Da Agência Fapesp
Por Frances Jones.
Agência FAPESP – Em 1678, o então rei dos Palmares firmou um acordo 
de paz com o governador de Pernambuco, a autoridade máxima sobre um 
território que englobava os atuais estados da Paraíba, Alagoas, Rio 
Grande do Norte, além de Pernambucano.
  | 
| Zumbi | 
A negociação durou alguns meses e envolveu intérpretes, envio de 
embaixadas, presentes e libertação de prisioneiros. De um lado, 
Ganazumba (ou Gangazumba), tio de Zumbi, séculos depois apontado como 
símbolo da resistência contra a escravidão; de outro, dom Pedro de 
Almeida, governador prestes a voltar para Portugal. 
Até agora pouco estudado e comentado pela historiografia, o episódio 
vem ganhando contornos mais definidos sob a luz de documentos 
originais, boa parte deles inéditos. 
A documentação tem permitido que Lara e outros historiadores tracem 
uma nova cronologia sobre Palmares. “Em geral, a historiografia 
periodizou a história palmarina a partir das guerras feitas contra eles.
 Procuro me concentrar na formação dos mocambos [os assentamentos de fugitivos] e entender como eles se organizavam em termos políticos e militares”, disse Lara à Agência FAPESP.
“A década de 1670 é importante porque marca o reconhecimento por 
parte das autoridades portuguesas e coloniais desse sobado (estado 
africano) em Palmares. Os termos do acordo negociado em 1678 constituem a
 maior evidência disso”, disse a historiadora.
Em seus estudos, Lara retoma teses de uma vertente da historiografia 
que dá ênfase às raízes africanas de Palmares, na qual se incluem os 
brasileiros Nina Rodrigues (1862-1906) e Edison Carneiro (1912-1972) e 
os norte-americanos Raymond Kent (1929-2008), Stuart B. Schwartz e John 
Thornton.
De acordo com Lara, um documento-chave para entender Palmares é uma 
crônica anônima, com data atribuída a 1678, escrita logo depois do 
acordo de paz selado entre Ganazumba e o governo de Pernambuco, quando 
d. Pedro de Almeida volta a Portugal e vai mostrar seus feitos às 
autoridades portuguesas.
“É uma crônica extensa, que faz uma história de Palmares, desde o 
seu início até 1678. Dá nome aos mocambos, descreve as relações entre os
 chefes militares e os chefes dos mocambos, conta as expedições feitas e
 equipara a uma conquista militar a vitória [parcial] obtida em 1677 por uma expedição que destrói os mocambos e está na origem do acordo de paz”, disse.
O grande ponto, segundo a professora titular do Departamento de 
História da Unicamp, é que essa crônica sempre havia sido lida pelos 
estudiosos a partir de uma publicação na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de 1859 – feita quase 200 anos após ser redigida. 
“As pessoas não viram o original, que estava perdido nos arquivos. 
Quando você olha o original, pode ver que houve transcrições 
incorretas”, disse Lara. Um bom exemplo é o dos nomes das lideranças 
palmarinas e dos principais mocambos ali descritos – com diferenças em 
relação aos consagrados pela historiografia.
“A maior parte de quem lidou com Palmares trabalhou com uma 
documentação impressa. E quem transcreveu e publicou fez uma seleção. Ao
 ir às fontes e aos arquivos, localizei uma quantidade muito grande de 
fontes ao redor desses documentos transcritos, muitas nunca publicadas”,
 disse.
Os achados estavam no Arquivo Histórico Ultramarino e no Arquivo 
Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, e na biblioteca pública da cidade
 de Évora, interior de Portugal.
Saindo da trilha dos Imbangala
Lara também parte de um trabalho publicado em 2007 por Thornton e 
pela historiadora Linda Heywood, da Boston University, nos Estados 
Unidos, sobre a história das guerras na África Central para estudar quem
 eram os africanos escravizados e trazidos para o Brasil que fugiram e 
acabaram se organizando em agrupamentos em vários pontos de uma extensa 
região nordestina ao norte do Rio São Francisco, caracterizada por matas
 de palmeiras.
“Hoje conseguimos saber com um pouco mais de precisão quem eram as 
pessoas trazidas para cá: muito provavelmente eram falantes de kimbundu,
 língua africana da região do então reino de Ndongo, que ocupava o que 
hoje é uma região de Angola”, disse.
