Esta reportagem foi publicada originalmente no site Brasil 247.
A morte de uma jovem
barbaramente violentada e espancada por seis homens demonstra que
modernidade e progresso pouco ou nada significam sem justiça e igualdade
de direitos para as mulheres.
2 de Janeiro de 2013 às 17:22.
Por Luis Pellegrini.
Quando cheguei a Nova Déli pela primeira vez, no ano de 1970, viajava sozinho e fiquei hospedado na ala mais modesta e barata da YMCA local, a Associação Cristã de Moços, situada na Jai Singh Road, perto da célebre Conaught Place, coração da capital indiana. À noite, homens batiam na porta do meu quarto. Queriam trocar rúpias por dólares no câmbio negro, ou vender tijolinhos de hashish, a maconha local. Susan, uma americana ligeiramente gorda que conheci no avião, também se hospedou lá. Contou-me que esses mesmos homens também batiam à sua porta, com os mesmos objetivos, e um a mais: queriam sexo. A chateação só parou quando decidimos colar nas portas dos nossos quartos mensagens em letras garrafais, em inglês, avisando que chamaríamos a polícia se continuássemos a ser importunados.
Fui à Índia várias vezes desde então e, tanto na capital quanto em outros lugares, testemunhei inúmeros episódios de violência insana. Desde a de um carroceiro que literalmente matou seu cavalo a pauladas na minha frente, no meio da rua porque o animal, esquelético e doente, empacou recusando-se a continuar puxando a carroça, até uma briga furiosa entre dois motoristas de taxi, ambos da religião sikh (aqueles homens que não cortam a barba e os cabelos, prendendo-os com turbantes). Em plena Conaught Place, eles se esmurravam pra valer e uma pequena multidão formara um círculo ao redor deles para apreciar o espetáculo. Parecia uma rinha de galos e ninguém interferia para apartá-los. Ao vê-los, ambos sangrando, pensei que a sagrada ahimsa, a doutrina da não-violência, uma das bases da religião hinduísta, bem como o pacifismo de Gandhi, só poderiam ter sido criados para contrabalançar a brutalidade e a truculência que existem e permanecem, como demônios sorrateiros, por detrás da luminosa espiritualidade indiana.
Em Mumbai, policiais reprimem a golpes de bastão um grupo de manifestantes que protestam contra os crimes de estupro no país |
Não me surpreendeu, assim sendo, a recente notícia de que mais um estupro, desta vez praticado por vários homens, levou à morte uma moça na capital, Nova Déli. Violência de homens contra mulheres, na Índia, está sempre na ordem do dia, e raramente os culpados são denunciados, presos e punidos. Mas fiquei muito surpreso com a impressionante reação popular que esse enésimo estupro provocou.
Os protestos começaram quase imediatamente, e não se limitaram à capital, alastrando-se por quase todo o território nacional. Milhões saíram às ruas, aos gritos - homens e mulheres juntos - carregando faixas e cartazes exigindo imediatas providências por parte das autoridades. Faixas e cartazes cujos dizeres – pode-se ver nas fotos – estão cheios da mesma violência: “Torturem e matem os estupradores”, “Sem piedade! Enforquem esses homens”, “Matem esses bastardos. Queremos justiça!”
'Sem piedade! Enforquem os estupradores', diz a inscrição no casquete dessa jovem indiana. Raramente o país testem unhou uma onda tão forte de protestos como esta |
Essa raiva há muito estava reprimida nas gargantas dos indianos, sobretudo na das mulheres indianas. Até agora, eles assistiam aparentemente impassíveis às impressionantes estatísticas da violência contra mulheres em seu país.
Em 2012, mais de 635 casos de estupros foram denunciados apenas em Nova Déli. Quantos estupradores foram condenados? Apenas um foi preso e continua na cadeia! É preciso notar que Déli é uma cidade orgulhosa, ponta de lança da Índia moderna, a Índia gigante que, como o Brasil, a China e a Rússia, faz parte do Bric. O que estará acontecendo então no antigo país asiático? Para Jason Burke, correspondente do jornal britânico The Guardian, no mix composto de raiva, sentimentalismo e negação da realidade característico da cultura indiana, um fenômeno importante está ocorrendo: o choque entre o novo e o velho modelo de civilização.
A nova Índia tenta vender ao mundo a imagem de nação moderna e tecnológica. Mas a mensagem com frequência surge manchada pela atitude retrógrada em relação às mulheres e às castas sociais menos favorecidas pela sorte. Tal incoerência continua a se manifestar, numa miríade de situações. Por exemplo: por que a jovem vítima do estupro foi levada às pressas para Singapura? É incompreensível, quando se sabe que a Índia possui alguns dos melhores hospitais do mundo.
