domingo, 24 de julho de 2016

Mortos acima de qualquer suspeita. Mães de maio uma década de dor.


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Geraldo e Cláudio são amigos inseparáveis. Aposentados, podem ser vistos a partir das duas da tarde, todos os dias, na mesa exclusiva da dupla, no Bar do Cardoso. 

Nos últimos 30 anos, só falharam um dia. Foi no domingo passado, pois naquele dia o bar fechou devido ao recrudescimento da violência que toma conta da cidade há uma semana.

por Fernando Soares Campos.

Geraldo abre o jornal e lê para o companheiro:

- Vê essa, meu: "Já somam 107 os suspeitos abatidos pela polícia desde sexta-feira passada". 

- Suspeitos de quê?! - perguntou Cláudio

- Aqui só fala em suspeitos. 

- Mas quem são esses suspeitos? 

- Ora, eu já li isso pra você, são os mortos, meu! 

- Sei. Mas quem são os mortos? 

- Putz!, meu, você não saca uma! Quer que eu desenhe? Os mortos são os suspeitos! 

- Mas, meu, eu quero saber quem são os mortos suspeitos. 

- Fácil! São os caras que a polícia matou. 

- E esses caras têm nome? 

- Tinham. 

- Como "tinham"?

- Agora são somente números. 

- São suspeitos de quê? 

- Suspeita-se que alguns desses suspeitos participaram de um movimento suspeito, supostamente ligado ao suspeito crime organizado. 

- Mas, se depois de investigados os casos, descobrirem que alguns dos suspeitos são inocentes? 

- E daí?! 

- O que acontece com esses que já morreram? 

- O que acontece?! Ora, meu!, não acontece mais nada, os caras já morreram. 

- E a polícia está procurando novos suspeitos? 

- Claro. 

- Mas, pelo que estou entendendo, qualquer pessoa que estava na cidade, nos últimos dias, é um suspeito. 

- Não é bem assim...

- Por que não? 

- A polícia não pergunta onde o cara estava aqui nos últimos dias. 

- E se ficar provado que o morto suspeito não estava na cidade há mais de uma semana? 

- Aí o suspeito morto passa a ser apenas morto. 

- Hein?!! 

- Torna-se um morto acima de qualquer suspeita.

***

Esse conto foi escrito em maio de 2006, inspirado em fatos reais, que ficaram tristemente conhecidos como "O Massacre de Maio", em que foram mortos, principalmente, jovens negros, moradores da periferia da Grande São Paulo. 

"Diz-se que, em três semanas, houve 564 mortos e a mídia menciona os policiais executados, e diz que os bandidos mortos teriam caído em confrontos com a polícia. Entretanto, um grupo minoritário de promotores e defensores públicos, fez plantão junto aos necrotérios e arriscou sua vida para provar que a enorme maioria dos mortos era de pessoas desarmadas, inofensivas, que nada tiveram nunca a ver com qualquer forma de crime, jovens entre 11 e 31 anos, que foram "apagados" pelas costas e\ou com tiros de baixo para cima, e\ou com rajadas de metralhadora, enfim, com métodos que não deixavam qualquer dúvida sobre a mão da polícia." (Trecho do artigo "O Massacre de Maio: a memória", do professor Carlos Lungarzo, 2013.)


Naqueles dias, enquanto a matança continuava aterrorizando a população paulistana e de cidades da região metropolitana de São Paulo, o jornal O Estado de São Paulo (Estadão) publicou reportagem com o balanço parcial do número e características das vítimas:

"Ainda não se sabe quem são os 107 mortos pela polícia"

"Na semana em que o medo tomou conta dos paulistanos, desde o início da onda de violência atribuída à facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), a polícia de São Paulo matou mais pessoas que no último trimestre de 2005. Desde o dia 12, 107 pessoas foram mortas pela polícia. Nos últimos três meses de 2005, o número ficou em 65 mortos. A média diária de homicídios praticados pela polícia depois dos ataques é 21 vezes maior do que a média do ano passado. Desde o começo dos ataques, os dois Institutos Médico Legais da capital receberam 85 corpos de pessoas mortas pela policia nas ações de reação aos ataques do PCC. Destes mortos, 64 já foram reconhecidos e enterrados por suas famílias. Dos outros 21, quatro foram identificados, mas as famílias ainda não foram reclamar os corpos. Se isso não acontecer em até 72 horas, ou até que todos os corpos sejam identificados, essas vítimas podem ser enterradas como indigentes. Para os corpos que ainda estão sem identificação, será feito o reconhecimento a partir das digitais. O governo de São Paulo ainda não divulgou uma lista com o nomes dos mortos pela polícia."


Foi essa reportagem que deu origem ao conto "Mortos acima de qualquer suspeita", que republicamos aqui para lembrar os 10 anos do Massacre de Maio e uma década de dor das "Mães de Maio", movimento formado por mães, tias, avós, parentes e amigos de vítimas do massacre.

Nesta semana, ocorreu o encontro do Movimento Black Lives Matter (EUA) e familiares de vítimas de violência policial do Rio e de São Paulo, com a participação de mulheres que mantêm em atividade o movimento Mães de Maio.

Assista ao vídeo desse encontro usando o link: http://brasil.estadao.com.br/noticias/ geral,ainda-nao-se-sabe-quem-sao-os-107-mortos-pela-policia,20060519p27542 http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,ainda-nao-se-sabe-quem-sao-os-107-mortos-pela-policia,20060519p27542


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