Por Lilia Diniz em 16/05/2013 na edição 746.
No segundo programa comemorativo dos 15 anos do Observatório da Imprensa
exibido pela TV Brasil, Alberto Dines entrevistou o novo presidente da
Fundação Biblioteca Nacional, o cientista político Renato Lessa.
Maior
biblioteca da América Latina, a instituição ocupa o posto de uma das dez
mais importantes bibliotecas d o mundo, com um acervo de cerca de nove
milhões de peças. Professor titular de Teoria Política da Universidade
Federal Fluminense (UFF), Lessa é presidente do Instituto Ciência Hoje e
pesquisador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade
de Lisboa.
A edição de terça-feira (14/5) do OI na TV coincidiu com a
Semana do Proibido, período em que a TV Brasil tratou de temas que foram
censurados durante a ditadura militar. Dines ressaltou que o embargo
dos anos de chumbo não ocorreu por acaso. “Nos primeiros 308 anos da
nossa existência estivemos submetidos a três censuras simultâneas e
sincronizadas – uma censura inquisitorial, outra censura eclesiástica e a
terceira censura da coroa portuguesa. Este prolongado sufoco precisa
ser lembrado e relembrado para jamais ser repetido”, disse Dines, em
editorial (íntegra abaixo). Para ele, a biblioteca não pode ser apenas um gigantesco armazém de livros e periódicos.
A reportagem exibida no programa entrevistou Mônica Rizzo, diretora
Centro de Referência e Difusão. Ela explicou que a Biblioteca Nacional
teve origem na coleção privada da realeza portuguesa, e que chegou ao
Brasil entre 1810 e 1811, após a vinda da família real. “Essa
biblioteca, antes disso, tinha sofrido um processo de perda muito grande
durante o terremoto que ocorreu em Lisboa em 1755.
A coleção foi
praticamente quase toda destruída e foi refeita na administração do
Marquês de Pombal. O conjunto que veio para o Brasil tinha cerca de 60
mil peças”, explicou Mônica. “Essa coleção é diariamente enriquecida por
força da legislação do depósito legal, que obriga os editores e autores
a enviarem à Biblioteca Nacional um exemplar de tudo o que é publicado
no país. E dessa forma nós temos condições de formar aquilo que chamamos
de memória nacional.”
Raridades na rede - A instituição detém uma série de documentos emblemáticos do país, como a
Carta de Abertura dos Portos às Nações Amigas. No setor de iconografia,
destaca-se a Coleção Thereza Christina Maria, doada pelo imperador Dom
Pedro II: “Essa coleção tem um parcela que foi reconhecida como Memória
do Mundo pela Unesco. É um retrato da segunda metade do século XIX como
nenhum outro dentro de uma única instituição”, disse Mônica. “Temos
também mapas do século 16, 17 e 18, inclusive muitos mapas únicos.
Temos
também livros impressos ainda no século 15, ou seja, incunábulos. Entre
eles eu destaco A Bíblia de Mogúncia, que é o impresso mais antigo que se conhece no Brasil. Também temos uma coleção completa da Gazeta do Rio de Janeiro, que foi o primeiro periódico publicado no Brasil. Além de também termos uma coleção completa do Correio Braziliense, que foi o primeiro jornal brasileiro, mas esse publicado em Londres.”
Um dos destaques da instituição é a Biblioteca Digital, que vem sendo
aperfeiçoada desde 2006. Há nove meses, foi lançada a Hemeroteca Digital
Brasileira, na qual mais de 1.600 jornais e revistas estão disponíveis,
em um total de 7 milhões de páginas. O site chega a ter 400 mil acessos
mensais. “É um projeto magnífico, todo mundo que entra nele para
pesquisar se torna, de alguma forma, dependente porque são tantas
frentes que você abre viajando nesse conjunto de periódicos
brasileiros...
A proposta da Biblioteca Nacional foi digitalizar
títulos, coleções completas de jornais brasileiros que já estivessem em
domínio público, ou seja, jornais e revistas extintas, para proporcionar
ao público uma pesquisa facilitada”, contou Mônica Rizzo. A maior parte
do acervo está sendo digitalizada a partir dos microfilmes já
existentes, em um processo que chega a produzir 20 mil imagens por dia.
