domingo, 9 de setembro de 2018

A universidade brasileira sem reforma e o seu atraso renovado por Henrique Júdice Magalhães [*].


A América Latina, em geral, e a Argentina, em particular, comemoram, em 2018, o centenário da rebelião estudantil que, com epicentro na Universidade de Córdoba, levou à reforma universitária naquele país e abalou o cenário acadêmico do continente. 

Os estudantes cordobeses padeciam, em 1918, o domínio de sua universidade pela Corda Frates, que manipulava a designação de dirigentes e professores no interesse pessoal de seus membros e na conveniência ideológica do obscurantismo clerical. A esse problema particular, deram soluções universais: admissão de professores por concurso com participação discente; liberdade para qualquer pessoa dar cursos em sua área de conhecimento; representação paritária de professores, estudantes e egressos nas deliberações internas; ensino baseado na crítica; interação com o extramuros. Conquistas que mudaram as universidades argentinas e de outras nações onde o movimento teve eco (México, Peru, Cuba) e se fazem, ainda hoje, ausente no Brasil.

Porém, o mais importante efeito da rebelião dividia seus participantes e só veio a se concretizar plena e oficialmente em 1953: o fim do vestibular. 

De início, o acesso à educação superior dependia – lá e aqui – de um exame de suficiência: entravam todos os que atingissem uma nota previamente definida. Mas a falta de transparência sobre conteúdos e critérios tolhia o acesso das classes não privilegiadas. 

Nos anos 20, quando as universidades argentinas, sob o impulso democratizante de 18, se abrem aos setores sociais remediados, o Estado oligárquico brasileiro autoriza suas escolas superiores (universidade, só havia a atual UFRJ) a limitar vagas. Nos anos 50, quando isso se torna um problema social no Brasil, a Argentina extingue o vestibular e fixa como único requisito de acesso ao ensino superior o diploma secundário. 

"Fomos aprovados, queremos estudar" era a palavra de ordem de um dos pontos altos do movimento estudantil brasileiro: a tomada da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP (1968). Pouco antes (1961-64), uma das reformas de base reivindicadas com a simpatia do governo João Goulart era a universitária. 
O contínuo crescimento do número de jovens que obtinham a nota de aprovação no vestibular, mas não as poucas vagas (os ditos "excedentes"), tornara a democratização do acesso ao curso superior uma bandeira estudantil com forte respaldo social. 

Duas contrarreformas a frustraram, consolidando e aprofundando o afastamento entre a universidade pública e o povo e sujeitando o ensino superior brasileiro a uma mistura única no mundo entre clientelismo e acumulação de capital. Uma foi promovida pela ditadura de 1964; a outra, pelo PT. Graças a elas, só temos a "comemorar", hoje, a renovação dos vícios de um sistema universitário que reflete e realimenta os desta sociedade. 

Uma contrarreforma dá ao problema gerador da reivindicação de reforma uma resposta capaz de preservar os interesses que esta atingiria. Modifica estruturas para que sigam atendendo, com mais eficácia, aos mesmos fins. Tal se deu aqui nos anos 60/70 com o acesso das classes médias ao ensino superior e nos 2000/2010 com o das classes populares. 

A ditadura de 64 e as agências de inteligência dos EUA sabiam do potencial explosivo da questão dos excedentes e que não a contornariam só com repressão nem podiam depender de uma estrutura universitária incapaz de formar a quantidade de profissionais necessária a uma economia urbana em expansão e ao próprio Estado. 

Mas temiam abrir a universidade pública às massas quando os estudantes organizados dentro dela ou pela reivindicação de nela entrar compunham, junto aos operários que reerguiam a frente em Contagem, Osasco e Cabo de Santo Agostinho, a vanguarda política do povo brasileiro (em 1969, na Argentina, a aliança operário-estudantil enterrou, com o Cordobazo, outra ditadura). 

Ao mesmo tempo, criaram-se novas universidades estatais, sobretudo no interior; ampliaram-se vagas nas já existentes, com novos cursos; e abriram-se cursos superiores nas escolas técnicas federais, também em expansão. O desvirtuamento dessas ações (positivas em princípio) pela concepção ideológica congênita às novas instituições, sobre as quais o dispositivo burocrático do poder central e as oligarquias locais exerciam um controle bem maior que sobre as preexistentes, era o problema menor, embora grave. 
Muito pior foi o gordo subsídio ao ensino superior privado, que absorveu muito mais matrículas que o estatal. Com isso, escoaram-se milhões de jovens para escolas sem organização discente, reduzindo-se a base social do movimento estudantil e a pressão sobre o Estado. E azeitaram-se as relações da facção que o geria com os donos delas (igrejas, sobretudo a católica; esquemas políticos regionais; e meia dúzia de capitalistas típicos).

À questão social da escassez de vagas, ofereceram-se penosas soluções individuais: obter bolsas também prelimitadas, encarando colegas, sobretudo os da mesma origem social, como concorrentes; endividar-se; usar o salário para pagar mensalidades, etc. 

