segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

A carta de Gleisi para Lula: precisamos de você!

A senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) transforma sua coluna desta segunda-feira (6) numa comovente carta ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, enlutado pela morte da guerreira Marisa Letícia. Referindo-se ao discurso de despedida que o líder fez para sua mulher (abaixo, assista ao vídeo), Gleisi afirma na missiva que o Brasil precisa de Lula para barrar o fim das aposentadorias, impedir o aumento de jornada de trabalho com redução de salários, parar as privatizações, bem como segurar a retirada de direitos dos trabalhadores. “Precisamos de você!”, escreve a senadora para Lula.
Lula, precisamos de você!
Gleisi Hoffmann*
O que dizer a você, presidente, depois desses dias de imensa consternação, depois de tantas palavras que já foram ditas a respeito da sua dor perante a perda de uma mulher como dona Marisa? O que nos resta falar sobre o significado desse momento para você, para sua família e também para o nosso país?
Talvez o melhor que podemos fazer nessa hora é guardar nas nossas mentes a sua imagem e a sua voz durante a comovente cerimônia de despedida de dona Marisa, no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.
Ali, Lula, você lembrou um pouco da sua grandiosa história política, compartilhou o orgulho que sentia pelo imenso caráter e dignidade da companheira de muitas lutas e, acima de tudo, deixou claro que não se abaterá perante os que querem destruí-lo.
Como vimos em episódios recentes, é impossível não considerar a política na morte de dona Marisa, sobretudo depois das repugnantes manifestações de ódio e intolerância por parte daqueles que representam o que há de pior no ser humano.
Dona Marisa nos deixou num momento muito difícil para o Brasil. Enquanto viveu em sua companhia, Lula, ela sempre foi exemplo de força e coragem. Mesmo diante das adversidades e da covarde e implacável perseguição sofridas, se manteve firme, serena e nunca desistiu de lutar por um país mais justo e fraterno.
Ninguém melhor que você sabe o quanto foi difícil conviver diariamente com os abusos de parte de autoridades, incansáveis em sua infrutífera caçada por provas inexistentes, por algo que fosse além da simplória convicção. Viu de perto também como foi difícil e cruel para uma esposa e mãe enfrentar o medo diário de, a qualquer hora, ver o companheiro e até mesmo os filhos presos.
Por isso, Lula, não podemos esquecer de suas palavras. Você disse que dona Marisa morreu triste por causa da grande canalhice de que foi vítima. Disse também que quer viver para testemunhar o pedido de desculpas dos facínoras que levantaram leviandades contra sua mulher. E o mais importante de tudo: deixou claro que vai continuar brigando muito para defender a honra daquela que foi sua companheira por mais de 40 anos. E a sua honra também.
Ah, como foi bom ouvir isso, presidente! Nós precisamos muito que você continue lutando. Precisamos de sua força para lutar ainda mais contra os que querem destruir não só o PT, mas todo o legado de conquistas sociais que seu governo e o de Dilma deixaram para o povo brasileiro.
Como você bem sabe, aqueles que foram rejeitados quatro vezes nas urnas estão se preparando para o golpe final, ou seja, se armando para implantar no país, sem qualquer legitimidade, aquilo que não conseguiram pela via democrática.
Precisamos de sua forte liderança porque não podemos aceitar o fim do direito à aposentadoria, o corte brutal nos valores dos benefícios concedidos aos extremamente pobres e a imposição de sacrifícios ainda maiores às mulheres que exercem dupla jornada de trabalho.
Da mesma forma, Lula, só com a mobilização popular seremos capazes de barrar as questionáveis mudanças nas leis trabalhistas, a entrega do nosso petróleo aos estrangeiros e, se não bastasse, a criminosa doação do patrimônio público a empresas de telecomunicações.
Como é fácil perceber, ainda precisamos muito de seu carisma, de sua história e de sua disposição para a briga. Muitas pessoas se comoveram com o seu drama. Foi uma lição de vida. Mas, querido presidente, pode ter certeza de uma coisa: o seu choro também simbolizou um profundo gesto de esperança. Precisamos de você!
*Gleisi Hoffmann é senadora da República pelo Paraná. Preside a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado (CAE). Foi ministra-chefe da Casa Civil e diretora financeira da Itaipu Binacional. Escreve no Blog do Esmael às segundas-feiras.
Abaixo, assista ao vídeo com o discurso de Lula:

Estados Unidos em conflito iminente com o Irã.



por Pat Buchanan, tradução de btpsilveira

Fevereiro, 2017 – "Information Clearing House" – Quando o General Michael Flynn marchou garbosamente pela Casa Branca, até a Sala de Imprensa para declarar que “o Irã está oficialmente avisado”, ele desenhou uma linha vermelha para o Presidente Trump. No tweet sobre a ameaça, Trump concordou.