As clínicas de Chennai estão repletas inclusive de europeus e norte-americanos que para lá se dirigem em busca de cura para seus problemas de quadris e de joelhos. Por que remover para outro país, tão distante, uma paciente com órgãos já em processo de falência, traumatismo craniano, que já sofrera uma parada cardíaca e que tivera parte de seus intestinos removidos por causa dos ferimentos que lhe foram infligidos com o uso de uma barra de ferro?
Estudantes indianas protestam em Allahabad contra a prática do estupro em seu país, um crime raramente punido pelas autoridades |
Quando falamos de estupro, não estamos falando de sexo. Estamos falando de poder. De poder obtido a partir da tortura e da brutalidade. Subitamente liberados dos pruridos machistas que sempre os caracterizaram, os jornais indianos não mais escondem a terrível sucessão de casos de violência contra mulheres no país. Há poucos dias, uma garota de dois anos de idade foi violentada à morte na província de Gujarat. Ao mesmo tempo, a vítima de outra gangue de estupradores cometeu suicídio. Sua opção, oferecida por um juiz local, estava entre retirar a queixa-crime ou casar com um dos que a violentaram.
Como no Brasil e na maioria dos países, violência, sexo e poder, na Índia, constituem um trio de antiga tradição.Suzanna Arundhati Roy, importante escritora, novelista e ativista antiglobalização indiana, tem se pronunciado sobre como as forças armadas de seu país usam o estupro como arma nas províncias rebeldes do Kashmir e em Manipur. É comum a polícia e muitos homens pertencentes às castas mais elevadas fazerem o mesmo. Apesar de a moça violentada pela gangue dos seis não pertencer à casta dos dalit - os intocáveis. Para as mulheres dalit, o estupro é coisa do mais corriqueiro quotidiano; onde não existem banheiros, as mulheres são violentadas nos bosques.
Dia e noite os manifestantes encheram as ruas das cidades indianas pedindo justiça e o término da política da impunidade em seu país |
A jornalista Suzanne Moore, do The Guardian, arguta conhecedora da Índia, comenta que hoje nem sequer as mulheres indianas da classe média estão a salvo de ataques: “Elas não podem sair às ruas depois do anoitecer. Uma delas me disse que a situação está pior do que na Arábia Saudita. Ninguém confia na polícia. Uma mulher violentada tem de passar pelo “teste do dedo”, no qual um médico determina se a sua vagina está ‘acostumada a ter relações sexuais’. É bem compreensível a ira acumulada das mulheres indianas em relação a tais situações.
O corpo da jovem estuprada foi trazido de Singapura durante a noite e cremado na madrugada, cercado da maior segurança para evitar mais protestos. Ela não foi levada para sua aldeia natal, como manda a tradição. Por causa disso, sua mãe teve um colapso. O nome da jovem não foi divulgado. Ela permanece não identificada. Ser estuprada, na Índia, ainda é considerada uma coisa vergonhosa.
A reação do governo até agora tem sido pífia. Apesar de acuadas pelas manifestações populares, as autoridades parecem não saber o que fazer. Os editorialistas mais importantes do país comentam que o grande temor dos políticos é que toda essa massa jovem – bem educada e composta igualmente por mulheres e por homens – que protesta nas ruas se parece muito com aquela outra massa, a da Primavera Árabe, que também saiu às ruas, exigiu mudanças e derrubou governos...
A jovem anônima estuprada até a morte virou cinzas na calada da noite. Mas sua pira funerária continuará a arder.
A FAVELA DOS ESTUPRADORES
Os jornalistas indianos Amol Sharma e Krishna Pokharel visitaram em Nova Déli a favela Ravi Dass Camp, onde moravam quatro dos seis estupradores que compunham a gangue. O relato que escreveram dispensa comentários.
Por: Amol Sharma e Krishna Pokharel/The Wall Street Journal.
A favela Ravi Dass Camp, bairro paupérrimo na periferia de Nova Déli, é um labirinto de ruelas estreitas, esgotos a céu aberto, e casinhas de madeira, zinco, barro e tijolos cor de caramelo. Roupas são penduradas para secar nos cabos e fios elétricos suspensos logo acima dos tetos de metal ondulado.
É uma típica favela do Terceiro Mundo, na qual os moradores dizem tentar viver de forma honesta, fazendo tudo que aparece para ganhar algum dinheiro, de diaristas na construção civil a condutores de riquixás, ou faxineiros nas casas.