Não é acidental que se tenha dado a essas escolas, para ministrar uma formação em geral restrita, dinheiro capaz de custear número maior de vagas nas públicas. A formação dos quadros dirigentes e funcionários mais graduados do Estado e das empresas manteve-se em poucas instituições, cabendo às demais formar mão-de-obra em ambiente despolitizado e devolver aos artífices dessa política parcela do dinheiro que eles fazem jorrar para elas. 

O tópico 6 descreve também a ação do PT em seu ciclo de gerenciamento do Estado (2003-16), que se completa com financeirizacao e formação de monopólios no sistema privado e reserva de cotas para estratos sociais não privilegiados. 

Em 12/04/2004, na Folha de São Paulo, Marta Salomon e Luciana Constantino mostraram ser possível duplicar as vagas das universidades federais com os impostos e contribuições que as particulares "filantrópicas" não pagam.

Em 16/05, no mesmo jornal, o então ministro da Educação, Tarso Genro, e seu então adjunto e logo sucessor, Fernando Haddad (FH-2), responderam que a ideia de que o ensino privado seja mantido por quem o usa, e não por toda a população via Estado, é neoliberal e elevaria mensalidades. Em defesa do subsídio às "instituições educacionais de assistência social", base do ProUni , alegaram que "a desoneração tributária do pão não favorece o padeiro, mas quem tem fome". (Em 2013, quando caía a carga fiscal das empresas de ônibus e subiam as passagens, Tarso, então governador do RS, e FH-2, prefeito de São Paulo e associado para tal fim ao então governador Geraldo Alckmin, responderam via PM [Polícia Militar] com balas de borracha, cassetetes e gás lacrimogêneo aos jovens trabalhadores e estudantes que questionavam a aparente incoerência). 

Nos anos 50, o embate sobre entrega de recursos públicos a escolas privadas opusera Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira a Carlos Lacerda. O PT optou por Lacerda. E fez pior. 

O dispositivo da lei de educação de 1961 que permitiu isso obrigava os destinatários dessas verbas a ter gratuitamente alunos pobres "no valor correspondente ao recebido". A de 1971 dispôs que a subvenção se daria quando custasse menos que abrir escolas públicas.

E, no auge ideológico do privatismo (1998), condicionou-se a imunidade fiscal das pilantrópicas [1] à reversão de no mínimo 20% de seu faturamento total à gratuidade e limitou-se a isenção previdenciária ao valor das mensalidades de que abrissem mão.

Já o ProUni só requer delas a reserva de 10% das vagas a bolsistas integrais e ainda estende as isenções de imposto de renda [2] , PIS e contribuições sociais sobre o faturamento e o lucro líquido às assumidamente mercantis, caso ofereçam em bolsas (mesmo parciais) 8,5% do que faturam com mensalidades. Se Lacerda, Médici e Fernando Henrique Cardoso (FH-1) foram verdadeiras mães para o ensino privado, FH-2 foi uma avó. 

De 2004 a 2015, o Estado injetou no ensino superior privado mais de R$ 80 mil milhões – uns 10% via renúncia fiscal do ProUni e 90%, por meio do Fies . O Brasil passou de 3,9 milhões de matrículas universitárias (2003) a 8 milhões (2015); a participação das instituições públicas caiu de 29 para 25%, o inverso da Argentina, onde tinham 77% em 2014. 

O ProUni e o Fies levaram a coisas como "a compra da Somos Educação (editoras Ática, Scipione, Atual, Bemvirá e Saraiva, PH, Anglo, Maxi, Colégio Motivo, Plurall, Sigma, Ético, Geo, Red Ballon, SER, Chave do Saber, Alfacon, Integrado) pela Kroton (Anhanguera, Unime, Unopar, Uniderp, Unic, Pitágoras, LFG e Fama). O maior grupo de ensino superior do Brasil (Kroton) acaba de comprar o maior de educação básica. O grupo resultante também tem negócios em editoras e cursinhos para concursos. O valor da operação foi de R$ 4,6 mil milhões. Os maiores acionistas da Kroton são os fundos BlackRock [3] , JP Morgan Asset Management, Capital World, Invesco e Coronation" – escreveu Gustavo Gindre.
Em 2017, a Kroton tentara comprar a Estácio de Sá, numa das oito operações que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) vetou entre 4,5 mil analisadas desde 2011. Interlocutores privilegiados da socialdemocracia alemã que tantos revolucionários matou (Rosa Luxemburgo, por exemplo) em 1918-19 e 1974-77, Tarso e FH-2 promoveram a demonstração empírica da tese do melhor economista que ela teve: Rudolf Hilferding, que, antes de renegar o marxismo, concluiu que a dependência do crédito leva à fusão entre o capital bancário e o industrial (ou, no caso, de serviços) sob controle dos operadores financeiros e à monopolização total de cada ramo de atividade. 

