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Imagem: Bruno Maron |
Por Rodrigo
Firmino e Bruno Cardoso.
Desde a década de 1980, a
crise que assola o mundo do trabalho e a sociedade salarial vem sendo
documentada e pensada pelo trabalho acadêmico e amplamente debatida nas arenas
políticas dos mais diversos países. Essa crise implica o abalo do modelo que prevaleceu
em parte considerável do século XX, caracterizado pelo predomínio do emprego
formal, pela força da representação sindical e pelas negociações setoriais,
além da associação entre a identidade dos cidadãos e sua ocupação profissional
e um perfil de gênero majoritariamente masculino.
Muitas dessas transformações
se consolidaram ou se radicalizaram com a popularização e a conexão constante
de dispositivos comunicacionais digitais e a internet, assunto que vem sendo
tratado de forma exaustiva pela sociologia.1 Como
efeitos, temos ao mesmo tempo o lento fim dos empregos e o esvaecimento das
fronteiras entre o trabalho e o não trabalho. Além disso, os dispositivos
tecnológicos e a rede vêm propiciando o surgimento de novos modelos de trabalho
e de exploração de serviços, entre os quais nos interessa aqui diretamente o da sharing
economy.
Tendo como protagonistas
empresas que rapidamente se tornaram gigantes do ramo, como Airbnb e Uber, o
fenômeno se espalha para vários tipos de serviço, acompanhados pela grande
quantidade de empresas que apostam no que ficou conhecido como uberização.
Esse fenômeno é marcado, entre outras coisas, pela precarização das relações de
trabalho, já que as empresas se apresentam apenas como fornecedoras da
tecnologia de intermediação de serviços, não assumindo com isso nenhuma
responsabilidade trabalhista em relação a seus usuários-parceiros.
Exemplos são
os mais variados e assustadores, como o caso da prefeitura de Ribeirão Preto
(SP), que chegou a elaborar um projeto, popularmente conhecido como professor
Uber, para a contratação de aulas avulsas para a rede municipal de educação.2 Se para a Uber a consequência mais
imediata parece ser a precarização das relações de trabalho e a extinção do
vínculo formal, no caso do Airbnb os impactos se sentem mais, para além do
setor hoteleiro, no processo de gentrificação das vizinhanças e da expulsão dos
locatários tradicionais, com contratos longos e valores (bem menores) mensais,
e não diários. Ambos, Airbnb e Uber, colaboram para a produção da cidade
contemporânea, bastante diferente das cidades que viram o encerramento do
século XX.
A rapidez da disseminação e o
impacto da economia colaborativa não podem ser explicados apenas em razão do
encolhimento do mercado de trabalho formal e da precarização das relações de
trabalho, nem por conta do desenvolvimento e popularização dos dispositivos
tecnológicos conectados pela internet.
O modelo Uber-Airbnb obteve sucesso,
diante de várias tentativas diferentes de start-ups na
fervilhante economia dos aplicativos, também por ter “afinidade eletiva”, como
diria Max Weber, com aquilo que é chamado de self empreendedor,3 característico da racionalidade
neoliberal4 contemporânea e dos modos
de subjetivação que a produzem.
Em outras palavras, trata-se da sedução do
empreendedorismo, da autoconcepção dos indivíduos como “empresas de si”,
constituídas primordialmente por capital humano e concorrendo com inúmeros
outros indivíduos-empresa pela prestação de serviços ou por oportunidades de
mercado.
De proprietários imobiliários com vários imóveis no Airbnb a
motoristas de Uber que trabalham até catorze horas por dia, seja como forma de
aumentar seu capital econômico ou de sobreviver em um contexto de crise e queda
nos índices de vagas de trabalho formal e de encolhimento do valor real do
salário mínimo, cada vez mais pessoas se envolvem com o modelo da sharing
economy.
Dani
e o “comandante”: a precarização da liberdade
A uberização ganha contornos
curiosos a cada dia, mas recentemente presenciamos o que parece ser uma
tentativa de elevar ao máximo o aproveitamento desse tipo de precarização do
ponto de vista da exploração do trabalho. Os detalhes do esquema impressionam
pela engenhosidade das relações propostas para maximizar a exploração das horas
contratadas de um trabalhador, a ponto de o contratado realizar atividades
adicionais em suas horas de trabalho para, indiretamente, pagar por seu próprio
salário.
Após um encontro da Rede
Latino-Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits),
em São Paulo, tomamos um UberX conduzido por uma jovem motorista chamada
Daniele,5 muito simpática e
alegre. Daniele seguia o caminho sugerido pelo aplicativo e conduzia com
eficiência. Animados com as possibilidades de novos projetos de pesquisa sobre
vigilância da Lavits, conversávamos sobre Big Data e as possibilidades de uso
da coleta e manipulação de dados por governos, empresas e cidadãos.
Debatíamos
projetos para, por exemplo, modificar a precificação de apólices de seguro
baseada na análise de dados individualizados e em tempo real de clientes,
personificando de maneiras cada vez mais precisas os cálculos de risco.