Dos vários assentamentos de fugitivos – todos conhecidos nessa época 
como palmares –, um deles em especial se consolidou durante o período da
 ocupação holandesa (entre 1630 e 1654), formando uma rede de mocambos 
que se tornou conhecida depois como Palmares. Nove mocambos chegaram a 
abrigar no total cerca de 11 mil habitantes, de acordo com algumas 
fontes.
“Todo mundo diz quilombo dos palmares, mas a palavra ‘quilombo’ é 
empregada deslocadamente nesse contexto e é anacrônica para designar 
Palmares. A palavra empregada naquele período para designar 
‘assentamentos de fugitivos’ é mocambo”, afirmou Lara.
Segundo a historiadora, “kilombo” é uma palavra africana que 
significa “acampamento de guerra”, usada pelos grupos nômades guerreiros
 Imbangala, da África Central. Historiadores como o norte-americano 
Stuart Schwartz, da Yale University, consideraram que a formação dos 
quilombos nas Américas estava relacionada a esses acampamentos 
guerreiros – daí a origem do termo.
“Mas acho que essa não é uma matriz da formação dos assentamentos dos
 fugitivos no Brasil. Os kilombos Imbangala tinham rituais específicos, 
com morte de crianças, serragem de dentes e canibalismo. Como eram 
nômades, não tinham uma ligação territorial nem as linhagens que davam a
 legitimidade do poder, diferentemente do que ocorreu nos mocambos do 
interior de Pernambuco, onde se formou um reino linhageiro”, disse Lara.
Os mocambos se organizavam segundo uma gramática política 
centro-africana, explicou a pesquisadora. Como nos sobados 
centro-africanos (os potentados locais da África), os chefes políticos 
dos mocambos do Nordeste mantinham relações de parentesco entre si e 
todos estavam subordinados a Ganazumba, conhecido como rei dos Palmares.
 “Esse sobado que se formou no interior de Pernambuco foi reconhecido 
pelas autoridades coloniais como um poder político independente, com o 
qual se podia negociar”, disse.
Mudança para Cucaú
A pesquisadora conta que a ideia de as autoridades coloniais fazerem 
acordos com fugitivos sempre existiu – e não apenas no Brasil. O de 
1678, porém, foi o que mais progrediu. Boa parte dos habitantes dos 
mocambos de Palmares mudou-se para uma aldeia criada especialmente para 
recebê-los, Cucaú, e eles foram considerados livres.
A paz, no entanto, não durou mais do que dois anos. Uma parte dos 
mocambos, liderada por Zumbi, rejeitou o acordo e ficou em Palmares. 
Seguidores de Ganazumba, como seu irmão Ganazona, participaram de buscas
 para trazer os que haviam permanecido no mato. Ganazumba termina 
assassinado e Cucaú, destruída, provavelmente por tropas coloniais. As 
pessoas que moravam lá voltaram à condição de escravos.
“A história contada até hoje sobre Palmares é uma história militante e
 toda ela converge para o enaltecimento da figura de Zumbi como a grande
 liderança que jamais se curvou e resistiu à escravidão até ser morto em
 1695; as pessoas reiteram e usaram a mesma documentação para dizer mais
 ou menos a mesma coisa”, ressaltou Lara. “Essa história passa muito 
rápido pelo acordo de paz. Tão rápido que os termos do acordo nunca 
foram publicados nas coletâneas de documentos feitas sobre Palmares.”
Interessada em discutir as formas de dominação nesse período e o modo
 como africanos e indígenas lidaram com o domínio colonial, Lara 
recupera de todas as formas o acordo. “A história de Palmares, da 
maneira como a estamos estudando, ajuda a entender como a dominação 
colonial foi enfrentada e modificada pela ação dos índios e dos 
africanos na África e no Brasil.”
Com o auxílio do Projeto Temático FAPESP, Lara e sua equipe montaram 
uma base de dados sobre Palmares, organizada de forma a ser 
disponibilizada para consulta pública on-line. 
Cerca de 2 mil 
documentos foram digitalizados e aos poucos estão sendo transcritos. 
“Espero que, dentro de dois anos, tudo esteja aberto para o público”, 
disse.
Diversos bolsistas também produziram trabalhos relacionados à 
produção da base de dados. Um deles foi a monografia de graduação 
"Guerras contra Palmares: um estudo das expedições realizadas entre 1654
 e 1695", de Laura Peraza Mendes, que ganhou prêmio de melhor monografia
 de graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp em
 2011.
Lara agora trabalha para transformar em livro a tese  “Palmares &
 Cucaú: o aprendizado da dominação”, com a qual se tornou professora 
titular.