quarta-feira, 12 de abril de 2017

Os últimos suspiros da saúde pública no Brasil.

Em breve, esse fatídico dia será conhecido como aquele no qual foram tomadas decisões que iniciaram o mais danoso e perverso retrocesso no financiamento e na estrutura da Atenção Básica e Vigilância em Saúde no Brasil.
Atenção Básica diz respeito aos serviços públicos de saúde próximos às nossas casas e que são capazes de resolver o problema de oito em cada dez pacientes/cidadãos atendidos.
No mundo inteiro, os sistemas de saúde mais custo-efetivos – por exemplo, Canadá e Inglaterra – têm um ponto em comum: forte investimento na atenção básica para que tenha boa estrutura, bons profissionais, acesso amplo e seja muito resolutiva.
No Brasil, fazem parte da Atenção Básica, entre outros serviços e ações:
– Saúde da Família

– Agentes Comunitários de Saúde
– Mais Médicos
– a maior parte do Brasil Sorridente, Saúde na Escola, Núcleos de Apoio à Saúde da Família, com psicólogos, fisioterapeutas etc.
A Vigilância em Saúde, por sua vez, é responsável por:
– Controle e ação de combate a epidemias, como dengue, zika, febre amarela, meningite e aids

– Ações que evitam o aumento de certas condições de saúde, como a obesidade, tabagismo, doenças crônicas
– Prevenção de várias doenças por meio do programa de imunização (vacinas) do Sistema único de Saúde (SUS)
– Fiscalização de alimentos, medicamentos, água, supermercados, restaurantes, empresas, locais de trabalho, portos e aeroportos, clínicas privadas de saúde.
O objetivo dessas fiscalizações é a prevenção de doenças. Mas seus técnicos podem até aplicar multas para coibir ações causadoras de doenças nos consumidores e trabalhadores dos locais.
Em 1996, ainda no primeiro período de estruturação do SUS, foi criado um financiamento específico do Governo Federal para as áreas justamente de Atenção Básica e de Vigilância em Saúde.
Por quê?
Ora, porque são essenciais para a saúde da população. Podemos dizer que é o coração do sistema.
Todo prefeito deveria tê-las como máxima prioridade.
Afinal, além de evitar que as pessoas adoeçam, resolvem as doenças antes de se complicarem e exigirem a ida para hospital, urgência.
Porém, rende mais notícias na mídia e votos, o prefeito que, por exemplo:
– criar um pronto socorro, mesmo que ele pouco resolva e custe muito dinheiro;

