Parlamentares tentam recolocar em pauta lei vetada por Lula. Caso
vigore, ela facilitará desrespeito a um direito trabalhista essencial: o
registro em carteira
Por Leonardo Sakamoto, em seu blog
Para atender à determinação do Supremo Tribunal Federal, de que o
veto de Dilma Rousseff à alteração das regras de distribuição de
royalties do petróleo só possa ser analisado após a análise de outros 3
mil vetos, o Congresso está desenterrando alguns esqueletos. Alguns com
cara de bem feia.
Há parlamentares que, na surdina, estão se articulando para que um
dos vetos presidencial, em especial, seja derrubado: o que trata da
chamada Emenda 3.
A emenda, que integrou o projeto que criou a Super Receita, propõe
que auditores fiscais federais não possam apontar vínculos empregatícios
entre empregados e patrões, mesmo quando forem encontradas
irregularidades.
Apenas a Justiça do Trabalho, de acordo com o texto, é
que estaria autorizada a resolver esses casos. Na prática, a nova
legislação tiraria o poder da fiscalização do governo, o que
dificultaria o combate ao tráfico de pessoas, ao trabalho escravo, ao
trabalho infantil e a terceirizações ilegais que burlam direitos do
trabalhador.
Originalmente, a emenda foi proposta atendendo à solicitação de
empresas de comunicação e de entretenimento que contratam funcionários
por meio de pessoas jurídicas, conhecidas como “empresas de uma pessoa
só”. O problema é o efeito colateral que isso pode criar para o restante
da sociedade.
O Congresso Nacional aprovou a emenda, mas o então presidente Lula a
vetou em março de 2007. Na época, trabalhadores foram às ruas para
apoiar o veto – milhares de metalúrgicos fizeram passeatas na região do
ABC, metroviários cruzaram os braços e bancários protestaram na capital
paulista.
Com as manifestações, a medida foi posta em compasso de
espera, uma vez que assustaram deputados e senadores favoráveis à
medida. Agora, como parte da discussão sobre o pacote de vetos,
reapareceram articulações, contando com a breve memória do brasileiro e
com a dificuldade de analisar atentamente uma única matéria quando são
milhares os vetos discutidos ao mesmo tempo.
Em um país onde milhões de pessoas são tratadas como ferramentas
descartáveis, a fiscalização do trabalho desempenha um papel
fundamental. Ela não é perfeita, mas sem esse aparato de vigilância, as
relações de trabalho seriam bem piores do que realmente são.
A
desregulamentação não levaria necessariamente à auto-regulação pela
sociedade, como profetizam alguns economistas, mas sim ao caos. Se, com
regras minimamente vigiadas, você – trabalhador – já é maltratado,
imagine sem.
De acordo com procuradores e juízes do Trabalho ouvidos por este
blog, no campo, por exemplo, a aprovação dessa proposta ajuda muito
fazendeiro picareta que monta uma empresa de fachada para o seu
contratador de mão-de-obra empregar safristas.
Dessa forma, ele se livra
dos direitos trabalhistas, que também nunca serão pagos pelo “gato”, o
contratador – boa parte das vezes tão pobre quanto os peões. E consegue
concorrer aqui dentro e lá fora sem reduzir sua margem de lucro. Que em
nosso país é mais sagrado que todos os santos e orixás.
Nas cidades, isso facilitaria e muito a manutenção de oficinas de
costura que contratam trabalhadores de forma precária ou os submetem a
condições análogas às de escravo, muitos dos quais imigrantes
latino-americanos pobres que vêm produzir para os cidadãos brasileiros.
Oficinas que, não raro, surgem apenas para que a responsabilidade dos
custos trabalhistas saiam das costas de oficinas maiores e de grandes
magazines. Você não vê o escravo em sua roupa, mas ele está lá.
Além de beneficiar os empregadores que querem terceirizar seus
empregados (ou legalizar os já terceirizados), a emenda 3 pode funcionar
como ponta-de-lança para outras mudanças. Abre a porteira para
regularizar de vez a situação das pessoas que ganham pouco, batam cartão
e respondam a um chefe, mas que são obrigados a criar uma empresa para
ganhar o salário e ficar sem os direitos trabalhistas. Se o bolo de
dinheiro fosse distribuído de forma justa entre patrões, chefes e
empregados em uma empresa, a defesa do veto da emenda 3 não seria tão
necessária. Mas não é o que acontece.
Colocar a emenda 3 em vigor também pode aumentar ainda mais o rombo
da previdência, pois ela tende a levar a uma diminuição no carregamento
do INSS. Idem para o FGTS, cujo caixa financia a casa própria e banca o
Programa de Aceleração do Crescimento. Isso abre a porteira a outros
projetos draconianos destinados a resolver os problemas que seriam
causados pela emenda 3, como reduzir os reajustes das aposentadorias a
fim de economizar.
Projetos como a emenda 3 fazem parte de uma mesma política para
diminuir o poder que o Estado tem de garantir que o empresariado tenha
um patamar mínimo de bom senso. Com o aumento da competição, cresce
também a precarização do trabalho e com ela o discurso da necessidade de
desregulamentação, ou seja: pá de cal nos direitos adquiridos e vamos
embora que o mundo é uma selva.
Durante as manifestações de apoio ao
veto à emenda 3 em 2007, uma retórica se tornou constante em círculos
empresariais e entre alguns colegas da área de economia: de que era um
absurdo trabalhadores fazerem greve que não fosse por emprego e salário,
mas por política trabalhista. Em outras palavras, protestar por água e
pasto, é horrível, mas vá lá. Já a luta para que o aumento da capacidade
de competitividade das empresas não seja feito engolindo os
trabalhadores é uma atitude deplorável. “Esse país não quer crescer”,
diziam eles.
Nesse ritmo, não me espantaria – num futuro não muito distante – ver
anúncios estampados em página dupla nas revistas semanais de circulação
nacional dizendo: “O Banco X pensa em seus empregados. Ele paga 13º
salário. Isso sim é responsabilidade social”. E nossos filhos olharão
para aquilo e, espantados, perguntarão: “pai, mãe, o que é emprego?”