A juíza aposentada Vera Regina Müller é
uma das pioneiras no Brasil na defesa de penas alternativas.
Apaixonou-se pelo tema no início da década de 1980, quando conheceu a
realidade britânica: de cada cem penas aplicadas no Reino Unido, 80 são
alternativas.
Müller implantou penas alternativas no Rio Grande do
Sul, sua terra natal, em 1985. Em 2000, faria o mesmo na Central
Nacional de Penas e Medidas Alternativas (Cenapa) do Ministério da
Justiça, que comandou no fim do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Com o julgamento do “mensalão”, mais do que nunca o debate sobre as
penas alternativas volta à tona, mas o assunto guarda duas ironias: se o
governo do PSDB foi o responsável por tê-las implementado no País, não
deixa de ser, no mínimo, curioso que o partido agora defenda, com
unhas e dentes, o encarceramento dos condenados.
Por outro lado, o PT,
que gostaria de ver José Dirceu, José Genoino e outros colegas de
partido cumprir penas alternativas, em vez de presos, diminuiu a verba
federal para o setor nos últimos anos. A juíza explica sua visão do
tema na entrevista abaixo:
A juíza aposentada Vera Regina Müller, uma das pioneiras no Brasil na defesa de penas alternativas. Foto: Sergio Amaral |
CartaCapital: Desde que a senhora esteve no governo, evoluiu a questão das penas alternativas no Brasil?
Vera Müller:
Carecemos, hoje, de um sistema online para medir as aplicações no
País. Os dados que chegam são muito atrasados. Até onde se contou, em
2009, o número de penas alternativas ultrapassou o número de
encarcerados: são cerca de 540 mil encarcerados e mais de 640 mil
aplicações de penas alternativas. E deve ser muito mais.
CC: Não
é irônico que o PSDB, que criou uma central de penas alternativas,
defenda agora o encarceramento dos condenados no “mensalão”?
VM: É irônico, mas tem outra conotação aí, política. No Brasil, achamos que a única coisa que resolve é a cadeia. Está aí o (José Luiz)
Datena que passa a tarde na televisão a martelar, a preconizar o
encarceramento. Quando comecei a fazer esse trabalho, verifiquei que 75%
dos processos numa vara criminal eram de menor potencial ofensivo. Só
35% são delitos mais graves. Os demais não tiveram defensor público,
são pobres, sem qualificação profissional, poderiam estar fora da
cadeia. Os delitos mais graves são em muito menor número, mas a
população não sabe disso.
CC: Há
quem defenda que crimes de colarinho-branco não sejam punidos com
penas restritivas de liberdade, mas com multas e penas alternativas. A
senhora concorda?
VM:
Depende do crime de colarinho-branco. A Justiça Federal tem juizado
especial e trabalha com penas alternativas e o recolhimento é
fantástico exatamente em função da aplicação de multas a crimes do
colarinho-branco. Muitas instituições são beneficiadas com isso, dá
para fazer muita coisa. O que eu fico impressionada é dizer que “não
vai dar em nada, vai aplicar pena alternativa”. Pena alternativa,
quando bem aplicada, tem a sua função de prevenção da criminalidade e de
reprimenda. O que se procura? Fazer com que a pessoa se sinta tão
constrita, responsabilizada, que não volte a delinquir.
CC: Para aplicar a pena alternativa, a questão é apenas o réu não oferecer risco à sociedade?
VM:
Violência, grave ameaça ou risco à sociedade. A maior parte das
tipificações do código penal é para delitos mais leves. Quando a pena é
de até quatro anos, o juiz precisa aplicar a pena alternativa se o réu
preencher as condições: se é primário, se não tem antecedentes, se o
delito é proporcional, tem vários requisitos. Quando tem essas
condições, tem de aplicar, não pode fugir.
CC: Hoje quais são as penas alternativas possíveis?
VM:
Tem a prestação de serviços à comunidade, a limitação de fins de
semana, a prestação pecuniária. Têm, também, aquelas que a Lei Maria da
Penha trouxe, que é o agressor se manter a tantos metros de distância
da vítima e ter de se apresentar à Justiça de tempos em tempos. Em
minha opinião, o que funciona muito bem, quando bem aplicada, é a
prestação de serviços à comunidade. A reincidência é menor.
CC: Se as penas alternativas fossem mais bem aplicadas, as cadeias estariam mais vazias?
VM:
Num primeiro momento, se acreditava que poderia esvaziar, mas são
muitos os fatores. Como o movimento de entrada é muito grande, não dá
para dizer isso. O que precisa é mais investimento. Fui ao Ministério
da Justiça e, quando vi os recursos aplicados, me apavorei: são os
mesmos de 12 anos atrás. São só 3 milhões de reais previstos para o ano
que vem.
CC: Quer dizer que o PT agora defende penas alternativas, mas não investiu em sua aplicação?
VM:
Investiu, mas todo o dinheiro do Fundo Penitenciário Federal está
sendo utilizado para o superávit primário. A arrecadação que a pena
alternativa teria é muito maior do que estes 3 milhões que se têm agora
para o orçamento do ano que vem. Está na mão do ministro tomar alguma
atitude.
CC: As penas alternativas caminharam mais rápido no governo FHC ou no governo Lula/Dilma?
VM: No governo FHC foi dado o start.
Depois, num período grande do mandato de Lula, o recurso chegou a 9,
10 milhões de reais, mas logo começou a reduzir. Então, acho que os
dois governos estimularam. O que não pode é deixar morrer, precisa dar
um salto. No nosso país entende-se que a expiação tem de ser na cadeia,
e quanto pior a cadeia, melhor. Mas lidamos com seres humanos. Como é
que essa pessoa vai sair e ter uma vida harmônica na sociedade se é
maltratado lá dentro? A pena alternativa ajuda muito para que ele não
ingresse na prisão. E quem está lá tem de ser bem tratado.
CC: Outro dia o ministro José Eduardo Cardozo falou que se mataria se fosse preso no Brasil. O que a senhora achou?
VM:
Teve o lado bom e o lado ruim deste comentário. O lado bom é que ele
foi absolutamente sincero, foi até elogiado pela coragem de dizer o que
estava sentindo. O lado ruim é: puxa, então por que não faz alguma
coisa? Hoje o que está se propondo para o ministro é a municipalização
da execução penal, já que o delito acontece no município.
CC: Existe na opinião pública uma vontade muito grande pelo encarceramento, não é?
VM:
Exato, coloca-se o encarceramento como uma forma de terceirizar a
execução penal. “Eu vou deixar lá na cadeia, não quero nem ver”.
Pretende-se jogar para baixo do tapete, como se o réu não fosse fruto
da sociedade em que a pessoa vive. Quando eu era criança, tinha uma
cadeia pública pertinho de onde a gente brincava, em São Leopoldo (RS).
Não tinha muros fechados, eram de arame, e a criançada enxergava os
presos. Nenhuma criança estranhava. Hoje, quando querem fazer uma
cadeia em qualquer lugar é uma gritaria lascada, ninguém quer saber de
prisão por perto. Talvez fosse preciso um trabalho de mídia importante
para explicar o que são as penas alternativas.
Esta notícia foi publicada originalmente em:
http://www.cartacapital.com.br/sociedade/no-brasil-pensamos-que-so-a-cadeia-resolve/
Nenhum comentário:
Postar um comentário