Ocorre que agora sua credibilidade subiu no telhado.

Afinal, o que disparou o ultimato virtual?

Flynn afirmou que o Irã está apoiando os rebeldes Houthis, que atacaram um navio de guerra saudita e Teerã teria testado um míssil, minando a “segurança, prosperidade e estabilidade através do oriente Médio”, colocando “vidas (norte)americanas em risco”.

E daí?

Os sauditas estão bombardeando os rebeldes Houthis e destruindo seu país, o Iêmen, já há dois anos. Será que eles deveriam ser protegidos contra qualquer retaliação em uma guerra que eles mesmos começaram?

Onde está, afinal, a evidência que o Irã teve qualquer papel desempenhado no ataque contra o navio saudita no Mar Vermelho? Por que o presidente Trump quer fazer dessa guerra a sua guerra?

Já em relação ao teste de mísseis, a resolução 2015 da ONU “solicita” que o Irã se abstenha de realizar testes com mísseis capazes de ataque nuclear. Não proíbe o Irã de testar mísseis convencionais, como o país insiste que é exatamente o caso.

Estarão os Estados Unidos fazendo exigências ao Irã que não constam de qualquer tratado ou Lei Internacional – só para provocar um confronto?

Flynn estaria já coordenado com nossos aliados sobre a ameaça de uma possível ação militar contra o Irã? Será que a OTAN está obrigada a se juntar a qualquer ação que tomarmos?

Ou estaremos executando seja lá qual for a retaliação sozinhos, enquanto nossos aliados da OTAN ficam de lado só olhando, e os israelenses, árabes do Golfo, sauditas e o Partido da Guerra de Beltway, que gostariam muito de se livrar de Trump ficam só provocando?

Bibi Netanyahu comemorou a declaração de Flynn, chamando os testes de mísseis do Irã de flagrante violação da resolução da ONU e declarando que “a agressão iraniana não pode ficar sem resposta”. Quem responderá, além de nós?

O rei saudita falou com Trump no domingo. Teria ele persuadido o presidente a fazer com que os EUA se envolvam mais fortemente contra o Irã?

O presidente do Comitê do Senado para Relações Externas, Bob Corker está entre aqueles deliciados com a ameaça da Casa Branca:

 “O Irã não tem mais permissão para suas violações repetidas de testes com mísseis balísticos, apoio contínuo ao terrorismo, abuso de direitos humanos e outras atividades que ameaçam a paz e a segurança internacionais”.

O problema de fazer uma ameaça pública – “o Irã está avisado” – é que isso torna quase impossível para Irã ou para Trump voltar atrás.

O Irã se vê quase obrigado a arrostar a ameaça, em especial a exigência de cessar os testes de mísseis convencionais para sua própria defesa.

Quase com certeza, essa ameaça feita pelos EUA servirão para fortalecer os iranianos que se opõem ao acordo nuclear e que querem ver seus arquitetos, o Presidente Hassan Rouhani e o Ministro de Relações Exteriores Mohammad Javad Zarif perderem as eleições deste ano.

Caso Rex Tillerson não queira se tornar um Secretário de Estado em tempos de guerra como Colin Powell ou Dean Rusk, terá que falar com os iranianos, mas não com declarações desafiadoras e sim com um diálogo diplomático.

Tillerson, claro, é aquele que, como se sabe, disse que os chineses seriam impedidos de visitar a meia dúzia de ilhotas fortificadas que estão construindo em rochas e recifes no Mar do Sul da China

Uma predição: os chineses não vão sair de suas ilhas, e os iranianos desafiarão a ameaça dos EUA sobre os testes de seus mísseis.

As declarações da Casa Branca de quarta feira fazem um embate com o Irã quase inevitável e uma guerra contra o Irã perfeitamente possível.

Por que diabos Trump e Flynn sentiram a necessidade de fazer isso agora?

Já há enormes problemas suficientes na política externa esperando pelo novo presidente em apenas duas semanas de sua administração, com os rebeldes na Ucrânia sofrendo ataques de artilharia novamente, e a ameaça nuclear da Coreia do Norte, que, ao contrário do Irã, é real e ainda está para ser resolvida.