Entre as preciosidades do século 19 estão as coleções do Correio Braziliense, da Gazeta do Rio de Janeiro e do Revérbero Constitucional Fluminense, entre outras. O pesquisador pode acessar também exemplares de importantes revistas, como a Semana Illustrada e a Revista Illustrada. Estão disponíveis jornais que marcaram o século 20: A Noite, A Manhã, Diário Carioca, Última Hora, Correio da Manhã e Jornal do Brasil. Também estão ao alcance de um clique as coleções das revistas O Malho, Revista da Semana, entre outras.
Através de uma ferramenta de buscas por palavras, o pesquisador pode
chegar a dados nunca antes analisados. “Nós tivemos, recentemente, um
depoimento de uma pessoa que está fazendo uma pesquisa sobre Ernesto
Nazareth e ele me disse que está, com o apoio da Hemeroteca Digital,
praticamente reescrevendo trechos da biografia do músico. Para nós, isso
é uma satisfação enorme, porque o nosso trabalho é um trabalho
silencioso”, comentou a funcionária da biblioteca.
Inferno escondido - Ana Virgínia Pinheiro, chefe do setor de Obras Raras, mostrou ao
programa uma seleção de obras proibidas por valores morais, religiosos
ou políticos que compõem a “Coleção Inferno”. As peças mais antigas
datam do século 15 e as mais recentes chegam ao período da ditadura
militar. “Uma das obras mais representativas desse conjunto é a edição
de 1661 da Cidade de Deus,de Santo Agostinho. Esse exemplar
pertenceu ao censor e tem várias passagens expurgadas, tornando quase
impossível ler e compreender o sentido do texto. É uma edição em latim,
uma edição fora de consulta pela impossibilidade do seu manuseio em
função das técnicas de censura que foram impostas ao volume, que usou um
tipo de tinta que desgasta. A intenção era efetivamente desgastar o
suporte”, explicou Ana Virgínia.
Outro exemplo clássico de uma obra que ficou escondida é o Index Librorum Prohibitorum,uma
relação de livros que foram proibidos na Espanha. “Na página preliminar
tem um comentário de época, porque a inscrição é da época de
publicação, 1667, e, segundo o censor, esse seria um índex falso, não
seria um índex original. Teoricamente, o editor teria publicado um
índice de obras proibidas, na visão dele, porque na verdade são obras
que foram liberadas pelo rei, talvez para dar uma espécie de troco por
ter sido censurado”, explicou Ana Virgínia. Embora o rei D. José tenha
proibido uma série de obras, os exemplares censurados constavam em sua
biblioteca, deixando claro que era quase impossível estabelecer um
controle sobre o que era incorporado.
No debate ao vivo, Dines explicou que o aparato censório que a coroa
portuguesa instalou no Brasil durante os três primeiros séculos de
colonização impediu que o país desenvolvesse um circuito intelectual
robusto. E mesmo depois que a corte foi transferida para o Rio de
Janeiro, em 1808, o controle permaneceu. Nos séculos seguintes, períodos
de mais liberdade alternaram-se com outros de forte censura, culminando
com a ditadura militar imposta ao país entre 1964 e 1985. Renato Lessa
disse que essa interdição à oportunidade de pensamento fez com que a
cultura livresca no Brasil fosse, durante muito tempo, exclusiva de um
segmento diminuto da população e tivesse pouca capacidade de se
expandir. “O próprio sistema educacional não colabora nesse sentido. Ele
faria com que a propagação da leitura se irradiasse por todo o país”,
lamentou Lessa.
Durante o século 19, de acordo com Renato Lessa, o tipo de pensamento
que vigorou nas elites intelectuais brasileiras era conhecido como
ecletismo espiritualista. Era uma tentativa de reunir as diversas
correntes filosóficas em uma perspectiva teológica. A ruptura com esse
tipo de tradição religiosa só ocorreu no Brasil no fim do século 19,
enquanto os europeus já experimentava esta separação desde o século 16.
