quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Ética na ciência e na comunicação de ciência.

Por Demarchi. ENTREVISTA / ELIANE S. AZEVÊDO.

Revistas de alto impacto publicam as piores fraudes - Do Observatório da Imprensa, Por Mauro Malin em 24/12/2012 na edição 726.

Um professor veterano da Universidade do Texas, Charles “Chip” Groat, pediu demissão ao final da revisão de um estudo que conduziu sobre o processo de perfuração do solo conhecido como fracionamento hidráulico (“hydraulic fracturing”, ou “fracking”). A informação saiu em reportagem do site StateImpact Texas no dia 6 de dezembro.

O relatório original de Groat, divulgado em fevereiro de 2012, tratava de extração de gás de xisto (“Fact-Based Regulation for Environmental Protection in the Shale Gas Development”). Concluía não haver relação entre método de perfuração e contaminação da água. O que o autor não revelou é que ele integrou o conselho de uma empresa de perfuração durante todo o tempo que durou o estudo, o que lhe valeu receber US$ 1,5 milhão em cinco anos. A revisão encontrou erros de elaboração, além de outras falhas na maneira como o relatório foi divulgado.

Fórum Mundial de Ciência - Ética na ciência e na comunicação de ciência é um dos grandes temas propostos para a discussão da participação brasileira no sexto Fórum Mundial de Ciências (FMC), que se realizará no Rio de Janeiro em novembro de 2013 (veja informações sobre o evento em http://fmc.cgee.org.br/). Uma entrevista e um artigo trataram do assunto em edições recentes deste Observatório (“Comunicação científica para um público mais atento” e “Ciência em tom jornalístico”).

A preparação brasileira para o FMC incluiu até agora quatro encontros preparatórios, realizados em São Paulo, Belo Horizonte, Manaus e Salvador. Nesse último, a médica Eliane S. Azevêdo, professora emérita e ex-reitora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em palestra sobre “Desafios da Ética e Integridade Científica”, falou sobre a influência da ciência na definição de políticas públicas nas áreas da saúde pública, medicina, clima, ambiente, agricultura, energia, influência que amplia a exigência de ética na condução e na divulgação das pesquisas.

Dois fenômenos foram destacados pela professora: o crescimento do número de desvios éticos em publicações científicas e subsequente retratação pública de artigos publicados, e o custo da má prática em ciência, assunto novo, abordado com rigor e clareza pela palestrante.

A professora Eliane concordou em dar a entrevista abaixo, feita por correio eletrônico, na qual ela destaca que as fraudes mais graves são produzidas por pesquisadores de primeiro time, por isso sua detecção é mais difícil, custa mais caro e demora mais, do que resultam danos mais extensos e profundos.

Em relação aos meios de comunicação, a ex-reitora diz que “as desonestidades mais graves, isso é, fabricação e ou falsificação de dados são preferencialmente publicadas em revistas de alto impacto (ScienceNatureCell etc.).”

Mais fraudes, vigilância intensificada - O aumento do número de retratações, observado em pesquisa que a senhora mencionou em sua apresentação, indica acréscimo da ocorrência de comportamentos fraudulentos ou intensificação da vigilância?

Eliane S. Azevêdo – Creio tratar-se de uma confluência de fatores dentre os quais intensificação da vigilância e aumento de ocorrência, conforme lembrado. Esses fatores, todavia, estão interligados a variáveis causais como pressões institucionais por publicações; obsessão em atendê-las; competição por recursos; prestígio conferido a currículos longos; crescente número de pesquisadores; ambições pessoais sem crivo moral, etc. Além disso, ações educativas para a boa prática científica ainda são incipientes e até mesmo ausentes em muitas instituições universitárias, grupos de pesquisa, cursos de pós-graduação, editores de revistas, etc.

A senhora diria que falhas de filtragem de artigos em revistas científicas tendem a ser magnificadas em jornais e revistas, cujos filtros costumam ser muito mais precários?

E.S.A. – As editoras de revistas científicas e seu corpo editorial compartilham igual responsabilidade social na divulgação de boa ciência, isso é, ciência sem fraudes, fabricação, falsificação, plágios, autoplágios, duplicações, fatiamentos, etc. A criação do COPE (Commitee on Publications Ethics) em 1997, na Inglaterra, e ampliação à Wade (World Association of Medical Editors) com objetivo central de prover editores e revisores com conhecimentos para melhor lidar com situações suspeitas de desvios éticos na pesquisa, traduz a importância do problema sob o olhar das revistas científicas. Infelizmente, não se trata de uma prática dos editores em todos os países, e suspeitamos ser praticamente inexistente em jornais e revistas de divulgação.
As revistas científicas devem funcionar como a última barreira na filtragem ética. Se falha a filtragem e a publicação é reproduzida em jornais e revistas dificilmente haverá reversão de danos com a retratação.

No Brasil, cientistas alertam imprensa - Ao que tudo indica, a grande imprensa brasileira está alheia à extensão dos prejuízos causados pelas falhas éticas em publicações científicas. A senhora concorda com essa hipótese?