Entre as principais razões pelas quais as pessoas votaram em Trump está o seu entendimento de que George W. Bush errou terrivelmente quando lançou uma guerra não provocada e desnecessária contra o Iraque.

Paralelamente com os 15 anos de Guerra no Afeganistão e as guerras na Líbia, Síria e Iêmen, as nossas guerras no Oriente Médio nos custaram trilhões de solares e milhares de mortes. Produziram ódio generalizado contra os EUA, aproveitado pela Al Qaeda e Estado Islâmico para recrutar jihadistas que matam e massacram ocidentais.

A maior conquista de Osama Bin Laden não foi derrubar as torres gêmeas, matando 3.000 (norte)americanos (embora hoje existam sérias e razoáveis dúvidas se foi mesmo Osama Bin Laden quem fez isso – NT) mas incitar os Estados Unidos a entrar de cabeça nos conflitos do Oriente Médio, uma aventura imprudente e custosa, que custou aos EUA a sua primazia global depois da guerra fria.

Trump parecia reconhecer isso, ao contrário de outros candidatos.

Pensava-se que ele poderia nos desconectar dessas guerras, não ficar sacudindo sabres contra o Irã, três vezes maior que o Iraque, e que tem como seu principal fornecedor de armas e aliado a Rússia de Vladimir Putin.

Quando Barak Obama riscou no chão da imprudência a sua linha vermelha contra o uso de armas químicas por Bashar Al Assad e este aparentemente a cruzou, Obama subitamente descobriu que seus compatriotas não queriam lutar a guerra que as suas ações militares poderiam desencadear.

Obama teve que voltar atrás, humilhado.

Hoje, nem o Aiatolá Khamenei nem Trump parecem ter disposição para voltar atrás, especialmente agora, que o presidente dos EUA tornou sua ameaça pública.

Patrick J. Buchanan  - é o autor de um novo livro: "The Greatest Comeback: How Richard Nixon Rose From Defeat to Create the New Majority." para saber mais sobre Patrick Buchanan e ler seus artigos visite o site www.creators.com 

domingo, 5 de fevereiro de 2017

20ª mostra de Cinema de Tiradentes. "O golpe é anti-indígena. O Mato Grosso do Sul é a palestina brasileira".

Liderança indígena atravessa Terra Indígena dentro de uma fazenda privada durante crise dos Guarani Kaiowá no MS em 2012. Foto: Mídia NINJA

A partir de uma morte brutal, Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tita saem sem dinheiro algum para recontar a história do Brasil do ponto de vista da resistência Guarani-Kaiowá. Um movimento de resistência em uma situação de precariedade e agressão extrema.

Há um espírito de guerra. O golpe é real.

Para os indígenas a luta é contra o maior gigante econômico brasileiro: a soja.
Durante a 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes a equipe NINJA esteve com Ernesto de Carvalho e Tita (Tatiana Almeida), co-diretores de Martírio, documentário lançado em 2016 e super premiado em festivais nacionais e internacionais.

Leia na íntegra a entrevista.

Ernesto de Carvalho e Tita, co-diretores de Martírio, conversaram com a Mídia NINJA em Tiradentes.


