As
mulheres do Exército Brasileiro que fazem parte da missão de paz no
Haiti passam meses confinadas em contêineres longe da família e dos
amigos, tomam banho de água fria e vestem coletes à prova de balas de 12
quilos sob o calor de 40 graus.
Realizam esse trabalho para amenizar a
dor e o sofrimento das crianças e das mulheres de um dos países mais
pobres do mundo.
Os meninos no Haiti não choram. Se você fosse uma médica do Exército
Brasileiro que passou seis meses atendendo crianças de um orfanato
haitiano, voltaria para casa com essa impressão. Quando a pediatra
carioca Daniela Tarta, 29 anos, foi tratar um abscesso do tamanho de uma
noz na cabeça do pequeno Djevil, de 6, ele apenas fechou os olhos e
mordeu os lábios enquanto ela espremia a ferida em seu couro cabeludo,
sem anestesia. Durante toda a operação, que durou dez minutos, Djevil,
com os olhos fechados, não pediu para a médica parar. Nenhuma lágrima
escorreu pelo rosto. Com um curativo na cabeça, o menino se levantou da
cadeira, inexpressivo, e sentou com outras crianças que cantavam
sorridentes em um coral. Transtornado pela dor, não cantou. Apenas
balançou as pernas no ritmo da música, arrastando os cadarços
permanentemente desamarrados no chão de cimento. Ninguém prestou atenção
nos cadarços desamarrados de Djevil. Nem na sua dor. Os pais dele
morreram soterrados no terremoto que abalou a capital do país, Porto
Príncipe, em janeiro do ano passado. O irmão mais velho sobreviveu, mas
sumiu. Hoje, ele vive com mais 51 crianças em um orfanato em
Croix-des-Bouquet, um bairro pobre de Porto Príncipe, mantido por um
pastor haitiano e sua família, que, graças a doações do Exército
brasileiro, passou a ter água encanada e um gerador de energia elétrica
no início do ano. Os dólares doados por brasileiros garantem que haja
comida no prato dessas crianças todos os dias.
“Esses meninos possuem uma capacidade impressionante de suportar a dor.
Eles não têm para quem reclamar do sofrimento”, diz a pediatra Daniela. A
carioca entrou para o Exército há três anos e serviu no Haiti em 2011.
Durante a maior parte do tempo, trabalhou confinada no batalhão
brasileiro, atendendo os militares que, assim como ela, fazem parte da
Missão das Organizações das Nações Unidas para Estabilização do Haiti, a
Minustah, liderada pelo Brasil (leia o quadro no fim da matéria). Pelo
menos uma vez por mês ela costumava sair da base militar para atender à
população nas ações sociais do Exército ou como voluntária, no orfanato
onde vive Djevil. “Uma vez, fui costurar um corte no queixo de um
menino. Dei uma anestesia local, mas, quando comecei a dar os pontos,
ele dormiu. Fiquei impressionada.” No dia em que Marie Claire visitou o
orfanato, Daniela deu uma injeção intramuscular — bastante dolorida — em
uma criança de 4 anos, que também não chorou.
A capacidade das crianças haitianas de suportar a dor ajuda as
brasileiras a relativizar as próprias privações. Qualquer militar do
Brasil em missão no Haiti passa seis meses confinado, longe da família e
dos amigos. Por ter escolhido viver no país mais pobre das Américas e
um dos mais pobres do mundo durante esse tempo, a pediatra Daniela
perdeu o namorado. Ele também é militar e os dois decidiram juntos se
candidatar à missão depois do terremoto, quando a assistência médica se
tornou ainda mais urgente no país. “Fiquei sensibilizada e achei que
poderia ser uma experiência pessoal e profissional importante”, diz
Daniela. A convocação dela saiu antes da dele. “Fiquei dividida, mas era
uma oportunidade única”. O namorado se sentiu preterido. Ficou
enciumado e terminou a relação. Daniela também acredita que o parceiro
tem de vibrar com o seu sucesso profissional. “Realizei um sonho. No
Haiti, a escassez é tão grande que um atendimento médico simples faz
muita diferença na vida das pessoas.”
