guimarães a presidência da República, que saiu em campanha por todo país para denunciar o atual governo. O MDB conseguiu conquistar 16 das 22 cadeiras do senado. Segundo Gaspari,

O resultado das eleições de 1974 encurralou a ditadura. O MDB vencera as disputas para senador em dezesseis dos 21 estados, indicando que dentro de quatro anos conquistaria a maioria no Senado. (…) A ditadura militar estava economicamente robusta (GASPARI, 2004, p.14).

No entanto, a ARENA continuou a ser maioria no Senado, pois por meio de uma manobra política apenas uma parte da Assembléia oi renovada em 1974.  O cartunista também critica em sua crônica a manipulação da sociedade feita pelos generais militares, que através dos esportes, obras faraônicas e campanhas ufanistas, conseguiram manter parte da população acreditando que o Regime Militar era o melhor modelo a seguir, além de não se preocupar em criar políticas de inclusão social.

Desta forma, Henfil termina seu texto acreditando que aquele ano será diferente, com a efetivação do processo de distensão do regime e após treze anos se dará o fim da Ditadura. “A benção do seu gavião da fiel, HENFIL” (HENFIL, 1977).

O medo da máquina repressora
Figura 5 - Charge do dia 9 de novembro de 1977 (ISTOÉ, nº 46, p. 98)

A paranóia de Ubaldo manifestava-se nos seus mais simples hábitos. O cuidado para que não fosse pego pela máquina repressora da ditadura tornou-se algo inerente nas suas ações. Ao sair de casa, o personagem, na charge publicada na revista ISTOÉ do dia 9 de novembro de 1977 (ISTOÉ, nº 46, p. 98), previne-se de todas as formas. Ele leva consigo todos os documentos que provam sua cidadania, para que numa provável apreensão ele possa se retratar e assim apresentar-se como um homem comum, afastado dos ideários contrários aos dogmas da ditadura.

Ubaldo teme ser preso. Previne sua mãe para chamar o Dr. Sobral caso não volte para casa ao ir à banca de revista. Heráclito Fontoura Sobral Pinto, o Dr. Sobral, foi um jurista brasileiro, com experiência em dois golpes de Estado, o de Vargas e de 1964. Em ambos, ele dedicou seu trabalho a defender os perseguidos políticos e fazer críticas pesadas ao regime arbitrário, apesar de inicialmente ter sido a favor do golpe de 1964 por se dizer anti-comunista.

Quando percebeu o teor autoritário, ele se virou contra o governo e passou a abarcar os problemas políticos e com o aparato repressivo de artistas, políticos, jornalistas, estudantes e principalmente religiosos. Ao examinar o discurso lingüístico da carta de Sobral em retaliação ao governo militar, que o prendeu brutamente em detrimento de supostas atividades subversivas no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), Habib cogita que o manifesto foi um simples revide e comenta analiticamente sobre episódio:

O contexto da situação da represália vivida por Sobral Pinto configura-se como o elemento desencadeador de seu protesto. Entretanto, seu protesto não se restringe ao fato da represália sobre a sua pessoa, mas em favor da situação daqueles que, injustamente oprimidos, não têm como se defender depois da edição do AI-5, uma vez que esse ato cerceia as garantias do Poder Judiciário e os direitos do cidadão brasileiro (HABIB, 2008, p.123).

Abusos sofridos pela sociedade marginalizada 
Sarna. É com essa palavra que metaforicamente Henfil começou a escrever a sua crônica, Cartas à Mãe, no dia 9 de novembro de 1977 (ISTOÉ, nº 46, p. 98). Algo que provoca coceira incômoda, causa desconforto. A sarna no texto vem personificada na figura de Hélio Pereira Bicudo, jurista, militante dos Direitos Humanos e a pedra no sapato de Erasmo Dias, Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo entre 1974 e 1979. Dedicado à vida em defesa da população diante das dificuldades enfrentadas no difícil acesso à Justiça, Bicudo também esteve engajado nas denúncias da atuação do Esquadrão da Morte, organização militar que surgiu para procurar e matar criminosos perigosos. No entanto o que estava acontecendo eram várias chacinas promovidas pelos policiais militares, que ao contrário do objetivo real da organização, não levavam em consideração a periculosidade dos suspeitos. Sobre o abuso dos policiais, Bicudo comenta:

Os crimes cometidos por policiais militares no cumprimento de tarefas relativas ao policiamento ostensivo, passaram, na prática, a ficar impunes – julgando sempre o Tribunal de Justiça Militar da corporação, com evidente esprit de corps ao absolver milicianos com apoio em discutíveis interpretações de textos que contemplam circunstâncias capazes de eximir a responsabilidade. (BICUDO, 1984, p.75).