Martírio

Ernesto de CarvalhoAno passado, 2016, a gente lançou Martírio, que é um filme co-dirigido pelo Vincent Carelli, pela Tatiana Almeida (a Tita), que é montadora do filme também e eu, que também fotografei a parte contemporânea do filme. A gente se juntou com o Vincent, e formamos uma pequena rede de colaboradores nesse processo de oficinas em aldeias indígenas dentro dessa ideia do Vídeo nas Aldeias. O projeto é levar audiovisual para as comunidades que tradicionalmente estão na frente da câmera para que elas possam se empoderar da ferramenta e criar suas próprias histórias, contar o seu ponto de vista.
Temos feito esse trabalho que foi ganhando forma de maneira meio espontânea. Então a gente faz oficinas longas, deixa equipamentos nas comunidades, faz oficinas de montagem e trabalha muito no aprofundamento e amadurecimento da formação desses realizadores e realizadoras. Essa é a filosofia do vídeo nas aldeias. Foi um trabalho continuado e um trabalho de produção de narrativas que funcionam e têm circulado muito em festivais de cinema, na televisão e gerado um impacto grande. “A gente precisava construir um filme que contasse essa história, porque contar essa história já ia ser um grande gesto político.”
A gente tem tido uma relação com comunidades indígenas que de uma maneira ou de outra estão numa situação de se auto representarem. Então a gente dá oficinas de vídeo em comunidades que estão em condições de receber uma oficina: em comunidades minimamente estruturadas, em que as pessoas estão com a sua terra um pouco assegurada, tem espaço pra guardar câmera. E principalmente no final dos anos 90 e ao longo dos anos 2000, a gente esteve muito nesse tipo de espaço, que são espaços precários, de muita resistência, mas são espaços em que a vida pelo menos está assegurada.
O golpe
Ernesto de CarvalhoA situação política que a gente está vivendo no brasil hoje só existe por causa da desinformação. A maioria da população na verdade está perdida. Você vê, teve um golpe de estado, o Brasil se polarizou. Parece que tudo se polarizou: de um lado você teria pessoas que são petralhas, que estariam apoiando o governo Dilma e de outro lado você teria pessoas que são coxinhas, fascistas. Mas essa polarização na verdade é a menor parte dessa história. A maior parte dessa história é uma maioria da população brasileira que não sabe exatamente o que está acontecendo. O que a grande mídia faz, o que a Globo faz, é investir nessa desinformação, é criar confusão. As pessoas estão muito confusas. As pessoas com as quais a gente conversa não sabem o que está acontecendo. “Uma maioria da população brasileira que não sabe exatamente o que está acontecendo. As pessoas estão confusas.”
E aí, eu acho que o que o Martírio faz, e que agora a gente se dá conta depois do filme pronto, é que ele oferece informação para as pessoas de uma maneira que as pessoas conseguem entender. Ele cria uma narrativa que as pessoas entendem e conseguem se posicionar dentro daquela narrativa. O que a gente precisa agora é fazer o filme circular: essa é a grande questão do Martírio. Todo mundo que vê fala: o filme tem que circular. Ele tem que ser visto. Tem que ser visto nas escolas, tem que ser visto nas aulas de história. E aí a gente está pedindo apoio também nesse sentido, de fazer o filme circular.
O filme vai ser lançado em salas de cinema no dia 13 de abril e depois vamos soltar ele na internet, livremente. E a idéia é fazer que ele chegue nas escolas, que ele chegue nos lares, que ele chegue na televisão, se possível. Porque é só por meio das pessoas terem acesso à história que a gente vai poder desfazer esse nó que o Brasil se meteu agora. Esse nó de um estado de exceção que começa de um golpe que é real, que as pessoas estão vivendo, mas que elas não sabem nem processar. É isso, enfim, falta informação. “O golpe é anti indígena, é evangélico.”
Ernesto de CarvalhoO golpe é anti-indígena, o golpe é evangélico, em sua boa medida. Mas não porque as pessoas evangélicas são más, mas porque você tem um interesse, um lobby evangélico, um lobby ruralista dentro do Congresso que é fundamentado na desinformação. É fundamentado em fazer as pessoas ficarem assustadas e em fazer as pessoas ficarem desinformadas. Então, enfim, a gente espera que o filme circule.
É isso. “São as pessoas que são a palestina brasileira, de alguma maneira.”
Ernesto de CarvalhoDesde que eu conheço o Vincent, ele tinha esse material Guarani-Kaiowá, material que ele filmou lá no final dos anos 80, passando pelos anos 90. E é um material que é de outra realidade indígena brasileira, que é muito mais precária ainda. São as pessoas que são a palestina brasileira, de alguma maneira.
São aldeias que estão à beira da estrada, não tem terra homologada, muitas vezes são aldeias que estão incrustadas no meio de fazendas, e aí essa realidade Guarani-Kaiowá sempre foi uma realidade muito mais gritante, de um flagelo e de uma presença da morte e da destruição muito mais intensa, um caso extremo de resistência no Brasil. Sempre houve um desejo de voltar pra esses ambientes, voltar pra essas aldeias onde o Vincent esteve e nas aldeias que a gente tem recebido notícias de ataques por verdadeiras milícias de fazendeiros, milícias armadas. E de alguma forma conseguir participar e ajudar nessa situação.

