A religião é a política realizada em nome de Deus. O líder religioso,
assim como qualquer líder político, pretende governar o maior número de
pessoas possível. Um governo que se faz não por leis, mas por dogmas.
O monoteísmo é autoritário na sua essência. Nunca houve plebiscitos e
nem mesmo reuniões com representantes eleitos pelo povo para criar os
dogmas de uma religião. Eles são ditados de cima para baixo, por alguém
que fala em nome do próprio Deus e, portanto, é incontestável, mesmo
pela vontade da maioria.
Como os líderes religiosos não dispõem, nos dias de hoje, de um braço
armado para fazer valer suas leis pela força, precisam convencer seus
governados a se sujeitarem às suas normas pelo proselitismo. E mais:
precisam convencer também aqueles que não se sujeitam àquelas normas, ao
menos a respeitá-las.
A fé é a mais autoritária das ideologias políticas já inventadas. Um
instrumento político quase perfeito que permite ditar normas
unilateralmente, governar sem a necessidade de armas e, ainda por cima,
blindar-se de críticas em nome da tolerância religiosa.
Como em toda ideologia, há aqueles que acreditam piamente nela e
lutam para vê-la concretizada e há também aqueles que simplesmente a
tomam como pretexto para satisfazer seus interesses pessoais. Creiam ou
não em sua ideologia e em seus deuses, todos agem politicamente no
sentido de agregar cada vez mais um número maior de seguidores e de
acumular riquezas para sustentar a expansão de sua ideologia e de seu
poder político.
E não há nada de errado, por si só, em tentar expandir uma religião
ou uma ideologia, acumulando patrimônio e gente disposta a seguir seu
código de condutas. É natural que as pessoas se unam em torno de
convicções comuns e a partir daí surjam lideranças políticas. O problema
surge quando estas lideranças reconhecidas dentro de um grupo resolvem
expandir seu poder político para além do grupo, impondo suas normas de
condutas não a quem resolveu por conta própria aderir a elas, mas a quem
tem ideologias e deuses completamente diferentes. Neste ponto, não se
trata mais de uma questão religiosa, mas de uma questão meramente
política. A religião só é religião até ser imposta; depois disso é
simplesmente política e pode ser exercida tanto pela força das armas
como pelos votos de uma maioria fundamentalista. E o uso do nome de Deus
para mascarar o exercício deste poder político é a ferramenta política
mais hipócrita que já se inventou, mas tem funcionado muito bem ao longo
da história.
O exemplo mais bem sucedido deste exercício de poder político em nome
de Deus é o da Igreja Católica Apostólica Romana, que acumulou riquezas
e impôs suas normas de condutas para populações espalhadas por todo o
mundo em nome de seu Deus, durante vários séculos. A Inquisição e a
catequização de índios não foram ações religiosas, mas políticas. E
pouco importam as boas ou más intenções daqueles que as realizaram, o
fato é que buscavam com elas impor normas de condutas a populações que
não a aceitaram por livre e espontânea vontade.
O neopentecostalismo e a bancada teocrática
Na atualidade, o Vaticano perdeu grande parte de seu poder político
na Europa e, mesmo no Brasil, onde sempre foi muito forte, tem perdido
espaço para o neopentecostalismo que, nos últimos anos, vem acumulando
grande poder político e econômico.
Se, por um lado, a ausência da uma liderança unificada dificulta o
exercício do poder político por estas novas lideranças, por outro, sua
ideologia espiritual favorece bastante a acumulação de riquezas pelos
seus pastores. Enquanto a moral católica considera a temperança, a
caridade e a humildade como virtudes, o neopentecostalismo está fundado
na Teologia da Prosperidade e afirma que os verdadeiros fiéis devem
desfrutar de uma excelente situação econômica. Há, é claro, um detalhe:
para que Deus conceda ao fiel as benesses materiais, é preciso que este
faça um pacto com Ele, oferecendo-Lhe toda sorte de oferendas materiais,
dentre as quais se destaca o dízimo. É a chamada Doutrina da
Reciprocidade, que viabilizou todas estas rápidas expansões de igrejas
neopentecostais nos últimos anos.
Escudados na liberdade religiosa, pastores cobram impostos privados
de seus fiéis – o famoso dízimo – e não precisam pagar qualquer imposto
ao Estado, pois a Constituição da República garante em seu artigo 150,
VI, b, a imunidade tributária a templos de qualquer culto. Verdadeiros
impérios econômicos vêm sendo erguidos assim, tal como ocorreu no
passado com a Igreja Católica. E, tal como ocorreu no passado também,
esse dinheiro vem sendo usado para expandir o poder político dos líderes
desta Igreja, seja por meio da aquisição de meios de comunicações
(inclusive de redes de televisão), seja pelo financiamento de campanhas
para cargos públicos destes líderes que cada vez mais vêm ocupando
cargos, especialmente no Parlamento brasileiro.
Como sempre, os novos líderes espirituais afirmam que todos estes
investimentos materiais têm como único e exclusivo objetivo a expansão
da palavra do Deus deles e de seu código moral, que, como em toda boa
religião monoteísta, deve ser universalizado para o “bem de todos”.