E.S.A. – Ainda que esteja alheia a uma avaliação criteriosa dos prejuízos, não está alheia à existência das questões da integridade científica. Existem cientistas brasileiros alertando e até mesmo conclamando por ações educativas e ou de vigilância. Considero urgente que, no Brasil, a geração atual de pesquisadores íntegros aponte os danos intelectuais, morais e financeiros gerados pela má prática científica e agregue reflexões pertinentes aos ensinamentos que transmite aos alunos. 
Existe ampla literatura internacional sobre o tema, inclusive com estudos de meta-análise sobre artigos retratados e formulação matemática para cálculo do custo financeiro de um artigo retratado. [Meta-análise, segundo o criador do termo, Gene Glass, é “uma análise estatística de grandes coleções de resultados de estudos individuais com o propósito de integrar os achados desses estudos”; fonte: Wikipedia.]
O perfil dos desonestos em ciência já começa a ser desenhado: não são intelectualmente medíocres; as desonestidades mais graves, isso é, fabricação e ou falsificação de dados são preferencialmente publicadas em revistas de alto impacto ScienceNatureCell etc...
Quando a má prática é menos grave, por plágio ou duplicação, a preferência é por revistas de médio impacto. Essas associações são relatadas com significância estatística. Assim, a ocorrência e o tipo de má prática em ciência têm certa aderência ao nível intelectual dos desonestos. O recorte moral dos cientistas atuais parece não diferir do resto da humanidade... Teríamos sido diferentes no passado? Confiamos que melhoremos no futuro...

Demora agrava prejuízos - Fale sobre as consequências negativas da demora entre a publicação de texto fraudulento e a retratação.

E.S.A. – Começamos a pensar sobre essa associação em 2009, quando lemos na newsletter do Office of Research Integrity (ORI) o relato de dezesseis artigos retratados, todos da autoria de dois pesquisadores americanos e publicados entre os anos de 1997 e 2005. Entre o início das publicações e a data das retratações passaram-se doze anos, período suficiente para que se construísse uma corrente de pensamento médico e práticas de ensino fundamentadas na consulta a artigos de revisão ou de meta-análise. 
Assim, resolvemos verificar através do repositório PubMed. Encontramos não apenas um longo trabalho de revisão com quatro citações dos artigos retratados, mas, também, o próprio texto da revisão tecia elogios aos trabalhos dos dois pesquisadores, agora reconhecidos como desonestos. Imaginamos que quanto maior o tempo decorrido entre a publicação fraudulenta e sua retratação mais se difundem danos irreparáveis à ciência. Com essa visão, escrevemos à direção do ORI, que publicou nossas considerações na newsletter de dezembro de 2009. Estudos recentes (Fang e col. 2012) demonstraram que o tempo entre a publicação e a retratação é em média de dois anos nos casos de plágio e de quatro anos nos casos de fraudes.

Plágio e fraude - Que mecanismo está por trás da constatação de que “quanto pior o tipo de fraude, mais tempo ela demora para ser reparada”.

E.S.A. – Os casos de plágios podem ser detectados por qualquer pessoa e comprovados mediante comparação dos dois textos: original e plagiado. Além disso, já existem no mercado aplicativos com funções específicas para detectar plágios.
Nos casos de fraudes, por outro lado, percorre-se penoso processo de investigação que nasce com a denúncia de suspeita, verificação inicial por comissão local da instituição, subsequente abertura de processo investigatório por órgão credenciado. A investigação examina as anotações originais, entrevista pessoas da equipe, além de conduzir o interrogatório aos pesquisadores suspeitos. Tudo isso requer tempo/horas de competentes pesquisadores, advogados, técnicos, burocracias, etc. e tem alto custo financeiro. 
É raro situações como a de certo pesquisador que impediu o andamento da investigação sob a alegação que os papéis com as anotações originais “o cupim comeu...” Por outro lado, não são raros os pesquisadores assumirem-se culpados, conforme constatamos nos relatórios públicos do ORI. Nos EUA, o ORI é órgão governamental com função específica de receber denuncia de má prática científica, conduzir o processo investigatório, divulgar as conclusões, indicar artigos para retratação e aplicar as respectivas penalidades aos pesquisadores infratores. Infere-se, assim, que quanto mais elaborada a montagem científica da fraude mais difícil vencer as dissimulações do pesquisador desonesto.

O CNPq constituiu uma comissão de ética, mas, salvo engano, ela ainda não teve oportunidade de examinar nenhum caso e de tomar alguma deliberação. Qual sua expectativa em torno do trabalho dessa comissão? Os problemas de fraude são graves no meio científico brasileiro?

E.S.A. – Temos conhecimento, sim, da criação dessa comissão. Percebemos que criar uma comissão tenha sido o passo preliminar para posterior instalação de um órgão ligado ao CNPq, mas independente, dirigido por pessoa de alta qualificação moral e científica e em dedicação exclusiva, amparada por competente equipe e infraestrutura investigatória, tudo isso bem protegido de qualquer fluxo de influência. Acreditamos não ser fácil, porém, sem ser impossível, criar-se algo semelhante ao ORI aqui no Brasil.
Desconhecemos estudos que indiquem a frequência de fraudes científicas no Brasil. Casos isolados já vieram a público. Concluímos reafirmando que ações educativas sobre integridade científica devem ser oferecidas, de imediato, na formação de jovens em iniciação científica, nos cursos de graduação e de pós-graduação, nos institutos de pesquisa, e paralelamente exigidas pelas agencias de fomento e revistas científicas.

***
A apresentação da professora Eliane S. Azevêdo no 4º Encontro Preparatório para o FMC, realizado em Salvador, pode ser vista aqui (trata-se do penúltimo vídeo; a fala da professora começa duas horas e 12 minutos após o início da exibição).

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