O Conflito Indígena no Brasil
Ernesto de CarvalhoO espaço Guarani-Kaiowá tem sido um espaço de auto representação só que num sentido diferente. Não no sentido da câmera, mas da consolidação de um movimento, que é o movimento Aty Guasu, que são as grandes assembleias Guarani-Kaiowáque na verdade é um movimento que remonta da década de 70, um movimento de resistência nessa situação de precariedade e agressão extrema.
“No Mato Grosso do Sul, que é a central produtora de soja do Brasil, há uma espécie de espólio de guerra da Guerra do Paraguai.”
Então, no Mato Grosso do Sul, que é a central produtora de soja do Brasil, há uma espécie de espólio de guerra da Guerra do Paraguai, um ambiente onde a população indígena que mora ali é vista um pouco como não pertencente a lugar nenhum. Eu acho que ainda há no Mato Grosso do Sul um espírito de guerraos Guarani-Kaiowá são um pouco os sobreviventes dessa guerra, que é uma guerra que redesenhou a fronteira nacionale ao mesmo tempo é um ambiente da soja, do agronegócio.
O Brasil é o maior exportador de soja do mundo e toda essa economia neo-desenvolvimentalista dos últimos anos tem sido muito calcada na produção de soja. Então a luta dos Guarani-Kaiowá por assegurar pequenos espaços pra sobrevivência é uma luta contra o maior gigante econômico brasileiro, que são os fazendeiros produtores de soja.
Ernesto de CarvalhoEles sempre tiveram nesse contexto de resistência e precariedade. O filme conta um pouco a história de como chegou a esse ponto de expulsão das terras, o esbúlioque é a retirada forçada do ambiente onde que você cresceuque o que os Guarani-Kaiowá têm vivido ao longo do século XX de uma forma muito particular: essa coisa em que de repente você tá num pedaço de terra e alguém chega com um papel que diz que é daquele fazendeiro.
E em 2012, depois de séculos de massacre e um século de massacre ligado à economia, há uma morte em específicoque é a morte do cacique Nísio Gomes, em Guaivirique é uma morte que marca muito o Vincent, que tinha passado muito por aqueles espaços, uma morte muito brutal, uma morte com tiro.
Tatiana AlmeidaEssa é uma das poucas mortes que acabou furando o bloqueio midiático, a primeira morte em que o corpo é dado como desaparecido e a partir do início das investigações. A coisa acaba furando o bloqueio da grande mídia, ganhando repercussão internacional e forçando as investigações a serem retomadas.
“Você chegar numa aldeia, você assustar todo mundo, você matar o cacique, esconder o corpo dele e sumir com o corpo dele. É um negócio muito brutal.”
Ernesto de CarvalhoE com a participação de empresa de segurança privada, ou seja, uma verdadeira milícia armada, um negócio muito calculado. Você chegar numa aldeia, você assustar todo mundo, você matar o cacique, esconder o corpo dele e sumir com o corpo dele. É um negócio muito brutal.
E ao mesmo tempo, em paralelo à isso, você tem também muito midiatizada a resistência da comunidade Pyelito Kue, que é uma aldeia que em determinado momento, depois de algumas décadas tentando retomar o seu território tradicional, escreve uma carta, que foi muito noticiada, de suicídio coletivo, em que as pessoas estão dizendo “beleza, então vocês não querem permitir que a gente consiga viver nas condições mínimas, então a gente não faz nem mais questão de viver, se for pra viver desse jeito”. Foi uma carta interpretada como uma carta de suicídio coletivo.
Esses dois eventos provocam a gente a ir lá, sem dinheiro nenhum, e numa proposta diferente daquela proposta que a gente vinha conduzindo de oficina de vídeo, que é uma proposta então da gente fazer um filme sobre essa história, ao mesmo tempo com o desejo de deixar câmerasentendendo que a câmera é uma ferramenta de luta, é uma arma.
“Os indígenas no Brasil vivem no meio dessa encruzilhada horrorosa, muito perversa, que causa muita ansiedade. Você não consegue ser aceito. Você não pertence a lugar nenhumvocê não tem direito a existir, basicamente. De um jeito ou de outro você tá errado.”
Ernesto de CarvalhoAs populações indígenas do Brasil vivem um binômio muito cruel, que é assim: ou você não é índio o suficientevocê já tá incorporado demaise aí você não é reconhecido como diferente, não é reconhecido como tendo uma especificidade que te dê direito à respeito, a autonomia, a viver uma vida diferente da que as pessoas levam na cidade, ou você é selvagem demaisseus costumes são inaceitáveis demais.
Então todos os indígenas no Brasil vivem no meio dessa encruzilhada horrorosa, muito perversa, que causa muita ansiedade. Que você não consegue ser aceito. Você não pertence a lugar nenhumvocê não tem direito a existir, basicamente. De um jeito ou de outro você tá errado.
E no Mato Grosso do Sul, essa existência inaceitável parece ser mais perversa ainda. Porque aí há uma disputa pelo território muito clara, que está no horizonte. O Mato Grosso do Sul é uma terra arrasada. Era uma floresta e hoje em dia é um desertoum deserto verde da soja transgênica e do milho transgênico. E a maneira como essa terra arrasada se deu foi por meio da aliança entre as elites locais, aliança histórica na qual os fazendeiros também são amigos dos políticos, enfim são alianças entre a polícia… Uma parte dessas deportações, desses exílios das aldeias se dá com o apoio da polícia local que chega e vai retirar o pessoal, leva o caminhão pra tirar as pessoas da aldeia. As pessoas estão numa posição de fragilidade total.