Com sutileza nas abordagens pertinentes ao pensamento político, Henfil mais uma vez faz uma indagação sobre o momento. Por que um país sob uma ditadura militar e com uma grande extensão como o Brasil não existem presos políticos? Em comparação feita por ele com outros países em regime ditatorial, é possível constatar a virulência das ditaduras no cenário da América Latina. A resposta para a pergunta está associada à perseguição e assassinatos de pessoas contrárias ao governo. Bicudo (1984, p. 76) atribui o crédito de centenas de mortes ao militares, ocorridas em operações típicas de guerra em países submetidos à ocupação militar, deflagradas contra os pobres e os marginalizados, sobre o pretexto de combater uma criminalidade crescente.

Lei do Ventre Livre
A crônica de Henfil, publicada em 28 de dezembro de 1977 (ISTOÉ, nº 53, p. 74), na seção Cartas a mãe da revista ISTOÉ, faz uma releitura da Lei do Ventre Livre, no dia em que se comemorava 106 anos desde sua promulgação, em 1871. A Lei assinada pela Princesa Isabel previa que todos os filhos nascidos de mulheres escravas a partir daquela data estariam livres, o que possibilitaria transição gradual do regime de escravidão para a mão de obra livre.

Na crônica quem sanciona a Lei é a Princesa Dona Conceição, mãe de Henfil, a quem era direcionada todas as crônicas desta seção. A mãe do cartunista ficcionalmente decreta que a partir daquele dia todos seriam livres, e teriam o direito de votar e escolher seus representantes, além de garantir e discutir vários outros direitos e temas pertinentes ao período.

Em 1977 o processo de abertura política já havia começado, mas caminhava a passos lentos, como queriam os Militares. Porém as movimentações por parte dos grupos de esquerda e do movimento estudantil eram intensas. Sobre esse período Lemos (1988) comenta:

1977 foi o ano do grito político dos estudantes [...]. As lutas estudantis ocuparam todo o cenário político do ano. Em março, milhares de estudantes ocuparam as ruas para protestar contra prisões de militantes de esquerda em São Paulo e clamar por uma anistia ampla, geral e irrestrita. (LEMOS, 1988, p. 34-35).

Na crônica o cartunista revoga todas as leis de arbítrio decretadas pelo regime militar, que impediam as pessoas de terem uma vida livre e de exercerem os seus direitos políticos, além de criar contrapontos com a liberdade que passariam a ter. No parágrafo 1° da lei do Ventre Livre, Henfil devolveu o direito de exercício pleno da democracia, e extinguiu a Lei Falcão, que regulamentava a propaganda política da época e impedia que os candidatos falassem durante o horário eleitoral. Além de citar fatos da época, como a fala do ex-jogador de futebol Pelé, que chegou a dizer que a população brasileira não estava preparada para a democracia.

No próximo parágrafo, o autor defendeu o direito dos estudantes e das organizações estudantis, que eram proibidas de existir, e pôs fim ao Decreto-Lei 477, que ficou conhecido como o “AI-5 das Universidades”, o qual punia professores e alunos acusados de subversão. Em seguida, Henfil fala sobre os direitos trabalhistas, e incluiu a organização de sindicatos livres e das greves e critica a alta taxa de impostos e os subsídios dados às grandes multinacionais.

A partir daí, nos próximos parágrafos, é garantido à liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, o fim da censura, a volta do habeas corpus e do direito a um julgamento dentro da Lei, em que todos são inocentes, até que se prove o contrário. E por fim, Henfil revoga todos os “atos anticoncepcionais”, ou seja, os Atos Institucionais. Assim, analogicamente, Henfil traça um paralelo de dois momentos autoritários da história do Brasil: um é o período escravocrata e o outro o Regime Militar. Ao fazer esta comparação são expostas as principais medidas que privavam a população do direito de liberdade.

Considerações Finais
O processo de distensão do regime iniciou em 1974 com o presidente Ernesto Geisel e durou até 1985 quando José Sarney assumiu a Presidência da República no lugar de Tancredo Neves, que veio a falecer. Henfil, depois de vários anos dedicados a abertura política do Brasil, faleceu em 1988 sem ao menos ver se concretizar de fato a democracia que tanto almejou. As Cartas a mãe, Ubaldo e tantos outros personagens conseguiram discutir e polemizar o período de redemocratização do Brasil, e principalmente fazer oposição ao regime militar de forma consistente e significativa, que se tornou referência na luta pela anistia.