“No caso europeu, a ruptura com o espírito religioso e a afirmação da
laicidade se deu concomitantemente com a dispersão do prelo: Gutenberg e
os livros, a ideia de publicização do pensamento.
No Brasil, nós
tivemos episódios interessantes. Um dos primeiros intelectuais que
rompem com essa tradição meio religiosa, mística, e começa a pensar o
Brasil com paradigmas modernos, Tobias Barreto, publicou um jornal no
interior do Sergipe em alemão, que ele mesmo lia”, relembrou o cientista
social. A passagem para o espírito laico no Brasil não foi acompanhada
pela conquista de novos adeptos e o pensamento permaneceu restrito à
elite.
Tesouro para todo - Dines comentou que a história da imprensa brasileira é pouco explorada e
elogiou a iniciativa da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Renato Lessa completou: “Esses mecanismos modernos de busca tornam a
pesquisa muito mais simples. A minha história na Biblioteca Nacional
começou nos anos 1970, pesquisando em jornais.
Eu era estagiário do
CPDoc da Fundação Getúlio Vargas, em 1975, e passei dois anos na
Biblioteca fazendo pesquisas em jornais gaúchos sobre política gaúcha no
final da década de 1920. E eram volumes imensos. Muitas vezes a própria
manipulação quebrava os jornais, percebia-se que o suporte teria vida
curta”, contou Renato Lessa. O primeiro passo dado pela Biblioteca
Nacional para a preservação da coleção de livros e jornais foi a
microfilmagem das edições.
“Há uma visão sobre a Biblioteca Nacional que não é errada, mas que
devemos nuançar: que a Biblioteca Nacional é uma espécie de guarda de
tesouros. É verdade. Há coisas ali que são preciosidades inestimáveis. O
tesouro, por sua vez, só tem sentido na medida em que ele entra na
cadeia de produção de conhecimento, na medida em que é aberto,
investigado. Um material do século 15 vai ganhar vida se uma pergunta
formulada no século 21 for dirigida a ele”, afirmou o presidente da
instituição. “A ideia de tesouro remete também a algo que foi dado de
presente.
Por isso, é importante refletir sobre o legado que se deixará
para as gerações futuras e implementar a digitalização para divulgar o
conhecimento.” As novas plataformas, como livros eletrônicos, e
ferramentas de comunicação como twitter e e-mail serão usadas pelos
arqueólogos do futuro para recompor o passado. “O livro digital entra
nessa configuração desafiando uma ideia tradicional de acervo
bibliográfico”, explicou Renato Lessa.
Dines questionou como a Biblioteca Nacional pode “se federalizar” de
fato. Para Lessa, este processo pode ser feito pela via digital,
estabelecendo alianças. Uma das parcerias bastante adiantadas é com a
Biblioteca Brasiliana, da Universidade de São Paulo. “A ideia é
trabalharmos na direção de um sistema de bibliotecas que digitalizam os
seus acervos, de bases que são compatíveis em termos de plataformas e
que sejam submetidas a instrumentos de busca comuns”, contou Renato
Lessa. É importante que esse sistema permita a entrada de novos
parceiros e de suportes diferenciados, como imagem em movimento.
Paraíso cheio de problemas - Lessa comentou que o escritor Jorge Luis Borges, nomeado diretor da
Biblioteca Nacional da Argentina em 1955, costumava dizer que imaginava o
paraíso sob a forma de uma biblioteca: “A imagem que eu tenho é um
pouco uma combinação de Borges com Kafka.
A biblioteca é um paraíso, mas
ela também tem ar condicionado defeituoso, tem que fazer obras, e
várias licitações para começar a fazer obras. Portanto, há toda uma
série de providências de natureza prática e outras de natureza jurídica e
burocrática que são imperativas e imediatas para que o paraíso tenha
concretude, para que tenhamos um paraíso tangível. Há desafios muito
grandes do ponto de vista material, que estão encaminhados”. Com a ajuda
de parceiros como o BNDES e o governo federal, Lessa acredita que seja
viável recuperar o prédio da instituição.
