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Por
Roldão Arruda - Quando uma colega de redação me falou de uma prostituta
que estava tentando organizar as colegas de trabalho para defender seus
direitos, torci o nariz, não botei fé.
Achei até que era vontade de
aparecer. Afinal, como é que alguém ia organizar um grupo tão
marginalizado? Tão lúmpen – devo ter dito, com as minhas fumaças
esquerdistas de então.
Isso
ocorreu por volta de 1980. Nos anos seguintes iria compreender que meu
conceito de organização era limitado e que Gabriela Leite era uma puta
valorosa. O objetivo de seu trabalho era a promoção dos direitos civis.
Ao
longo de quase três décadas ela defendeu que a saúde é um direito de
todos, trabalhou na prevenção da Aids, estimulou o sentimento de
dignidade no meio de um grupo que a sociedade trata como se não
existisse, lutou pela regulamentação de sua atividade profissional.
Lembrei
dessas coisas quando, no dia 10, quinta-feira, soube que ela tinha
morrido de câncer, aos 62 anos. Também lembrei que, mesmo aposentada e
afastada da rua, preferia ser chamada de puta – daí o fato de usar a
palavra no título desse post em sua homenagem. Dizia que era pra
combater o preconceito que carrega.
Li
que estudou ciências sociais na Universidade de São Paulo (USP). No
final da década de 1960, na ditadura militar, decidiu abandonar a escola
e o emprego que tinha num escritório para se tornar prostituta.
Trabalhou na Boca do Lixo, em São Paulo, em Belo Horizonte e no Rio.
Em
1987 participou da organização do primeiro encontro nacional de
prostitutas. Defendeu-se ali o reconhecimento da atividade como
profissão.
Em
1992, fundou a ONG Davida, que promove estudos e debates sobre questões
que envolvem interesses das prostitutas. É bom notar que Gabriela nunca
se propôs a tirar essas mulheres da rua. O que defendia, como já
lembrei, era a promoção da cidadania. “A prostituição é um direito
sexual”, dizia.
“De
mais a mais, as pessoas se esquecem de que as prostitutas estão lá no
seu trabalho trabalhando porque tem alguém que vai lá procurar elas.
Então existe essa demanda, existe na sociedade”, afirmou ao ser
entrevistada no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2009. “Para mim a
grande história é sair de debaixo do tapete, se mostrar e dizer: olha,
eu sou uma delas e estou aqui, sou uma mulher inteirona, como qualquer
outra mulher.”
Em
2002, finalmente, o Ministério do Trabalho reconheceu a prostituição
como atividade profissional. A medida abriu caminho para o recolhimento
de contribuições previdenciárias e o direito à aposentadoria.
Em
2005, Gabriela criou a grife Daspu, ironizando a Daslu, a meca dos
artigos de luxo do País na época. Logo depois lançou o livro Filha, Mãe,
Avó e Puta: A História da Mulher que Decidiu Ser Prostituta.
Na
primeira página, apresentava suas três paixões: “Adoro homens, gosto de
estar com eles, e não conheço homem feio. Outra coisa que adoro é falar
o que penso, sem papas na língua. Quem ler este livro vai perceber
isso. Existe uma terceira coisa que eu prezo muito, talvez a que mais
prezo, aliás, que é a liberdade, liberdade de pensar diferente, de se
vestir diferente, de se comportar diferente”.
Também
contava no livro que era filha de uma dona de casa conservadora e que
seu pai trabalhava em casas de jogo, recolhendo apostas. Aproveitou para
falar às colegas de profissão sobre maneiras de se prevenirem contra
doenças.
Participou
das eleições de 2010 como candidata a deputada federal pelo PV do Rio.
Não se elegeu, mas aproveitou a campanha para defender o fortalecimento
do Sistema Único de Saúde, a união civil homossexual, o direito ao
aborto e a regulamentação da prostituição.
Mais
recentemente ajudou o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) na redação do
projeto de lei que propõe o regime de aposentadoria especial para
profissionais do sexo, permitindo que se aposentem após 25 anos de
trabalho. No mesmo texto também está proposta a legalização das casas de
prostituição, com o intuito de evitar a super exploração das mulheres.
O
projeto, que leva o nome dela, está parado no Congresso. É combatido
por grupos evangélicos e criticado por movimentos feministas. Fala-se
que representa a institucionalização do patriarcado.
Na
justificativa do projeto, o deputado Jean Wyllys escreveu que
“atualmente os trabalhadores do sexo sujeitam-se a condições de trabalho
aviltantes e sofrem com o envelhecimento precoce”.
Sonia
Corrêa, fundadora da organização feminista brasileira SOS Corpo –
Instituto Feminista para Democracia, pesquisadora da Associação
Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e integrante da coordenação
da Sexuality Policy Watch, conheceu e desenvolveu vários trabalhos ao
lado de Gabriela. Na semana passada pedi a ela que me dissesse algo
pessoal sobre essa relação.
Sonia
contou o seguinte: “Gabriela primeiro mexeu comigo de longe quando, por
volta de 1979 ou 1980, li sua entrevista dizendo que as putas tinham
direito a voz, ao trabalho digno, a ir e vir: direito a ter direitos.
Depois me ensinou de perto em vários momentos.
Lembro bem da primeira
vez que a vi num debate sobre sexualidade no Recife: uma mesa em que
estávamos eu, ela, Herbert Daniel. Esse era o tempo em que cantávamos
Vai Passar (Chico Buarque). E depois continuamos passando, apesar disso,
daquilo, daquilo outro. Apesar da “coisa”, da pedra no meio do caminho.
Passamos ontem, passamos hoje e vamos passando. Vamos sentir muito a
falta dela.”
Sonia
finalizou dizendo que “o mundo ficou mais pobre, mais careta, mais
covarde, mais cinza” sem Gabriela. Achei tão merecido e bonito que usei
no título do post.
*Roldão
Arruda é jornalista e repórter da editoria de política do Estadão.
Dedica-se sobretudo à cobertura de temas relacionados a direitos humanos
e questões de movimentos sociais. Já trabalhou nos jornais Movimento e
Folha de S. Paulo e na revista Veja. É autor do livro 'Dias de Ira'.
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