Denis Lerrer Rosenfield
Numa
eleição municipal, primam os problemas que os munícipes encontram em
sua vida cotidiana.
Questões ideológicas são relegadas a segundo plano,
pois estão muito mais preocupados com a limpeza e a pontualidade dos
transportes públicos, com a segurança chegando em casa, com os postos de
saúde, com a educação das crianças, para apenas listar alguns dos
problemas mais prementes.
Depois
de uma jornada de trabalho, chegando em casa, o(a) trabalhador(a) está
mais preocupado(a) com seu cansaço, com sua integridade física, com o
atendimento dos seus. O amanhã, entendido como o dia seguinte, ocupa
todas as suas atenções, tendo como horizonte a sua renda e/ou salário do
fim do mês. Muitas vezes, essa parte da população nem tempo tem de se
informar de questões políticas. Procura descansar, seja dormindo, seja
buscando um entretenimento qualquer.
O
grau de interesse pela política se mede por aquilo que ela possa
oferecer para ele(a), sendo um instrumento que possa contribuir para o
seu bem-estar, mormente através de serviços públicos. A política não
aparece como um fim em si mesmo, mas como um meio que deveria servir
para a melhoria de suas vidas. Não há um apreço pela atividade política
enquanto tal, frequentemente percebida como um lugar de jogo entre os
políticos em função dos interesses particulares desses.
O
micro reflete aqui uma questão macro. Se pesquisarmos o grau de
interesse pela política em uma eleição nacional, facilmente
constataremos uma situação semelhante com mais de 55% dos eleitores
demonstrando pouco ou nenhum interesse pela vida política propriamente
dita. Para eles, sua preocupação central reside na vida privada,
particular, na melhoria de suas condições de vida.
Nesse
sentido, a política deve estar a serviço dessa melhoria, e não o
inverso. Comprova-se aqui uma formulação do pensador liberal francês
Benjamin Constant, para quem, em seu texto "A liberdade dos Antigos
comparada à dos Modernos", os cidadãos escolhem os seus representantes,
para não se ocuparem eles mesmos da política. Eles estão voltados para a
sua vida privada, sendo a política uma ferramenta desta.
A
delegação política é um meio para que os cidadãos possam se dedicar às
suas respectivas vidas. Ela supõe, desta maneira, que os escolhidos, os
delegados, os representantes, ajam de acordo com as ideias de um bem
coletivo.
Observe-se
que, ao contrário de formulações esquerdistas ainda em voga no Brasil,
segundo as quais o exemplo de democracia estaria na participação direta,
na dita democracia participativa, os cidadãos brasileiros passam ao
largo de tal tipo de concepção. Para os partidários da democracia
participativa, o fim em si mesmo é a política, a participação tomando
conta da vida do cidadão.
Daí
não se segue que o desinteresse pela política se traduza pelo
desinteresse por assuntos públicos, entendida como lugar em que se criam
as condições de uma vida coletiva. Na administração do Estado, em seus
vários níveis, está presente o destino que se dá aos impostos, que são
nada mais do que bens privados transferidos obrigatoriamente para a
esfera estatal.
Logo,
nada mais normal que se coloquem aqui questões atinentes à moralidade
na gestão desses recursos, que devem - ou deveriam - estar destinados à
melhoria das condições de vida dos cidadãos. Espetáculos de imoralidade
de parte dos políticos e de seus partidos são percebidos como desvios de
seus recursos privados, que tiveram uma destinação eticamente indevida.
Surge, assim, a questão da moralidade na escolha dos representantes.
Não
surpreende que, em pesquisas de opinião, apareçam como qualidades
requeridas de prefeitos a honestidade, o ter palavra, o cumprir
promessas, que são atributos morais exigidos do homem público.
Princípios são considerados essenciais. Política sem valores equivale a
um cheque em branco dado a governantes e parlamentares no uso dos
recursos públicos.
Eis
por que não deixam de ser chocantes as alianças que vêm se fazendo nas
eleições municipais, onde valores, princípios e ideias desaparecem do
horizonte em proveito da utilização de tempo de rádio e televisão. O
caso mais paradigmático foi a aliança tecida entre Lula e Maluf, logo
entre o PT e o PP, onde se conjugaram duas posições que, no passado,
eram totalmente antagônicas.
A de um partido que cresceu defendendo a
ética na política e um político procurado internacionalmente pela
Interpol por desvio de recursos públicos. Ou seja, surge o símbolo da
moralidade pública intrinsecamente ligado à imoralidade, como se isso
fosse normal à política. Caberia, evidentemente, a questão: qual
política, qual normalidade?
Nada
disto, no cenário político atual, é exclusivo desses dois partidos,
pois o PSDB fez um movimento semelhante tentando atrair o mesmo
parceiro. O problema foi o valor da barganha, e não os princípios. Um
pagou mais do que o outro, ambos compartilhando a mesma ausência de
princípios. Os tucanos se aliaram também com o PR de Valdemar da Costa
Neto, envolvido em uma série de denúncias. Valeu igualmente o tempo de
rádio e televisão como valor maior.
Outro
exemplo que pode ser percebido como ausência de moralidade consiste em
composições partidárias que se fazem pelo país afora em que políticos
que, em sua cidade, consideram como adversário, quase um inimigo, o
partido X, se aliam com o mesmo partido em outra cidade, como se
coerência e relação com princípios nada valessem. Tal "qualidade" chega a
ser vendida como se fosse um sinal de inteligência, ou melhor, de
esperteza, o que é uma denominação mais apropriada.
O
que pensar, portanto, de uma concepção da política em que os valores
morais desaparecem completamente? Coligações se fazem tendo como único
"princípio" a exposição midiática dos candidatos, como se critérios
morais fossem o apanágio de moralistas ingênuos. Será que esses espertos
da política não estarão dando a sua contribuição decisiva para o
avacalhamento da democracia brasileira?
DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
FONTE:http://www.exercito.gov.br/web/imprensa/resenha
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