Com um crescimento de 22.130% no lucro da Kroton de 2010 a 2015, dois de seus sócios, Walfrido Mares Guia e Antonio Carbonari Netto foram os maior doadores do caixa 1 das campanhas, respectivamente, de FH-2 à prefeitura de São Paulo, em 2016, e de Maria do Rosário – casada com um capanga que Tarso levou ao MEC e serviria também a FH-2, Eliezer Pacheco – à Câmara federal, em 2010 (em 2014, o doador foi a própria Kroton). Já a Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) contratou o chefe de gabinete de Tarso e adjunto de FH-2 na secretaria executiva do MEC, Jairo Jorge, assim que ele deixou o cargo, pagando-lhe, em valores de hoje, R$ 20 mil mensais e R$ 800 mil por "consultoria", como revelou Naira Hofmeister no Extra Classe de 12/2009. 

Aos estudantes, o Fies proporciona um diploma e uma dívida – ou só a dívida, caso não concluam o curso. 

Na cidadela do capitalismo (os EUA), é considerado um problema grave que os jovens se formem devendo dezenas ou centenas de milhares de dólares e precisem aceitar empregos que, de outro modo, recusariam. Aqui, farsantes como FH-2 dizem que isso é uma conquista. 

Quem faz isso possível? Uma direita tão ou mais canalha, para quem o mal que o PT fez foi dar vida mansa às vítimas desse arranjo e que defende agora, pela boca de Geraldo Alckmin e Gustavo Franco, a cobrança de mensalidades no ensino público; e uma "esquerda" incapaz de exigir uma reforma que a Argentina fez entre 100 e 65 anos atrás. 

O livre ingresso (e, em sua falta, o exame de suficiência) não são pautas maximalistas. Não garantem sequer possibilidade plena de concluir o curso ante as barreiras que o capitalismo impõe até em seus países centrais (a alta evasão subsiste na França). Nem tocam no problema central da universidade brasileira, que não é de onde seus alunos vêm, mas para onde vão, a quem servem após formados. Muito menos na iniquidade de ser aqui o ensino superior caminho quase único da ascensão social e esta a única via para melhorar de vida, como se os filhos de operários e camponeses não tivessem direito a viver melhor em sua classe de origem, mas só saindo dela – algo que deveria ser escolha guiada pela vocação, não imperativo material ou de status. 

São apenas o mínimo a esperar de um reformismo digno desse nome, até porque a Constituição preconiza o exame de suficiência ao assegurar o acesso ao ensino superior (graduação e pós) "segundo a capacidade de cada um" (art. 208, V), e não segundo o número de alunos que a burocracia universitária estatal queira ter. 

Nenhuma outra instituição do Estado brasileiro decide quantas pessoas atenderá. É indefensável que a universidade se interponha entre a demanda social por profissionais e o anseio das pessoas por formação. Na Argentina, apenas a ditadura genocida de 1976-83 fez isso: nem Onganía e Menem foram além de permitir os exames de suficiência que o reformismo de Cristina Fernández de Kirchner tornaria a abolir em 2015. 

A história da restrição do acesso ao ensino superior público brasileiro é também a da recusa da burocracia docente a sair da guilda e viver na república. Ela se mantém coesa pela escassez de seus membros e pelo férreo controle sobre a seleção deles. 

O que areja a universidade argentina e sustenta as conquistas da reforma de 18 é a amplitude do acesso. Ela torna necessário um número muito maior de professores, tirando de pessoas e grupos o monopólio de disciplinas, reduzindo seu poder sobre os estudantes e inviabilizando o grau de tirania que professores mais antigos e titulados exercem aqui sobre colegas mais jovens e alunos de pós-graduação – nível no qual tampouco vigora, lá, o sistema de número fechado, embora haja seleção por suficiência.

As próprias perspectivas profissionais dos pós-graduandos – que, em geral, aspiram a um cargo docente – são afetadas pela perversa pirâmide em que se reestruturou, nos governos petistas, o ensino superior brasileiro. Hoje, o doutorado é um requisito inelidível para as pouquíssimas vagas docentes das universidades federais e um obstáculo intransponível a um emprego nas particulares incubadas pelo Fies/ProUni: só em 2011, a Kroton demitiu 1.500 doutores e mestres para reduzir custos e aumentar o lucro de seus acionistas. 

Só à luz da iniquidade do regime de número fechado se pode avaliar a política de cotas e a conduta das frações liberais e petistas do movimento negro, que defendem um sistema em que entram alguns negros (por certo, mais que antes) na universidade pública, e não outro em que entrariam todos os negros – e brancos, orientais, indígenas e mestiços – que o desejassem ou, ao menos, que atingissem a nota mínima. 

O mesmo se aplica às cotas para alunos de escolas públicas e com renda [2] familiar até 1,5 salário mínimo per capita. Elas mudaram o perfil do alunado de alguns cursos (outros já tinham esse setor social como seu público), mas a distribuição mais justa de vagas escassas teve por premissa a renúncia a reverter a injustiça maior, que é a própria escassez. 

NR
[1] Pilantrópica: amálgama de pilantra+filantrópica 

[2] No Brasil chamam de renda a qualquer tipo de rendimento. 

[3] BlackRoch: Trata-se do mesmo fundo abutre que em Portugal comprou o Novo Banco (ex-BES) por preço negativo. 

[*] Jornalista.

O original encontra-se em anovademocracia.com.br/... 

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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