A câmera é uma arma de luta
Ernesto de CarvalhoA gente, sem financiamento, sem dinheiro, pega, usa um pouco dos fundos que tem e vai se jogar nessa tentativa de entender que filme que a gente pode fazer, com a clareza de que a gente precisava, então, construir um filme que contasse essa história porque contar essa história já ia ser um grande gesto político.
A gente começa a ir ao Mato Grosso do Sul, a circular pelas aldeias, a entender exatamente qual é a situação, a recuperar a memória da violência, do exílio, da expulsão dos territórios tradicionais. E muito formados pela experiência de diálogos em aldeias que a gente já tem, que são a partir das oficinas.
Experiência de chegar, de saber conversar com as pessoas, de estar muito perto das pessoas, de entender que as pessoas se apropriam da presença da câmera de uma maneira muito inteligente, que elas têm as suas formas de se apropriar da câmera. E quebrando um pouco as regras tambémtô filmando e reativando: que história que dá pra contar? É uma história de arquivo? É uma história que precisa mostrar os deputados e senadores? Aos poucos a gente foi entendendo que a história era essa. Uma história que precisava juntar esses elementos, ao mesmo tempo, com aquela presença da câmera, e aí o filme deu muito certo, conseguiu equilibrar todos esses elementos. Tita, a montadora, fez um trabalho incrível.
Tatiana AlmeidaEu acho que é uma coisa que acontece de maneira bem recorrente no trabalho do Vídeo nas Aldeias, nos filmes que não são feitos por cineastas indígenas. Acontece muito quando você vai para as aldeias, você realiza as filmagens e muito do conteúdo você sequer conhece porque você não acessou a tradução do material, e essa tradução acontece na etapa de montagem. É claro que tem várias escolhas que acontecem em campo, mas tem um conteúdo que só se revela na montagem mesmo.
E nesse sentido foi um trabalho muito extenso: foram três anos em que a gente ficou no processo, descobrindo que filme era esse, entrando nessa investigação histórica de material de arquivo, entendendo que outra história era possível edificar a partir disso. E uma coisa que nos surpreendeu é que essa história é muito documentada. Oficialmente documentada. Então é um projeto deliberado de exclusão. A gente achou no início do processo que não haveriam relatórios oficiais nem tanta documentação de estado sobre o processo. Mas existe. É realmente um processo deliberado.


