sábado, 30 de março de 2013

A História "Negra e Racista" de Abraham Lincoln.

Escrito por Garry Wills.

Meserve-Kunhardt Collection/Library of Congress - Abraham Lincoln, circa 1864; Frederick Douglass, circa 1866.

Abraham Lincoln nasceu em uma família racista, em uma região racista dos Estados Unidos, durante uma época racista de nossa história. Seria impressionante se ele não tivesse começado sua vida como um racista. 

A piedade com sua memória suprimiu essa fato por gerações. Muitos de nós gostariamos que Lincoln fosse isento de racismo, e procuramos evidências pra chegar a essa conclusão. Ninguém gostaria disso mais do que negros. 

Henry Louis Gates, professor de Harvard, observa que negros – de Booker T. Washington a Ralph Ellison – fizeram até mais do que os brancos para consagrar Lincoln como o “rei-filósofo americano e santo padroeiro das relações raciais”. Gates também fala de si mesmo (nascido em 1950), “assim como a maioria dos afro-americanos de minha geração, eu fui ensinado a acreditar que Lincoln odiava a escravidão porque ele amava os escravos”. Negros libertos angariaram $17000 para a construção, em 1876, da estátua de Lincoln libertando os escravos que fica em Lincoln Park, Washington.

No entanto historiadores não eximem mais Lincoln quando o assunto é racismo, e alguns de seus críticos mais severos são negros – especialmente o editor da revista Ebony, Lerone Bennett.[1] O consenso é que Lincoln era racista, usando a palavra “nigger, contando piada de negros, assistindo menestréis, mas que se tornou cada vez menos racista, terminando seus dias praticamente livre de preconceitos – apesar de ainda se referir a Sojourner Truth em 1864 como “mucama”.

Gates acredita que essa abordagem quantitativa – quanto racismo Lincoln exibia em determinada época? – deve ser substituida por uma pergunta qualitativa: que tipos de racismo estão em questão? Ele peneira habilmente os registros e encontra três vertentes no pensamento de Lincoln sobre raças.

(1) Há, de sua parte, oposição à escravidão, o que pode (mas não necessariamente) eximi-lo de racismo. 

(2) Há uma convicção de que negros são inferiores aos brancos em inteligência e “civilização”. 

(3) Há uma convicção de que negros devem ser mantidos separados dos brancos, na medida em que isso for legalmente e logisticamente possível, o que é geralmente mas não necessariamente uma posição racista (alguns negros concordavam com isso).

Esses três pontos de vista coexistiram ao longo da vida de Lincoln, algumas vezes em conflito, outras vezes reiterando-se. Depois do longo artigo introdutório de Gates, todos pronunciamentos de Lincoln sobre a escravidão estão publicados no livro aqui editado, com uma breve introdução para cada seleção escrita por Donald Yacovone, ilustrando os três temas que Gates isolou.

1.Escravidão
Lincoln sempre acreditou que a escravidão fosse algo errado (porém algo errado mas não remediável em um futuro próximo). A oposição à escravidão por si só não isenta ninguém da acusação de racismo. Muitos abolicionistas acreditavam que pessoas não devem ser mantidas como propriedade, sem no entanto que negros são (ou devem ser) tratados igualmente  aos brancos. 

Henry Adams, apesar de ter orgulho do histórico de oposição à escravidão por sua família, acreditava que escravos, ao serem libertados, não deviam votar nem dispor de outros direitos políticos.  Ele era um crítico da décima quarta e décima quinta emendas e um forte defensor das políticas de reconstrução de Andrew Johnson. Então não é possível concluir que Lincoln não era racista só porque ele se opunha à escravidão.

No seu Segundo Discurso Inaugural, Lincoln declarou que o que há de errado com a escravidão é que ela extrai dos negros “trabalho não recompensado”, através do qual “homens ganhavam seu pão através do suor de outros”. Um igualdade de direito aos frutos de seu próprio trabalho é a primeira (muitas vezes a única) igualdade que Lincoln reconhece. 

Como ele disse em 1858:“Certamente o negro não é nosso igual em cor – talvez também não seja em muitos outros aspectos; ainda assim, com respeito ao direito de levar à boca o pão que suas próprias mãos ganharam, ele é igual a todos os outros homens, brancos ou negros.”

Em Hartford em 1860, Lincoln colocou o assunto de forma mais contundente: “Deus deu ao homem uma boca pra receber o pão, mãos pra alimentar essa boca, então a mão tem o direito de levar o pão à boca sem controvérsias”. O direito de possuir seu próprio trabalho era tão importante pra Lincoln que ele encontrava analogia até no mundo animal:“A formiga, que trabalhou e arrastou uma migalha pra seu ninho, irá defender furiosamente o produto de seu trabalho contra qualquer ladrão que tentar expropria-lo... [e] até o escravo mais estúpido que já trabalhou pra algum senhor sabe, constantemente, que ele está sendo injustiçado. [Ênfase no original]”

Ao escravo não só era negado os frutos imediatos do seu trabalho, mas também era negado o direito de trabalhar pra possuir os meios de produção, o que estava no coração da visão que Lincoln tinha dos Estados Unidos. Nos estados livres, “o homem que trabalhou pra outro homem ano passado, esse ano trabalha pra si mesmo, e ano que vem contratará outros pra trabalhar para ele”.