Daniele manipulava seu
celular enquanto conduzia, recebendo e respondendo mensagens de um interlocutor
chamado “comandante”, mas parecia atenta à nossa conversa. Foi quando nos
ocorreu envolvê-la na discussão, questionando-a sobre as condições do seguro de
seu veículo pelo fato de usá-lo como instrumento de trabalho informal.
Daniele
respondeu dizendo que no seguro não havia informações sobre o uso da Uber, mas
disse que o veículo, na verdade, pertencia a outra pessoa, seu “chefe”. Esse
fato não passou despercebido, e queríamos saber mais sobre o que parecia ser um
exemplo de terceirização de frota Uber, o que não seria o primeiro caso.
No entanto, estávamos
equivocados. Daniele era motorista profissional, contratada por Michel para
servir sua família. Seu trabalho seguia todas as regras trabalhistas, como
jornada de oito horas diárias e registro em carteira. Entretanto, nas horas em
que estava a trabalho e sem atividades específicas com a família de Michel,
Daniele era obrigada a realizar corridas como motorista Uber, com as seguintes
condições: todo valor repassado pela Uber iria diretamente para a conta do
chefe; o e-mail cadastrado no serviço era o de Michel, que monitorava valores e
trajetos conforme estes aconteciam; em caso de acidentes, a responsabilidade
recairia sobre Daniele; celular e veículo eram de propriedade de Michel; e não
havia a possibilidade de trabalhar sem aceitar essas condições.
Muito constrangidos e
preocupados, começamos a fazer cada vez mais perguntas e a tecer comentários,
sugerindo cuidados e o registro de todo o processo em caso de problemas futuros
com a justiça trabalhista. Daniele então nos revelou outro detalhe assustador:
o “comandante” com quem ela trocara mensagens pouco antes era o próprio Michel,
que reclamava da quantidade pequena e do preço baixo das corridas. Afinal, ele
recebia relatos de todas as corridas em tempo real.
Já nos preocupávamos se nossas
conversas também não estariam sendo monitoradas pelo “comandante”. Daniele se
sentia pressionada e tinha de cumprir todos os requisitos, pois, como ela
própria disse, “desse jeito sou eu que pago meu próprio salário”. A lucidez de
sua análise ressaltava que o pagamento que recebia era composto por parte do
que ela mesma arrecadava com o serviço de Uber durante sua jornada de trabalho,
desempenhando uma função que se desviava de sua atividade-fim – conduzir a
família de Michel ao shopping, à escola, ao clube etc.
A exploração se revelou
complexa, astuta e eticamente questionável, de uma trabalhadora
“semiprecarizada”, em uma situação construída sobre ambiguidades, por um patrão
que se identificava no celular como “comandante”. Tratava-se de uma maximização
da exploração de sua força de trabalho. Era curioso e surpreendente que, numa
atividade tão característica da sharing economy e
do self
empreendedor, os velhos conceitos de mais-valia e de propriedade
dos “meios de produção” pudessem fazer tanto sentido.
A história ganhou contornos
de assédio moral quando Daniele relatou ter pedido para ser bloqueada pela
própria Uber. Bloqueios de usuários/parceiros da Uber são comuns em casos de
desobediência das regras de uso do serviço, mas nunca ou raramente a pedido do
próprio usuário/parceiro.
Isso mostra uma tentativa de Daniele de se
desvencilhar da atividade adicional sem perder o emprego. Funcionou por alguns
dias, apesar dos pedidos insistentes do “comandante” para que ela resolvesse a
situação junto à Uber. A pressão se dava por meio de constantes comentários de
que ele não conseguiria manter a motorista e que seria “obrigado a demiti-la”.
Impaciente, ele mesmo criou uma nova conta para Daniele, que precisou voltar a
fazer as corridas, já que dependia do dinheiro para se manter. Ela contou que,
no auge da pressão, foi no escritório da Uber e explicou a história, sendo
informada de que aquela situação era irregular e que não seria possível
reativar sua conta.
Já buscando abandonar definitivamente essa situação de
“uberização da Uber”, Daniele contou que estava completando um curso para
motorista de ônibus e que já tinha trabalhado como motorista de van escolar,
função que não se importaria de desempenhar novamente.
Pouco antes de nos deixar em
nosso destino, ainda houve tempo de sabermos outra faceta do caso: Daniele
mencionou haver outra motorista trabalhando para a família nas mesmas
circunstâncias. Chamou-nos a atenção o fato de serem ambas motoristas mulheres,
o que foi justificado por Daniele como ciúme do “comandante” pelo fato de as
motoristas estarem à disposição de sua esposa.
Para além do ciúme da esposa,
outros atravessamentos por relações de gênero (e poder) podem ser percebidos
nessa situação, já que o “comandante” parecia inspirar medo em sua motorista e
alimentava a relação patronal com constantes ameaças, certamente
aproveitando-se do fato de sua funcionária ser mulher.
