Por Marco Antonio L. Da Carta Capital.
A peculiaridade brasileira, por Mino Carta
Solidão. Às vezes a presidenta que pretende erradicar a miséria parece isolada. Foto: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo. |
Nos seus derradeiros momentos como senador, Fernando
Henrique Cardoso andava pelos corredores do Congresso acompanhado por
Norberto Bobbio. Digo, carregava um ensaio do pensador italiano, a
analisar um assunto veementemente provocado pela queda do Muro de
Berlim: ainda vale falar de direita e esquerda?
A direita mundo afora decretava o fim das ideologias, -enquanto a
esquerda mostrava-se reticente. Bobbio entrou em cena e afirmou: nada
disso, a dicotomia não se apaga, seria como pretender negar o bem e o
mal, a luz e a sombra, a verdade e a mentira. E a verdade, no caso, é
outra.
A tese de Bobbio pode ser resumida na seguinte ideia: é automática e
naturalmente de esquerda quem se preocupa com os destinos dos desvalidos
do mundo e se empenha pela igualdade. Recordam? Liberdade, igualdade,
fraternidade. A liberdade por si só não basta à democracia, a igualdade é
fundamental. Quanto à fraternidade talvez seja admissível substituí-la
pela solidariedade.
A julgar pelo desvelo de ponta de dedos com que FHC
carregava o livrinho (ia escrever, sobraçava, mas a obra é de porte
modesto) me entreguei à suposição de que o futuro presidente da
República rendia-se de bom grado aos argumentos do autor, a confirmar
crenças pregressas. No entanto, pouco tempo após, soletraria: esqueçam o
que eu disse.
À sombra de FHC presidente, o PSDB tornou-se um partido de direita.
Em lugar de abrandá-las, acentuou as disparidades ao aderir à religião
neoliberal e sujeitar-se às vontades e interesses do Tio Sam. Sem contar
a bandalheira da privataria, a compra dos votos a favor da reeleição e o
“mensalão” tucano.
Ao entrevistar o presidente Lula no fim de 2005, pergunto se ele é de
esquerda, responde nunca ter sido. “Você sabe disso”, diz, ao recordar
os velhos tempos em que nos conhecemos, já faz 36 anos. Jogo na mesa a
carta de Norberto Bobbio, observo: “Você sempre lutou a favor da
igualdade”.
Deste ponto de vista, há toda uma orientação esquerdista nas
políticas sociais implementadas pelo governo Lula e hoje fortalecidas
por Dilma Rousseff. E é de esquerda em mais de um aspecto a política
econômica do governo atual, mais ousada do que a do anterior ao se
desvencilhar das injunções neoliberais.
Nada irrita e assusta mais a direita brasileira do que qualquer
tentativa de demolir de vez a senzala. É o que me permito explicar ao
correspondente de um jornal americano, perplexo diante dos
comportamentos da mídia nativa, sempre alinhada de um lado só. Digo: ela
é o instrumento da casa-grande. O estupor do colega do Hemisfério Norte
não arrefece: “Mas os governos Lula e Dilma produziram bons resultados
para todos, senhores incluídos…”
Defronto-me, de súbito, com a dificuldade de aclarar
uma situação incompreensível aos olhos do semelhante civilizado, capaz
de usar, para medi-la, o metro próprio da contemporaneidade do mundo. E
aos meus condoídos botões segredo: difícil, difícil mesmo, talvez
impossível, trazer à luz da atualidade este cenário tão peculiar, de um
país que viveu três séculos e meio de escravidão e que, de certa forma,
ainda não digeriu o seu passado.
O jornalista americano arregala os olhos: “Mas como é possível que
Dilma Rousseff tenha índices de aprovação elevadíssimos e sofra ao mesmo
tempo o ataque maciço da mídia?” A presidenta, respondo, pretende
erradicar a miséria…
Logo percebo que a peculiaridade verde-amarela
envolve o próprio governo.
Há momentos em que Dilma parece isolada.
Solitária. Ela é obrigada à aliança com o PMDB para garantir a maioria
em um Congresso inconfiável e a postura do próprio PT é, no mínimo,
dúbia.
Falta ao Brasil desta hora um verdadeiro partido
social-democrático, esquerdista no sentido de Norberto Bobbio.
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