Foto - Ilhas Selvagens. Sputnik |
O envio de agentes da Polícia Marítima ao arquipélago das Ilhas Selvagens
remonta a história secular de disputa pela "última fronteira"
marítima com a Espanha. São três pequenas ilhas rochosas
localizadas no Oceano Atlântico entre a Madeira (Portugal) e as Canárias
(Espanha) onde não há atividade econômica e recursos naturais. Nas Ilhas
Selvagens também quase não há habitantes, à exceção dos dois agentes ambientais
cuja função é proteger a rica biodiversidade terrestre e marítima. Mas a partir
do final de agosto essa "população" vai dobrar, com o envio de dois
membros da Polícia Marítima de Portugal e, em 2017, um agente da Marinha
portuguesa. Mas por quê Portugal vai vigiar um conjunto de ilhas desertas?
O investimento na fiscalização de um
local selvagem é uma jogada que revive um conflito de quase 500 anos com a
vizinha Espanha que já gerou momentos de tensão. O domínio das pequenas ilhas
não está em jogo, pois elas são propriedade de Portugal reconhecidamente desde
1938. A disputa atual reside na sua classificação. Para os espanhóis,
as Selvagens são apenas rochedos. Para os portugueses, formam um
arquipélago tão importante que foi visitado por todos os presidentes desde os
anos 90 e será vista de perto pelo atual presidente de Portugal, Marcelo Rebelo
de Sousa, no final de agosto.
"O objetivo principal é claramente o de reafirmação e de reforço
prático da soberania portuguesa sobre o extremo mais a sul do território
nacional, apesar desta não estar em causa", afirma à Sputnik o professor
Pedro Quartin Graça, doutor em Políticas Públicas pelo ISCTE (Instituto
Universitário de Lisboa) com uma tese intitulada "A importância das ilhas
no quadro das políticas e do direito do mar: o caso das Selvagens".
Mas por que a classificação das Selvagens, se ilhas ou rochedos,
faz diferença? Para responder é preciso dar uma olhada no mapa. Localizadas no
Atlântico, 165 km ao norte das Ilhas Canárias e 280 km ao sul da Madeira, elas
influenciam diretamente na definição da linha imaginária que divide os espaços
marítimos de Portugal e Espanha. As pretensões dos portugueses em ampliar seu
espaço marítimo colidem com as pretensões dos vizinhos espanhóis, ambas já
apresentadas à Organização das Nações Unidas (ONU). E o motivo é justamente a
classificação das Selvagens.
A Espanha quer que as Selvagens
sejam consideradas apenas rochedos porque assim, segundo o Direito Marítimo,
teriam direito a apenas 12 milhas (22 km) de mar territorial. Se classificadas
como ilhas, esse espaço aumenta para 41 milhas (76 km), metade da distância
entre as Selvagens e as Canárias.
Essa disputa gerou momentos de
tensão há menos de 30 anos, como quando a Força Aérea Espanhola realizou voos
rasantes sobre as ilhas e, após o protesto de Portugal, foi obrigada a
emitir um pedido formal de desculpas. Mais recentemente, após a visita do
ex-presidente Cavaco Silva ao local em 2013, a Espanha enviou reclamação ao
órgão da ONU para Assuntos Oceânicos e Direito do Mar reforçando sus argumentos
para que o arquipélago seja considerado apenas um rochedo.
Pedro Quartin Graça acredita que a
disputa sobre a classificação das Selvagens como ilhas ou rochedos não parece
estar perto do fim. "É, de forma simbólica, a disputa da 'última
fronteira', e ninguém a quer perder. Com tudo o que isso implica", afirma
o professor, que conversou com a Sputnik desde a Madeira, onde está em férias.
"A Espanha não parece disposta a abdicar daquilo que é, no meu
entender, uma errada visão histórica que tem sobre as Selvagens e o fato
de, na realidade, estas serem ilhas e não, como a Espanha afirma há décadas,
meros rochedos inabitados e não passíveis de exercício de qualquer atividade
econômica. Espanha sabe que não tem razão mas insiste em defender que a
tem", diz o professor.
O investimento de Portugal em
infraestrutura nas ilhas inclui a instalação de um radar com alcance de 24
milhas, o envio de dois agentes da Polícia Marítima a partir da próxima
segunda-feira, a aquisição de duas lanchas de fiscalização e o futuro
deslocamento de um membro da Marinha para o local. O objetivo escondido neste
movimento é reforçar os argumentos do país perante as Nações Unidas na
disputa com a Espanha.
"O referido envio serve como
efetivação da autoridade do Estado, muito descurada durante décadas, em sede de
poderes de vigilância e de fiscalização das atividades, legais e ilegais,
exercidas no âmbito mais alargado da ZEE (Zona econômica exclusiva), do mar
territorial e da reserva natural e constitui, a par, uma visível demonstração da
importância que Portugal atribui à sua fronteira mais a sul, isto num quadro de
relacionamento com Espanha por força da proximidade geográfica das Selvagens às
Canárias. Serve, sobretudo, como aviso de que Portugal não anda "a
dormir" no que toca à defesa dos seus interesses, o que é de louvar pelo
alcance prático da iniciativa que, diga-se, há muito defendíamos como sendo de
transcendental interesse nacional", explica professor Quartin Graça.
O reforço da presença do Estado melhora as condições para o
exercício da autoridade do Estado", disse em junho passado o ministro
português da Defesa, Marcos Perestrello, citado pelo jornal Público. O atual
presidente português falou na mesma ocasião sobre a visita e rejeitou qualquer
intensão de manifestação de soberania. Marcelo Rebelo de Sousa disse que não há
nenhuma motivação política ou jurídica na sua viagem às Selvagens programada
para os dias 28, 29 e 30 de agosto. Ele justificou que visitará o arquipélago
por "curiosidade", porque sempre quis, como cidadão.
"Apesar do Presidente da República ter desdramatizado a
questão do exercício da soberania sobre as Selvagens, e ter introduzido na
sua visita uma oportuna passagem pelas Desertas, é por demais evidente que
Marcelo Rebelo de Sousa, não só está muito bem informado sobre a importância
das Selvagens, como sabe que é lá que se joga, em matéria da classificação
destas como ilhas ou como rochedos, o futuro de uma enorme parcela da ZEE de
Portugal", aponta o professor Quartin Graça. Ex-deputado pelo PSD e
reconhecido estudioso sobre as Selvagens, ele argumenta que "uma
visita de um Chefe do Estado a uma parte do território pátrio nunca se pode
classificar como sendo apenas feita a título de curiosidade. É na realidade
muito mais do que isso, quer interna, quer externamente".
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