O novo presidente comentou a polêmica em torno da participação da
biblioteca na Feira de Frankfurt. “A ideia de internacionalização da
biblioteca estava associada à ideia de internacionalização do livro, o
que fazia da Biblioteca Nacional uma espécie de produtora de eventos
literários internacionais, que são fundamentais, importantes. O Brasil
agora é o país homenageado na Feira de Frankfurt. Isso foi entendido
pelo governo federal há dois anos como oportunidade de o Brasil fazer
valer o seu talento, sua capacidade criativa.
Mas a Biblioteca Nacional
não é a melhor instituição para ser a produtora e a gestora de uma
política desta natureza, que envolve uma complexidade muito grande”,
ponderou Renato Lessa. A produção de um evento desse porte mobiliza uma
grande energia dos funcionários, que deveriam estar orientados para a
gestão interna da biblioteca. O governo federal e a iniciativa privada,
na opinião de Lessa, são as melhores esferas para organizar eventos
dessa natureza.
A revisão de situações como essa abre caminho para que a gestão possa
focar em questões internas graves, como obras e qualificação de pessoal.
Renato Lessa ressaltou que todo o “tesouro” depositado na Biblioteca
Nacional depende do esforço dos funcionários. “A Biblioteca tem uma
destreza técnica, que aos poucos eu vou descobrindo, e que deve ser
mostrada”, disse.
Planos de carreira e valorização salarial devem ser
priorizados. “Eu estou confiante, estou animado. Eu não vou resolver
todas essas coisas, evidentemente. Seria irresponsável dizer uma coisa
dessas, mas tenho confiança de que vale a pena e que nós temos recursos
internos na biblioteca para fazer com que ela dê um salto”, garantiu
Renato Lessa.
Para ele, a instituição ocupa um lugar central na cultura brasileira e
na produção de conhecimento no país. O desafio agora é passar a poder
comprar novas peças para o acervo. Para isso, há uma longa batalha
jurídica a ser enfrentada. Lessa comentou que a biblioteca planeja uma
expansão física para um armazém no Cais do Porto do Rio, que será
reformado com o apoio do BNDES. “Eu vou frequentar muito o BNDES com o
pires na mão. Não só o BNDES. É preciso mobilizar o Estado brasileiro e
parceiros privados”, avisou o novo presidente da Biblioteca Nacional.
***
Uma história de censuras
Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 683, exibido em 14/5/2013
Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.
Nesta série de especiais em comemoração ao nosso 15º aniversário
cruzamos com uma outra atração, a Semana do Proibido, em que a TV Brasil
está desvendando o que foi escondido pela censura do regime militar.
Nosso convidado de hoje, é o cientista político e pensador, Renato
Lessa, recentemente nomeado “guardião da memória nacional” na condição
de presidente da Fundação Biblioteca Nacional.
Você, telespectador, já o conhece: nestes 15 anos de programas
compartilhou generosamente conosco o seu saber 16 vezes, a maioria delas
na última edição do ano quando tentamos discernir o que nos aguarda nas
próximas 52 semanas.
Uma biblioteca não é apenas um gigantesco armazém de livros e
periódicos, a nossa (considerada a maior da América Latina e a uma das
dez maiores do mundo) tem uma dependência adicional designada
tetricamente como “Coleção do Inferno”. Nela estão recolhidos os
sobreviventes de cinco séculos de drásticas interdições.
É preciso não esquecer que a censura dos anos de chumbo não ocorreu por
acaso: nos primeiros 308 anos da nossa existência estivemos submetidos a
três censuras simultâneas e sincronizadas – uma censura inquisitorial,
outra censura eclesiástica e a terceira censura da coroa portuguesa.
Este prolongado sufoco precisa ser lembrado e relembrado para jamais
ser repetido. A majestosa Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro é uma
espécie de templo onde o país faz a sua catarse.
Matéria Lincada de: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/um_mundo_de_livros
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