– inaugurar uma ala no hospital, mesmo que só tenha um anestesista, caríssimo, quatro dias por mês e as pessoas só sejam operadas nesses dias;
– contratar clínicas privadas para atendimento de especialidades, mesmo que na região haja um cartel que cobra o triplo pelas consultas e haja fila de espera imensa, só “furada” pelos apadrinhados políticos.
Enfim, há diversos motivos e interesses – legítimos e ilegítimos, lícitos e ilícitos, oficiais e impublicáveis – que fazem com que as prefeituras priorizem recursos para a chamada atenção especializada em vez da atenção básica e vigilância em saúde.
Independente disso, nos últimos 20 anos, de 1996 a 2016, o SUS vem conseguindo manter um piso de financiamento da Atenção Básica e na Vigilância, graças a recursos federais que só podem ser gastos nessas áreas e que exigem complementações e contrapartidas dos municípios e estados.
Pois tudo isso começou a acabar nessa quinta-feira, 26 de janeiro de 2017.
O Ministério da Saúde propôs e a Comissão Tripartite aceitou que os Blocos de Financiamento do SUS, regulamentados pela Portaria 204 de 2007, de Atenção Básica, Vigilância em Saúde, Média e Alta Complexidade, Medicamentos e Gestão tornem-se um só: o Bloco de Custeio.
Qual o efeito prático?
Lembram-se de que um pouco atrás falei dos vários serviços e ações?
Até ontem, os recursos do Ministério da Saúde iam para cada setor.
Com a decisão dessa quinta-feira, o Ministério da Saúde repassará os recursos para uma conta única da prefeitura, cabendo ao gestor local decidir onde usá-los.
Detalhe: não há um mínimo de exigência e regras que, dizem, ainda serão criadas, mas com o cuidado de “nunca limitar a liberdade do gestor local”.
Ora, se estivéssemos num momento de aumento de recursos para o SUS se poderia inovar na gestão e ter uma regra mais flexível.
Por exemplo, que, de um lado, garantisse o patamar de financiamento atual de cada uma das áreas, ou seja, não deixasse que os recursos de uma fossem reduzidos para desviar para outras.
De outro, aportasse mais recursos – “dinheiro novo” – mediante um sistema efetivo de avaliação de resultados de modo que desse, sim, mais liberdade para a decisão do uso. Só que comprometendo o gestor com resultados e consequências de sua decisão.
Em 2011, diversos instrumentos foram criados para caminhar nessa direção, como: normas (o decreto 7.508, da presidenta Dilma regulamentando a Lei Orgânica da Saúde, é uma delas), programas (de avaliação da qualidade no SUS) e avanços em tecnologias de informação ou comunicação.
Mas o contexto atual é outro. O orçamento da saúde para 2017 é o mesmo do de 2014 corrigido pela inflação.
Portanto, se em 2014 era insuficiente, em 2017 será muito mais.
De 2014 para cá, ampliaram-se os postos de saúde e UPAs, aumentou o número de profissionais do SUS, passou-se a consumir mais medicamentos e exames.
Em 2016, foi aprovada a absurda PEC 241 (PEC 55), que congela os recursos da saúde pelos próximos 20 anos. Portanto, até 2036.
A falta de recursos é tal que o próprio Ministério da Saúde, como “presente de natal”, autorizou os municípios a reduzirem até metade dos médicos das UPAS.
E agora mais essa decisão do Ministério, que, na maioria dos municípios, poderá desmontar ações essenciais de atenção básica e vigilância em saúde.
Muitos prefeitos, obviamente, aplaudirão: “já que o Ministério a cada dia me passa menos recurso, ao menos que me deixe usá-los como e onde eu quiser”.
Alguns defensores da decisão, num flagrante de hipocrisia, esconderão a evidente crise de financiamento da Saúde e argumentarão em favor de uma “inovação” que não consegue ser demonstrada.
Até porque o suposto novo modelo de gestão e avaliação desse financiamento, segundo seus formuladores, está previsto para ser construído num futuro sem data.
Infelizmente, o acompanhamento da aplicação da decisão nos mostrará as consequências que ela trará ao SUS já a partir deste ano.
O acompanhamento nos permitirá também desmascarar a hipocrisia de que quem corta os recursos do SUS se aliou ao oportunismo do “salve-se quem puder” para prejudicar em muito a saúde dos brasileiros.
Na prática, o que significará?
Além da piora da qualidade da assistência e da estrutura, aumento dos tempos de espera e filas.
Teremos também aumento de doenças preveníveis, doenças graves e, consequentemente, de mortes.
Certamente haverá piora dos indicadores de saúde e aumento ainda maior da dependência de alguns prefeitos de corporações econômicas e/ou políticas, às vezes mafiosas, que parasitam os recursos da saúde.
Será isso ou lutar, denunciar e resistir sem trégua a esse governo que em menos de um ano no poder está destruindo, um a um, importantes avanços dos últimos 20 anos da saúde pública no Brasil.
A decisão será agora publicada no Diário Oficial da União. Os seus efeitos já serão sentidos em 2017.

Hêider Aurélio Pinto  é médico sanitarista e coordenou o Programa Mais Médicos.  
Em 15/3/2017.

por bloglimpinhoecheiroso

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