A presença de mulheres nas forças de paz vem sendo incentivada pela
Organização das Nações Unidas (ONU) no mundo todo. No ano passado, o
secretário-geral, o coreano Ban Ki-moon, reiterou a importância da
presença feminina nessas tropas porque “elas ajudam a relaxar tensões,
servem de exemplo para sociedades onde o machismo é extremo (caso do
Haiti) e ainda conseguem diminuir e combater a violência sexual”, já que
denúncias de abusos cometidos por soldados da ONU são frequentes. As
militares brasileiras começaram a desembarcar no Haiti em 2007, três
anos depois da chegada da Minustah no país, quando a segurança já estava
controlada. Desde então, ocupam principalmente postos de apoio às
tropas: são médicas, dentistas e tradutoras do próprio Exército.
Embora a presença delas seja crescente, ainda são minoria nos batalhões
que atuam no Haiti. Em agosto, quando Marie Claire visitou Porto
Príncipe, eram apenas 15 entre 2.200. Elas levam uma vida sem conforto.
Dormem em beliches, dentro de contêineres de lata brancos, com a sigla
imponente das Nações Unidas pintada em preto do lado de fora. O chão é
coberto por uma lona. Os alojamentos, apesar de simples, têm
ar-condicionado e internet sem fio. Os chuveiros, também instalados
dentro de contêineres, não têm água quente. Por causa do surto de cólera
que atingiu o país no ano passado, a água que abastece os batalhões tem
alta concentração de cloro. Irrita peles sensíveis e deixa os fios de
cabelo secos. De qualquer forma, a vida delas é confortável num país
onde cerca de 300 mil pessoas vivem em barracas nos campos de
refugiados, depois de terem perdido a casa no terremoto. A população do
país é de 10 milhões e de Porto Príncipe, 3 milhões. Mesmo casas de
alvenaria da capital haitiana não têm energia elétrica nem água
encanada. Não é difícil encontrar mulheres e crianças nuas nas ruas.
Elas tomam banhos em poças de água, nos rios enlameados e até mesmo nos
esgotos.
Durante o expediente, as militares vestem farda. Não podem pintar as
unhas de vermelho nem cores escuras e, se têm os cabelos compridos,
devem amarrá-los em um coque. Nos momentos de descanso, não podem usar
decotes, saias nem shorts curtos. Quando saem da base, costumam vestir
um colete à prova de balas de 12 quilos sobre a farda, capacete azul —
símbolo das forças de paz da ONU —, cotoveleiras e joelheiras. Elas
vestem o conjunto, apelidado de “tudão”, sob o calor de 40 graus.
As haitianas também suportam muito peso. É comum vê-las buscando água em
poços artesianos espalhados por Porto Príncipe. Elas caminham pelas
ruas empoeiradas e imundas — não há coleta organizada de lixo — com a
lata de água equilibrada na cabeça, o corpo esguio, as mãos livres. A
cadência do quadril garante que o balde chegue cheio em casa. Crianças,
mesmo as que estão aprendendo a andar, carregam garrafas d’água nas
mãos, ajudando suas mães.
Na cultura haitiana, as mulheres e crianças são menos importantes do que
os homens. Quando uma família tem pouca comida, o primeiro a comer é o
pai, depois a mãe, o filho mais velho. O caçula é o último. O estupro só
virou crime no país em 2005. As agressões feitas por maridos ciumentos
são, muitas vezes, tomadas como demonstrações de amor. Funcionários da
precária delegacia da mulher de Porto Príncipe, em Bel Air, um dos
bairros mais pobres da capital, dizem receber cerca de cinco reclamações
diárias de mulheres que apanham dos companheiros. A delegacia funciona
em uma barraca dentro do Forte Nacional, ocupado pelas tropas
brasileiras. A mesa do delegado fica embaixo de uma árvore. Hostis, os
policiais bufavam durante a entrevista e não responderam sobre a
frequencia com que esse tipo de violência é punido.
Pedradas e garrafadas são as agressões mais comuns contra mulheres. Em
uma ação do Exército, a dentista gaúcha Ana Anhalt, 39 anos, atendeu uma
mulher que foi apedrejada pelo marido. “Era uma menina de uns 20 anos.
Os lábios estavam cortados e ela perdeu os dentes da frente. Chorava
muito.”