A razão de empregar
apenas mulheres possivelmente o fazia exercer outras formas de dominação e
poder mais ou menos sutis e já extensamente pensadas e apontadas como
características das relações de gênero no mundo do trabalho.
Antes que deixássemos Daniele
e ela se fosse com outro passageiro, perguntamos se ela gostaria que a
avaliássemos com a nota máxima (cinco estrelas) ou se preferia uma nota baixa,
para ser bloqueada novamente pelo aplicativo. “Nota alta, né, porque a gente
tem nosso orgulho.” A nota que demos, cinco estrelas, não era de forma alguma
injusta. Longe disso, a viagem acabou sendo perturbadoramente agradável, apesar
da história de precarização disfarçada, muito pela simpatia e abertura da
própria Daniele, duplamente uberizada e sob vigilância de seu “comandante”.
Uberizações
O caso de Daniele nos mostra
aspectos sombrios daquilo que vem sendo chamado de sharing economy. No
lugar da maior liberdade e autonomia prometidas pelas formas de
empreendedorismo criativo, o que pudemos ver foi um trabalho ainda mais
intenso, controlado e hierarquizado.
Se é verdade que o modelo de trabalho que
constituiu o capitalismo industrial fordista vem se enfraquecendo desde a
década de 1980, pelo menos não foi para nos dirigirmos a um mundo no qual o
próprio trabalho e sua importância na constituição disciplinar da sociologia
perderiam a cada dia mais sua centralidade.6
De
modo quase oposto, o trabalho vai se tornando onipresente, distribuído por
dispositivos tecnológicos que nos acompanham a todo momento, nos alertam, nos
conectam, nos rastreiam e, até certo ponto, nos aprisionam na mais plena
mobilidade.
O “comandante”, sem dúvida,
foi empreendedor ao ter a ideia de colocar suas duas funcionárias para
trabalhar, nas “horas vagas de trabalho” como motoristas de sua família, também
como motoristas potenciais de qualquer usuário da Uber em São Paulo. Ao ter a
ideia de transformar seu veículo particular em meio de produção e, por meio de
um contrato formal ambíguo, apropriar-se da mais-valia produzida por suas duas
trabalhadoras, o “comandante” não faz algo muito diferente daquilo que Marx
observou na aurora do capitalismo industrial, ainda no século XIX.
Não pretendemos com isso
afirmar que a economia compartilhada e suas variações de capitalismo criativo
empreendedor possam ser reduzidas ao caso que apresentamos, ou mesmo que este
seja significativo das relações econômicas e sociais que emergem da sharing
economy e a sustentam.
Muito menos defendemos que a
perspectiva marxista, elaborada 150 anos antes do surgimento de empresas como
Uber e Airbnb e do modelo econômico que proporcionam, seja a principal chave de
explicação para as transformações contemporâneas do mundo do trabalho. Contudo,
ao destacarmos as especificidades desse caso, levando em consideração o
contexto político do Brasil do pós-golpe de 2016 e o avanço das políticas
neoliberais de desregulamentação do trabalho, não há como não pensarmos nas
crescentes possibilidades de radicalização da exploração capitalista e da
precarização das relações de trabalho.
Gradualmente, um pouco sem sentirmos, um
tanto sem reagirmos, vamos nos acostumando com formas cada vez mais criativas,
empreendedoras e autônomas de explorar os mais pobres, mais fracos e mais
precários. Um mundo de uberexploração de
um trabalho cada vez maisuberificado.
*Rodrigo Firmino é
professor titular do Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana (PPGTU) da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), editor-chefe da revista urbe (www.scielo.br/urbe)
e membro fundador da Rede Latino-Americana de Estudos em Vigilância, Tecnologia
e Sociedade (Lavits – www.lavits.org). E-mail: rodrigo.firmino@pucpr.br. Bruno
Cardoso é professor adjunto do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e membro fundador da Lavits. E-mail: brunovcardoso@hotmail.com.
1 Ver, por exemplo, Manuel Castells, A sociedade em rede, Paz
e Terra, São Paulo, 1999.
2 Ver Ana Luiza Basilio, “Professor Uber: a precarização do
trabalho invade as salas de aula”, Carta Capital, 28 ago.
2017. Disponível em: <https://goo.gl/BaAMiW>.
3 Nikolas Rose, Inventando nossos selfs,
Vozes, Petrópolis, 2011; Nikolas Rose e Peter Miller, Governando
o presente, Paulus, São Paulo, 2012.
4 Pierre Dardot e Christian Laval, A nova razão do mundo,
Boitempo, São Paulo, 2016.
5 Os nomes foram modificados para preservar a identidade dos
envolvidos.
6 Claus Offe, “Trabalho: a categoria-chave da sociologia?”, RBCS:
Revista Brasileira de Ciências Sociais, v.4, n.10, p.6-20, 1989.
LInk original:http://desacato.info/a-uberizacao-da-uber/
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