A matemática assusta: as guerras em curso no Iraque, no Afeganistão,
na República Democrática do Congo, na Somália, na Palestina, no Sudão,
na Colômbia, no Paquistão e no Nepal, em conjunto, somaram 147.120
homicídios entre os anos de 2004 e 2007. Segundo o Centro Brasileiro de
Estudos Latino-americanos, no mesmo período o Brasil registrou quase o
mesmo número de mortes por arma de fogo – 147.373.
Foto - http://cenpah.wordpress.com |
A história por trás das estatísticas é a de uma tragédia silenciosa.
Com 1,09 milhão de homicídios entre 1980 e 2010, o Brasil tem uma média
anual de mortes violentas superior à soma dos 12 maiores conflitos
armados do mundo, de acordo com o Instituto Sangari.
Embora o
assassinato de Amarildo de Souza tenha reacendido o debate nacional
sobre a violência contra os mais desfavorecidos, ele não é de nenhuma
forma um caso excepcional – de fato, segundo os números, os últimos 30
anos foram pontilhados por casos de igual violência a cada 14 minutos,
ininterruptamente, 24 horas por dia.
Entre histórias de chacina e tortura, alguns eventos ainda se
sobressaem: a desfiguração de Robson Silveira da Luz, em 1978, cujo
conhecido torturador virou símbolo da impunidade; o dentista Flavio
Santana, em 2002, extorquido e assassinado por PMs que foram condenados,
mas nunca cumpriram pena; a tortura, estrangulamento e morte dos
motoboys Eduardo Pinheiro dos Santos e Alexandre Santos, enforcados
diante da mãe; o massacre do Carandiru, do qual o comandante ganhou
projeção para se eleger deputado federal sobre 111 cadáveres; o
extermínio infantil da Candelária, cujas crianças ninguém se prestou a
acolher. As comoções que despertaram, mesmo que barulhentas, nada
fizeram por futuras vítimas.
Dentro desse universo de dor, a análise fria dos registros descreve
uma realidade ainda mais sombria para os negros de todo o país. Por
causa da inclusão de dados raciais nos atestados de óbito a partir da
década de 2000, é possível agora observar a distribuição da mortalidade
entre cores, e as tabelas não mentem: como se imaginava, a principal
vítima da violência é o negro, a despeito das melhorias recentes do país
em muitos indicadores. Se ele for pobre, jovem e morador de grandes
cidades, chega a correr 10 vezes mais risco de vida.
UM ABISMO que cresce
O número de homicídios sobre os
afrodescendentes cresceu assustadoramente ao longo da década passada,
como aponta o “Mapa da Violência” da Secretaria de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial (SEPPIR).
Enquanto o ano de 2002 viu 26.951 negros serem atingidos pela violência, em 2010 essa quantidade foi a 34.983 – um aumento de 29,8% em apenas oito anos.
Por outro lado, o mesmo período viu uma redução de 25,5% nas mortes de
brancos e asiáticos. A dúvida suscitada é fulminante: como podem
existir, num mesmo país, duas realidades tão opostas?
O abismo de segurança pública que cresceu entre as raças nesse
período é ainda mais pronunciado entre os jovens, historicamente mais
expostos à violência. Por causa dessas duas tendências contraditórias,
hoje, 3 em cada 4 jovens assassinados são negros.
O quadro para a
população geral, no entanto, não é menos preocupante, com 5 a cada 7
vítimas de violência fatal sendo afrodescendentes. Proporcionalmente, a
vitimização da população negra segue uma tendência de piora em todos os
sentidos – para cada branco, 2,3 negros morreram pelo mesmo motivo em
2010.
Essas situações são compostas em cima de um cenário já mortífero para
a média dos brasileiros. O Brasil é o país com maior número de mortes
por armas de fogo e 8º no ranking das taxas de homicídio em todo o
mundo, segundo as Nações Unidas. Com mais de 15
milhões de armas em circulação, o país consegue perder a cada ano três
vezes mais cidadãos para a pólvora do que para a AIDS, considerada uma
das piores pandemias das décadas recentes.
Aos negros, resta saber que estão duas vezes mais propensos (132,2%
mais, exatamente) às mortes violentas desse território já violento.
Olhando para o quadro mais amplo da barbárie, só em uma das capitais do
país estão relativamente mais seguros que os brancos: em Curitiba, a
taxa de homicídios de negros foi 50% menor que a dos homicídios brancos
em 2010.
Com a exceção do Paraná – cujas mortes de brancos superam as de
negros apenas por causa de uma escalada dramática da violência local -,
é incontestável que esta é uma nação onde morrem mais negros do que
brancos. Às vezes, muito mais.