Os militares brasileiros só andam escoltados pela cidade. Por conta da
proteção das espingardas calibre 12 dos soldados, carregadas de balas de
borracha, as brasileiras não estão tão sujeitas à violência. “Mas um
dia eu estava participando de uma corrida de rua e um menino de uns 10
anos passou a mão na minha bunda. Isso mostra como eles veem as
mulheres”, afirma Ana. Dentro da base, o namoro entre militares é
proibido. “Os homens do Exército sempre nos respeitaram. Nunca tivemos
problemas de assédio”, diz a dentista.
Ela conta que a presença das mulheres na tropa era motivo de preocupação
do seu chefe. “Não podíamos conversar por muito tempo com um homem que o
subcomandante achava que estávamos tendo alguma coisa”, afirma. “Nunca
aconteceu nada. Éramos poucas e estávamos em evidência o tempo todo.”
Num ambiente predominantemente masculino, onde a novela foi substituída
pelas lutas de vale-tudo na televisão, as mulheres não passam
despercebidas.
A obstetra fluminense Daniella Gil, 35 anos, voltou do Haiti no ano
passado. Ela chegou a Porto Príncipe em maio de 2009. A volta para o
Brasil estava prevista para o fim de janeiro de 2010. No dia 12 de
dezembro daquele ano, às 17 horas, ela estava digitando planilhas no
computador do ambulatório quando ouviu um estrondo e sentiu o contêiner
onde estava tremer. Seringas, remédios, gazes e saquinhos de soro caíram
no chão. “Achei que um caminhão tivesse batido no contêiner. Não
imaginei que fosse grave.” Na sequência, começou a ouvir os gritos de
desespero que vinham de fora da base militar. Pedidos de socorro, uivos
de dor, choro. Ela correu para o pátio onde os militares se reuniram.
“Foi quando soube que aquilo era um terremoto. Fiquei perplexa, um pouco
assustada, mas não tinha a dimensão da tragédia.”
Enquanto os militares brasileiros se reuniam no pátio para coordenar um
plano de ação, centenas de haitianos machucados entraram na base em
busca de ajuda. “Os negros estavam brancos por causa da poeira e do cal.
Pais chegavam com filhos mortos nos braços. Quando dei a notícia ao pai
de uma menina de 4 anos que a filha dele não podia ser reanimada,
começou a gritar que ia nos matar. Logo, caiu em si e em prantos. Não
tive tempo de deixar a emoção extravasar. Havia muita gente machucada
precisando de atendimento. Foi assim durante toda a noite. Até hoje
lembro o desespero de um policial haitiano que trabalhava conosco e que
perdeu a famí¬lia toda naquele momento.”
Algumas horas depois do terremoto, chegou à base militar uma grávida
prestes a parir. O pai da criança era um pastor que morava nas
redondezas do batalhão. A obstetra fez o parto em meio à confusão.
Nasceu uma menina. Os pais decidiram dar o nome do bebê de Daniella, em
agradecimento à médica. Naquela mesma noite, a médica Daniella fez mais
dois partos. Outra recém-nascida ganhou o seu nome. “Passei a noite
trabalhando, a terra ainda tremia. Dormi algumas horas pela manhã,
acordei e voltei a atender. Durante os três dias que se seguiram ao
terremoto, só dei umas cochiladas.”
Num momento de descanso, Daniella mandou um e-mail para amigos e
parentes contando os detalhes do que estava vivendo (leia o texto). O
e-mail caiu nas mãos de uma professora de medicina do Rio Grande do Sul,
que leu o texto para os alunos na sala de aula, como um exemplo da
causa maior da medicina. Daniella ficou um mês além do previsto no
Haiti. “Quando voltei, fiquei semanas calada, introspectiva, tentando
entender o que vivi. Até hoje me emociono quando lembro da solidariedade
de militares e civis que nunca tiveram nenhum preparo para lidar com
feridos ou mortos e nos ajudaram porque éramos poucos médicos diante da
catástrofe.” Quando soube que Marie Claire iria ao Haiti, Daniella
mandou um presente para a sua pequena xará, a menina de quem fez o parto
no dia do terremoto. Como no Haiti muitas ruas não têm nome e muitas
pessoas não têm RG, não conseguimos localizar a Daniella hatiana.
http://codinomeinformante.blogspot.com/2011/11/elas-levam-paz.html