Agora, Ravi Dass Camp tem de enfrentar uma fama inesperada e não desejada: ela é o lar de quatro dos seis homens acusados de estuprar, a 16 de dezembro, uma jovem estudante de 23 anos. O crime ocorreu a bordo de um ônibus. Os estragos provocados pelos violentadores no corpo da vítima foram tamanhos que ela não resistiu, vindo a morrer no sábado 29 de dezembro.
Parentes e vizinhos dos supostos violentadores dizem que eles estão tristes, revoltados e envergonhados pelo que aconteceu. “A reputação da nossa comunidade foi manchada”, diz a senhora Asha, que atende por apenas esse nome.
Asha é parente de dois dos acusados: o motorista do ônibus Ram Singh e seu irmão Mukesh Singh. Seu marido, Raju, é cunhado dos dois e eles moram na casa ao lado da dos irmãos Singh e família há muitos anos.
Ela conta que Ram e Mukesh deixaram sua aldeia natal no Rajastão e se mudaram para Nova Déli no começo dos anos 1990. Eram ainda meninos quando abandonaram a escola para ajudar os parentes mais velhos na construção de estradas e de casas. Mais tarde, os irmãos tornaram-se motoristas.
Ambos estão presos incomunicáveis, e não podem ser visitados, nem sequer pelos advogados que os representam.
Dizem os moradores que Ram se apaixonou pela esposa de um homem da vizinhança. A mulher abandonou marido e três filhos para viver com ele num outro bairro afastado de Déli.
Então, há cerca de três anos, a mulher morreu. Os moradores dizem acreditar que ela morreu de doença, mas não estão certos disso. Ram Singh voltou a viver com seus parentes na favela Ravi Dass Camp.
Alguns vizinhos dizem que ele voltou mudado, mais distante e deprimido. Logo depois, dizem, sofreu um acidente rodoviário e foi hospitalizado.
Vizinhos descrevem Ram e Mukesh como rapazes briguentos e encrenqueiros, amantes da bebida, que às vezes promoviam algazarras noturnas perturbando o sossego das pessoas.
“Bebiam muito e faziam barulho, apesar dos nossos protestos”, conta Bhola Prasad, 60, vizinho de parede-meia com a casa de Ram e Mukesh. “Costumavam beber quando dirigiam os veículos, antes de dirigir, e quando voltavam para casa – em toda a parte”, diz a senhora Asha.
A jovem irmã de Kalu Pawan, um dos quatro estupradores residentes na favela Ram Dass Camp, cobre o próprio rosto diante da porta da casa da família |
No sábado, o casebre de Ram e Mukesh estava vazio. Um limão e um maço de pimentas vermelhas estavam pendurados na porta para evitar o mau olhado. Os parentes dos irmãos abandonaram suas casas e foram se instalar bem longe, informam os vizinhos.
A polícia contou que Ram Singh confessou, durante o interrogatório, ter cometido o crime durante uma viagem noturna no ônibus que ele próprio dirigia.
Entre os demais acusados estão mais dois moradores da Ravi Dass Camp: o vendedor de frutas Pawan Gupta e Vinay Sharma, um instrutor de ginástica que trabalha numa academia nas proximidades. Ambos estão no final da adolescência, informa a polícia. Eles raramente se encontram com os irmãos Singh, mas decidiram se juntar a eles nas brutalidades no interior do ônibus contra uma jovem e seu namorado, que resultaram na morte dela.
Os familiares de Gupta e Sharma também não puderam ser encontrados.
O quinto acusado, já no cárcere, é Akshay Kumar Singh, de 28 anos, originário da província de Bihar. Ele trabalhava como faxineiro de ônibus em Nova Déli e era amigo dos irmãos Singh.
A polícia informa que também participou do crime um menor de idade, originário da província de Uttar Pradesh, nas proximidades de Déli. Ele também trabalhava como faxineiro de ônibus na capital. As autoridades decidiram não revelar a identidade desse sexto membro envolvido com o crime.
Vários moradores da favela Ravi Dass Camp dizem estar chocados com o estupro da jovem. “Por favor, digam ao mundo que estamos igualmente tristes e solidários com a moça e sua família”, disse uma vizinha dor irmãos Singh.
Esta notícia foi publicada originalmente em:
http://www.brasil247.com/pt/247/revista_oasis/89507/Estupro-nao!-Na-India-a-guerra-entre-o-velho-e-o-novo.htm
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