RACISMO institucional.
Diante desse quadro agravado de
violência, há muitos dentro do movimento negro que caracterizam o atual
cenário como um real “genocídio afrodescendente”. É o caso de Joselício
Junior – o Juninho –, jornalista e membro da coordenação do Círculo
Palmarino: “Percebemos que extermínio direto e indireto, encarceramento
em massa e processos de remoção de comunidades produzem o que chamamos
de ‘faxina étnica’ do povo negro, que é o setor da população brasileira
em maior situação de vulnerabilidade ao longo de toda a história do
nosso país”, explicou à Raça.
Na interpretação de Juninho, o
entrelaçamento entre idade, condição social e cor da pele com os picos
estatísticos de mortalidade não são acaso, mas fruto direto de séculos
de ostracismo e repressão. “Nem em países que estão em guerra se mata
tanto quanto no Brasil. Em um Estado de bem estar social mínimo, é
preciso Estado policial máximo”, acrescenta.
A denúncia da violência contra o negro
vem muitas vezes ilustrada nesse paralelo com o aparato estatal de
segurança. Douglas Belchior, professor e coordenador da UneAfro, é
rápido em ligar os pontos: “O governo persiste com a mentalidade da
ditadura quando o assunto é polícia. No ano de 2011, só a PM matou 42,5%
a mais do que as penas de morte em 20 países”, conta. Ele se apoia em
estatísticas respaldadas pelo próprio governo – apenas em São Paulo, por
exemplo, foram registrados mais de 300 casos de “resistência seguida de
morte” pela Polícia Militar naquele ano.
Também nesses casos, é o negro o cidadão
visto como suspeito preferencial. Um extensivo estudo feito pelo Major
Airton Edno Ribeiro sobre sua própria corporação mostrou, em 2010, que o
modus operandi dos policiais militares é aguçado desde o primeiro dia
de treinamento contra a população negra, pobre e moradora das
periferias.
Entre as páginas de sua tese de mestrado, encontram-se
algumas constatações de peso: “o destino do negro é ser abordado”,
escreve ao analisar os critérios para tipificação de suspeitos; “negros
esclarecidos irritam a Polícia”, dispara, mais adiante, sobre os casos
de cidadãos que souberam responder a abusos de poder; “o policial negro
não se sente negro”, diz, sobre o corporativismo virulento da
instituição. De forma perene, Ribeiro prova por análise aquilo que os
negros já sentem na pele.
O caldo de cultura para a violência
contra o negro é reforçado ainda pela incompetência da própria Polícia
Militar em exercer sua função. Além da mentalidade de violência
gratuita, dos inúmeros casos de abuso de poder e do corporativismo que
rege a atividade de boa parte dos policiais, o índice de elucidação para
crimes de homicídios é patético: entre 5% e 8%, segundo a Associação
Brasileira de Criminalística.
Esse mesmo quesito, em países como Estados
Unidos e Inglaterra, flutua entre 80 e 90%, e sua falência generalizada
em terras brasileiras dá espaço para uma dupla violência contra o
negro: se por um lado a impunidade garante que bandidos e policiais
continuem a vitimar afrodescendentes (e todo o resto da população, é bom
lembrar), por outro facilita em muito o forjamento de falsas confissões
e o aprisionamento de inocentes.
“O fato de termos poucos juízes negros
cria uma carga cultural desfavorável ao negro, quando ele chega ao
tribunal. O juiz às vezes nunca conviveu com um – provavelmente a única
pessoa negra em sua vida era a empregada – então é certo que o julgará
com desprezo”, argumenta Douglas Belchior.
Novamente, uma olhada nos
números reforça esta linha de análise: a probabilidade de um negro estar
entre os 500 mil detentos atuais é 3 vezes maior do que a de um branco,
mas centenas de vezes menor para estar num cargo elevado do Judiciário.
Em que pese o fato de que existam mais negros pobres do que brancos
pobres – e, portanto, que estejam mais pressionados a cometer algum
crime -, a desproporção indica, no mínimo, que as políticas para
prevenção ao crime falham de forma retumbante junto à população negra.
Veja abaixo a Tese do Major Airton Edno Ribeiro A Relação da Polícia Militar Paulista com a Comunidade Negra e o Respeito à Dignidade Humana: a Questão da Abordagem Policial. http://www.programabolsa.org.br/pbolsa/pbolsaTeseFicha/arquivos/tese_airton_edno_ribeiro.pdf
Link original desta matéria: http://cenpah.wordpress.com/2013/11/14/um-milhao-de-mortos-especial-juventude-negra/
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