Observa-se a proximidade entre o Henfil e seus personagens bem como com o povo brasileiro. Os mesmos temores, desejos, opiniões estavam reprimidos em grande parte da população, e esses sentimentos foram manifestados através de personagens como Ubaldo ou nas palavras que Henfil dirigia a sua mãe. Um ano após a criação da Revista ISTOÉ, em 1977, as últimas páginas passaram a ser ocupadas na revista pelas suas crônicas e charges, que contribuíram para que se discutissem questões vívidas pelo país no momento, e que viriam a ser o desfecho do regime militar no Brasil.

Neste artigo visamos, através de um recorte do extenso trabalho de Henfil, analisar sua influência no processo de transição do período da ditadura para a democracia. Seu humor irreverente conseguiu estremecer valores impostos pelo duro governo, e representaram uma necessidade persistente de oposição, que demandava de uma parte da população. O estudo de sua obra é fundamental para o preenchimento das lacunas deixadas pelo período do autoritário governo militar no Brasil, para que se compreenda como de fato, deixamos os conhecidos “anos de chumbo” até que voltássemos ao período democrático.

Referências
ALVES, Marcos Maurício. Propagandas ditatoriais: O Estado revelando as suas forças. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, [200-].
BAHIANA, Ana Maria. Almanaque dos anos 70. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
BICUDO, Helio Pereira. Direitos civis no Brasil, existem?. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 108.
BICUDO, Helio Pereira. Segurança Nacional ou submissão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p. 232.
BRASIL. Decreto-Lei nº 1.077, de 26 de janeiro de 1970. Dispõe sobre a execução do artigo 153 § 8º, parte final, da República Federativa do Brasil. Brasília, 1970. Disponível em: < http://www.senado.gov.br/>. Acesso em: 3 de maio de 2011.
BRASIL. Decreto-Lei Nº 477, de 26 de fevereiro de 1969. Define infrações disciplinares praticadas por professores, alunos, funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1969. Disponível em: . Acesso em 28 de maio de 2011.
DOM. Eu Te Amo Meu Brasil. 1970
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo, Edusp, 2009.
FENAE AGORA. Brasília: Fenae, 2005.
FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo: 13 fev. 1980
GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. São Paulo: Cia das Letras, 2004. p. 13
HABIB, Paulo Paulinelli. O ethos na argumentação: análise discursiva de uma carta-protesto de Sobral Pinto ao Presidente Costa e Silva. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais, 2008.
Henfil Plural. Produção de Laine Milan e Vicente Guerra. São Paulo: TVi Televisão e Cinema, 2009.
HENFIL: FILHO DO BRASIL. São Paulo: Sindicato dos Jornalistas, 2008.
ISTOÉ. São Paulo: Editora Três, ano 2, vol. 37, 38, 39, 40, 43, 53. 1977.
LEMOS, Cândida Emília Borges. A imprensa e as constituintes: A Imprensa como fenómeno cultural, ideológico e histórico, nas assembléias constituintes, de 1975/76 e 1987/88, em perspectiva comparada. Tese de Doutorado. Universidade do Porto, 2008. Disponível em Acesso em 9 abr. 2011.
LEMOS, Cândida Emília Borges. Os reflexos do autoritarismo no comportamento dos jovens nos anos 80. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais, 1988.
MALTA, Márcio. Um desenho da transição: a estratégia de redemocratização de Henfil através das Cartas da Mãe (1977-1984). Niterói: UFF, 2011.
MARTINS, Ricardo Constante. Ditadura Militar e Propaganda Política: A revista manchete durante o governo Médici. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de São Carlos, 1999.
MORAES, Dênis de. O rebelde do traço: a vida de Henfil. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1996.
Três Irmãos de Sangue. Produção de Ângela Patrícia Reiniger. Rio de Janeiro: No Ar Comunicação, 2006.
SAMWAYS, Daniel Trevisan. Censura à imprensa e a busca de legitimidade no regime militar. IX Encontro Estadual de História do Rio Grande do Sul, [200-].

Materia Copiada: http://sombraseluzes70.wordpress.com/2011/06/10/tracos-e-cartas-que- esbocaram-o-processo-de-redemocratizacao-do-brasil-nos-anos-70/

Um comentário:

  1. Olá Francisco. Eu e minhas colegas ficamos felizes que você tenha postado o nosso artigo em seu blog, respeitando a autoria. Não vemos isso fácil hoje em dia. Ficamos felizes também que o artigo esteja sendo acessado por tanta gente inteligente, que tem agregado informações ao trabalho a partir da caixa de comentários. Esse artigo já nos rendeu uma premiação na faculdade e um belo comentário de Márcio Malta, a principal fonte bibliográfica do nosso artigo. Que bom que gostou e postou ele aqui...ajuda a disseminar as nossas ideias. Grande abraço.
    Felipe Torres Bueno.

    ResponderExcluir