sábado, 8 de fevereiro de 2014

Brasil - Os dilemas para se tipificar o terrorismo.

O projeto de lei que pretende definir atos terroristas para aumentar a segurança durante grandes eventos esportivos é considerado uma limitação a garantias fundamentais.
17/01/2014 - JOANA NEITSCH


A proximidade da Copa do Mundo de futebol suscita discussão sobre um tema que normalmente não faz parte da realidade brasileira. A fama do Brasil de país pacífico se comparado a alguns do Oriente Médio e africanos faz do terrorismo um assunto distante.
Contudo a presença de delegações de Estados de alguns dos alvos mais visados no mundo durante os eventos esportivos é apontada como justificativa para se criar uma lei que especifique os crimes relacionados a práticas terroristas.
A Constituição Federal brasileira repudia o terrorismo no artigo 4.º, VII. E o elenca no artigo 5.º, XLIII, entre os crimes inafiançáveis. No entanto, não há nem no Código Penal nem em outra legislação infraconstitucional uma conduta tipificada como terrorismo. 
Agora, o Projeto de Lei 499/2013 deve ir à discussão no Congresso Nacional com o objetivo de definir o que é terrorismo. O assunto está agendado para entrar na pauta do Senado no dia 11 de fevereiro.
Reação
Movimentos sociais definem propostas como repressivas
Um documento de repúdio à Lei Antiterrorismo foi assinado por 60 organizações de movimentos sociais. Eles argumentam que a legislação representaria o “avanço da tutela penal frente aos direitos e garantias conquistados pelos diversos movimentos democráticos”. 
O manifesto diz que, ao reunir os verbos “provocar” e “infundir” com os substantivos “terror” e “pânico” (veja abaixo), a definição do ato se torna muito abstrata, dando ampla margem de interpretação para quem for apurar e julgar os atos supostamente terroristas.
Além do PL 499/2013, que está em tramitação no Senado, outros projetos de lei também visavam à definição do crime de terrorismo. Um deles, o PL 728/2011, teve o arquivamento recomendado por comissões parlamentares no fim de 2013. De acordo com a assessoria da senadora Ana Amélia de Lemos, uma das autoras do PL, a pressão dos movimentos sociais que alegam que o projeto levaria à privação da liberdade de expressão e de manifestação fez com que fosse considerada a sua prejudicialidade. Contudo o PL 499/2013 mantém questões controversas como as penas, consideradas altas para atos que, a depender da interpretação, podem ser tanto de manifestação política quanto de terrorismo.
Projeto de Lei
Confira como o crime de terrorismo seria tipificado de acordo com o PL 499/2013:
• Artigo 2.º
Provocar ou infundir pânico generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade física ou à saúde ou à privação da liberdade da pessoa.
Pena: reclusão, de 15 a 30 anos
• Artigo 4.º
Provocar ou infundir pânico ou terror generalizado mediante dano a bem ou serviço social.
Pena: reclusão, de 8 a 20 anos
• Artigo 5.º
Incitar o terrorismo.
Pena: reclusão, de 3 a 8 anos
• Artigo 7.º
Associarem-se três ou mais pessoas com o fim de praticar terrorismo.
Pena: reclusão, de 5 a 15 anos
O texto do PL foi elaborado pela Comissão Mista para a Consolidação da Legislação Federal e Regulamentação de Dispositivos da Constituição Federal, composta por senadores e deputados. 
Na justificativa apresentada pelos parlamentares ressalta-se a necessidade de se “dar contornos jurídicos concretos e razoáveis para a repressão de atos terroristas”, já que a Constituição e tratados internacionais ratificados pelo Brasil os repudiam. 
Além disso, o texto descreve como “constrangedor e irresponsável o fato de o único tipo penal que expressamente menciona o terrorismo remontar ao final do regime militar, no contexto da Lei de Segurança Nacional”.
O Delegado da Polícia Federal Flúvio Cardinelle Garcia, que será responsável pelo esquema de segurança durante a Copa em Curitiba, considera que o Código Penal dá conta de punir as consequências que seriam geradas por um ato terrorista, como mortes ou danos ao patrimônio. 
Na opinião dele, uma lei antiterrorismo seria benéfica para definir e punir os atos preparatórios, ou seja, os que se referem à organização das ações. Ele ressalta, contudo, que é preciso ter cuidado com a subjetividade do termo terrorismo.
Problema importado
Para o professor de Direito Penal da Escola da Magistratura do Estado do Paraná Adel El Tasse, o Brasil não precisa de legislação contra o terrorismo e isso seria apenas importar um problema dos outros. Para ele, esse projeto cerceia direitos e garantias fundamentais, como a liberdade de manifestação e “cria um Estado autoritário travestido de lei antiterrorismo”.
A aprovação do PL 499/2013 não é de urgência urgentíssima na opinião do professor de Direito Penal da Universidade Paulista Alexandre Daoun, para quem o interesse na aprovação deste projeto é muito mais político do que jurídico. 
Daoun avalia que o debate está levando em conta questões pontuais e não um amplo debate sobre a real necessidade dessa legislação. 
Ele compara a contingência da realização dos grandes eventos no Brasil com momentos em que outras matérias legais também foram alteradas. A Lei de Crimes Hediondos, por exemplo, teria sofrido influência da comoção nacional após o assassinato da atriz Daniella Perez, filha da autora de novelas Glória Perez, na década de 1990.
Terror é também uma questão semântica
A ideia de se tipificar o crime de terrorismo para que o Brasil apresente maior segurança durante eventos internacionais encontra como desafio o próprio significado do termo. Terrorismo envolve grupos rebeldes? Está relacionado a bandeiras políticas ou religiosas? Visa sempre a derrubar o poder vigente? As respostas a essas questões dependem muito do próprio posicionamento político e papel social de quem as faz. Um grupo considerado terrorista por uns pode ser definido por outros como revolucionário, que luta por liberdade.
Na Língua Portuguesa, terrorismo é definido como “modo de coagir ameaçar ou influenciar outras pessoas, ou impor-lhes a vontade pelo uso sistemático do terror” (Aurélio, 2009) ou “emprego sistemático da violência para fins políticos, especialmente a prática de atentados e destruições; ameaça do uso da violência a fim de intimidar uma população ou governo, geralmente motivada por ações ideológicas ou políticas” (Houaiss, 2009).
A advogada e professora Luciana Worms considera que todos os conceitos de terrorismo são importados, pautados pela Organização dos Estados Americanos (OEA). A partir desse viés, no passado, o terrorista podia ser um comunista; hoje, é um jihadista ou membro de uma organização de narcotráfico.
Ações bárbaras que causam mortes em massa nem sempre são suficientes para definir um terrorista, como observa a professora. Ela cita como exemplo a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA), que, apesar de ter plantado minas terrestres no país africano, nunca recebeu a alcunha de terrorista. O grupo teve como aliados os EUA. Do mesmo modo Baruch Goldstein, um fanático judeu, não foi classificado como terrorista. Nos anos 1990, ele invadiu uma mesquita e matou 27 muçulmanos que estavam rezando. O governo de Israel o definiu como louco.
Luciana atribui a preocupação em tipificar o terrorismo agora à pretensão do Brasil em entrar no Conselho de Segurança da ONU. “Isso tem uma função propagandista por conta dos eventos, mostrar para fora que o Brasil tem uma postura de combate.”

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