A morte de Nísio
Tatiana AlmeidaNo próprio assassinato do cacique Nísioque foi esse disparador do retorno do Vincent, do Ernesto e da nossa equipe pra campo e pras aldeiaso filho do Nísio diz que a polícia chegou na hora pra investigar e perguntou Por que você matou seu pai? Por que você matou seu pai?. E tudo o que ele queria era tentar minimamente se expressar, contar o que tinha acontecido, que tinham recolhido o corpo. Mas na verdade é um processo que envolve o Estado, as elites locais, é um processo de pacto mesmo.
Ernesto de CarvalhoDesde o começo a ideia era deixar câmeras. O projeto original vinha com essa proposta. Pensamos assim: “esse pessoal armado que chega na aldeia atirando, será que eles vão atirar do mesmo jeito e agir da mesma maneira se souberem que estão sendo filmados?”. Mas no Mato Grosso do Sul isso é mais difícil do que em qualquer outro lugar.
A gente está muito acostumado a formar realizadores indígenas, a formar gente com câmera em aldeia e as pessoas adquirirem autonomia ao longo dos anosusarem os equipamentos, acessarem a internet. Todos os realizadores que a gente formou construíram autonomia, utilizaram aqueles meios da maneira que eles quiseram, não estavam atrelados a fazer um filme com o Vídeo nas Aldeias.
Só que no Mato Grosso do Sul as condições materiais mesmo são muito mais radicais, muito mais extremas. A aldeia na qual a gente deixou aquela câmera (e que depois aparece no filme e testemunha um dos vários ataques que eles sofreram) não tem lugar pra carregar bateria, o pessoal mal tem água lá, não tem lugar pra carregar celular. Então são coisas que parecem muito simples pra gente mas como é que você viabiliza uma resistência de mídia num lugar onde você não consegue manter os equipamentos? “Aquela câmera que a gente deixou, a gente soube depois que ela foi destruída num ataque.”
Quando a gente tava lá tinha lugares que a gente passava que a gente pegava bateria de celular pra carregar no hotel, na cidade, e depois retornar com a bateria. São condições precárias. Aquela câmera que a gente deixou, a gente soube depois que ela foi destruída num ataque.
Então aquela câmera serviu pra afugentar um pouco esses milicianos que chegam armados, e aí ela cumpriu seu papel, a gente vê que eles não tinham essa coragem quando sabem que estão sendo filmados, né. É uma covardia muito grande, você atacar uma comunidade que tá naquele estado de fragilidade, que não consegue se defender, que já tá reduzida, passando fome, sem apoio de ninguém. É muito covarde isso.
Agora você tem mais gente filmando. Mas é um pessoal que precisa de apoio, fundamentalmente, precisa de oficina, equipamento, presença.
Tatiana AlmeidaDurante a produção do filme, o Vídeo nas Aldeias em parceira com a UFMG realizou oficinas num acampamento de retomada, que é o do cacique Nísio, do Guaiviri, e numa comunidade de reserva que é o Jaguapirã. O pessoal do Guaiviri acabou de lançar o filme lá no fórumdoc no fim do ano passado.
Mas é o que o Ernesto falou: é o início de um processo.
De que maneira eles vão incorporar essas ferramentas, adquirir autonomia, de que maneira eles vão usar isso? Provavelmente, a gente imagina, em função da luta pela retomada das terras.


A retomada de Vincent Carelli
Ernesto de CarvalhoE o Martírio é um filme dentre outros que podem ser feitos no Mato Grosso do Sul sobre essa situação. Outros virão. E é a tentativa de contar essa história enorme, que diz respeito a muita gente, na figura de um ponto de vista: um cara que foi ali por acaso e que tem a vida dele ligada a esse processo, e aí a gente construiu esse personagem do Vincent e optou por esse recurso da narraçãoque é um personagem também, de certa maneira. A gente constrói alguém em quem as pessoas podem se identificar, e eu acho que isso tem uma força grande.
Porque é uma história, porque tem esse caráter humanizador, parece que as pessoas entendem mais se elas conseguem se colocar no lugar de alguém. Mas outros filmes virão: o Martírio é uma primeira tentativa de contar essa história, eu acho. Eu vejo ele assim. Acho que ele é incompleto, também, nesse sentido. Ele é um filme longo, é um filme que dá conta de muita coisa, mas tem muitos casos que a gente deixou de fora, que a gente não conseguiu relatar, porque a ideia era tentar criar um fio da meada ali, que reconte a história do Brasil do ponto de vista da resistência Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul.
E eu acho que isso também toca muito as pessoas: a sensação de que elas não conhecem a história do próprio país. É uma ignorância muito grande: as pessoas mal entendem o que foi a Guerra do Paraguai, não entendem muito bem o que foi o processo de colonização continuada do Brasil. A gente vê o processo de colonização como uma coisa do passado: vieram os europeus, assassinaram boa parte dos indígenas e colonizaram.
“O processo de colonização é presente, é um processo contemporâneo, que continua. As elites se transformaram, os agentes da colonização se transformaram mas a mesma violência, a mesma imposição, o mesmo processo inclusive de missionarismo, conversão forçada, de expulsão das terras e assassinato continua.”

Link original: Mídia Ninja. Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação — midianinja@gmail.com - 2016 Jan30: https://medium.com/20A-mostra-de-cinema-de-tiradentes/o-golpe-e-anti-indigena-o-mato -grosso-do-sul-e-a-palestina-brasileira-b9456c3c4a21#.3pz98vnn3