Ainda que se admita, porém, que não haja interesses pessoais por trás da
expansão destes impérios da fé, fato é que o seu principal objetivo
declarado é a expansão de seu poder político, açambarcando a cada dia um
número maior de fiéis e impondo seu código de condutas a um maior
número de pessoas. Mesmo que para isso precise passar por cima do Estado
Democrático de Direito que, ao contrário do monoteísmo, não impõe
normas unilateralmente e pressupõe o respeito à pluralidade de opiniões.
Do ponto de vista exclusivamente político, o Estado Democrático de
Direito é o maior entrave à expansão do império econômico e político das
igrejas neopentescostais e de seus bispos. Não é à toa que cada vez
mais eles têm buscado conquistar cadeiras do Parlamento. E a bancada
teocrática tem se tornado a cada dia uma das principais forças políticas
de nosso Congresso, restringindo os direitos fundamentais de quem não
acredita em seu Deus em prol da expansão política e econômica de seu
império.
A teocracia é incompatível com o Estado Democrático de Direito, dado o
autoritarismo inerente ao monoteísmo. Não se realizam votações para
saber se é da vontade de Deus receber dízimos ou condenar os
homossexuais a passarem a eternidade no inferno. São seres humanos que
afirmam isso e que impõem aos outros a palavra de Deus que eles próprios
escreveram. E estas são ações políticas e como tais devem ser tratadas.
E é por isso que o Estado Democrático de Direito é, por sua própria
natureza, laico. Porque é impossível ser democrático e monoteísta ao
mesmo tempo. Assim como é impossível ser candidato a um cargo público e
bispo, pastor ou padre ao mesmo tempo. Há um evidente conflito de
interesses entre aquele que fala em nome de seu Deus e aquele que
pretende falar em nome do povo em meio ao qual nem todos acreditam em
seu Deus.
Para minimizar esta incompatibilidade é necessário, ao menos, que se
exija que bispos, padres, pastores e outros clérigos se licenciem de
suas atividades sacerdotais um ano antes de se candidatarem a cargos
públicos. Restrição semelhante já é aplicada pela lei complementar 64/90
a magistrados, diretores de sindicatos e outros cargos públicos, tendo
em vista a incompatibilidade de suas funções com uma campanha eleitoral,
e poderia perfeitamente ser aplicada também aos sacerdotes de qualquer
crença. Projeto de lei neste sentido foi apresentado pela deputada
Denise Frossard (PSDB-RJ) na Câmara dos Deputados em 2004 (PLP
216/2004), mas foi arquivado em 2007, pois ainda se encontrava em
tramitação no fim da 52ª legislatura e não houve pedido de
desarquivamento na legislatura seguinte.
Uma outra iniciativa necessária é limitar a transmissão de programas
religiosos em rádios e televisões para no máximo uma hora diária, tal
como foi proposto em 1999 (PLS 299/99) pelo senador Antero Paes de
Barros (PSDB-MT). A Constituição da República é explícita em seu artigo
221, ao determinar que a programação das emissoras de rádio e televisão
terá, por preferência, finalidades educativas, artísticas, culturais e
informativas. É inconcebível que, no Estado laico, concessões públicas
de rádio e TV sejam usadas, como são nos dias de hoje, em prol do
proselitismo religioso que não raras vezes passa boa parte do tempo
solicitando doações financeiras a seus fieis. Um autêntico merchandising
da fé, patrocinado pelo Estado que, por definição constitucional, é
laico.
Lamentavelmente, porém, há pouca vontade e coragem política dos
parlamentares brasileiros de desafiar o poder político e econômico do
novo e do velho clero. A esquerda tem sido bastante leniente com as
violações do Estado laico e as poucas inciativas para amenizar o
problema, como se viu, por mais paradoxal que seja, partiram do
conservador PSDB.
O Brasil precisa urgentemente de uma bancada secular no Congresso
Nacional para fazer frente à bancada teocrática (que prefere ser chamada
de evangélica). Os valores democráticos da laicidade precisam ser
reafirmados por parlamentares que não temam desafiar o crescente
fundamentalismo religioso que a cada dia ganha espaço na política
brasileira. Não se trata de um combate a qualquer religião, mas à
política realizada em nome de Deus e que pretende impor seus códigos de
condutas conservadores a toda uma população.
A luta pela efetivação do Estado laico é a luta pela democracia. Por
leis que sejam ditadas não de cima para baixo por uma autoridade que
fala em nome de Deus, mas construídas a partir do diálogo plural e com
respeito aos direitos fundamentais. E isto, deus monoteísta nenhum
poderá conceder, pois seus mandamentos são – por definição –
mandamentos.
Monoteísmo e democracia são ideologias políticas antagônicas. É esta a grande cruzada da religião contra o Estado.
Texto de autoria de Tulio Viana.
http://tuliovianna.wordpress.com/2011/09/13/a-religiao-contra-o-estado/
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