Tão profunda era a convicção de Lincoln no livre mercado de trabalho que ele condenava a escravidão por prejudicar o direito dos brancos livres ao fruto de seu trabalho. O lucro do senhor de escravos obtido através do trabalho não recompensado de seus escravos dava a estes uma vantagem competitiva sobre aqueles que pagavam seus trabalhadores. 

Uma das razões pelas quais Lincoln queria livrar o território americano da escravidão era para proteger as oportunidades dos trabalhadores brancos livres (outra era desestimular a miscigenação). Em um discurso em Kalamazoo, Michigan, em 1856, ele declarou que os territórios “devem ser mantidos abertos para abrigar brancos livres”. 

Até mesmo o plano de mandar escravos libertos para a Libéria, do qual Lincoln se orgulhava bastante, era visto como um meio para beneficiar o trabalho branco livre. No seu discurso anual para o congresso em 1862, ele declarou: “Com a deportação, até certo ponto, um aumento no salário do trabalhador branco é matematicamente certo”.

A escravidão não só diminuia a igualdade econômica do trabalhador branco, mas também erodia sua igualdade política. A provisão constitucional através da qual os estados escravagistas contavam os negros como três quintos de uma pessoa significava que “três negros contam como duas pessoas” no congresso, resultando que “em todos os estados livres nenhum homem branco é politicamente igual ao homem branco dos estados escravagistas”. 

Lincoln frequentemente condenava a escravidão por violar os interesses de trabalhadores brancos. É isso que Frederick Douglass queria dizer em 1876, quando disse sobre Lincoln:“Ele era primeiramente o presidente dos brancos, totalmente devotado ao bem-estar dos brancos... 

Ele ocupou a cadeira presidencial partindo de um único princípio, que é a oposição à extensão da escravidão.  Seus argumentos de apoio a essa política estavam baseados na sua devoção patriótica aos interesses de sua própria raça.”[2]

Apesar de sempre se opor à escravidão, Lincoln o fez baseando-se em razões friamente econômicas. Ele demonstrou pouca indignação diante da degradação e crueldade da escravidão. A passagem mais frequentemente citada pra contestar isso dificilmente consegue contestar. 

Em 1841, Lincoln observava 12 escravos acorrentados juntos no barco que ele tomou pra retornar da visita que havia feito para a família escravagista Speed em Kentucky, e escreveu sobre a experiência para Mary Speed:“Eles estavam sendo separados para sempre do cenário de suas infâncias, de seus amigos, de seus pais e suas mães, de irmãos e irmãs, e muitos deles também estavam sendo separados de suas esposas e filhos, sendo mandados para a escravidão perpétua [no baixo sul] onde o chicote dos senhores é proverbialmente mais cruel e impiedoso do que o de qualquer outro.”

Isso foi uma crítica implícita a Mary Speed por possuir escravos? Longe disso. Essa sentença é a parte do meio de um argumento dividido em três estágios, e apenas dá ênfase ao sofrimento dos escravos para reforçar a conclusão. Ele começa descrevendo a moral que ele pretende extrair da cena: “Um bom exemplo foi apresentado no barco sobre o qual é possível contemplar o efeito da condição sobre a felicidade humana” (ênfase no original). 

Então, depois de descrever as mazelas da escravidão na segunda parte do argumento, ele chega à conclusão sobre as “condições” na terceira parte:“Ainda assim no meio dessas circunstâncias terríveis, da forma como nós as sentiriamos, eles eram criaturas mais contentes e animadas do barco. Um deles, o qual o crime pelo qual havia sido vendido era um excesso de zelo por sua esposa, tocava o violino continuamente; e os outros dançavam, cantavam, contavam piadas, e jogavam cartas diariamente. 

Quão verdade é o ditado que diz que “Deus não dá a ninguém um fardo que não possa aguentar” ou, em outras palavras, que Ele torna a pior condição humana tolerável, enquanto Ele também permita que a melhor das condições também não seja nada além de tolerável.” [ênfase adicionada]

Deus providencialmente fez os negros não sentirem as coisas de forma tão ruim “como nós as sentiriamos”. Esse é o exato oposto da moral que Mark Twain deu à sua história quando ele fez Huck se dar conta que Jim amava tanto sua filha quanto um pai branco amaria. Lincoln, pelo contrário, relativiza e banaliza a escravidão.

O Quaker John Woolworth, quando viajou pelo sul em missões evangelizadoras um século antes de Lincoln, pagou a escravos domésticos o que eles receberiam caso fossem livres quando estes lhe serviam refeições ou realizavam outros serviços da casa. Lincoln, por outro lado, aceitou quando seu amigo Joshua Speed lhe ofereceu os serviços de um escravo como seu assistente pessoal durante um mês de estadia na sua casa em Kentucky[3].  Lincoln e Speed permaneceram amigos próximos, apesar de Speed ter lhe escrito em 1855 que ele veria a união se dissolver antes que ele abrisse mão do direito de possuir escravos.

Lincoln nunca demonstrou repúdio pessoal contra a escravidão. Algumas vezes, pelo contrário, ele sentia repulsa por abolicionistas. Na eulogia escrita em 1852 para seu herói político Henry Clay, ele escreveu:“Aqueles que prefeririam despedaçar a união desses estados; rasgar em pedaços sua venerada constituição; e até mesmo queimar a última cópia da Bíblia ao invés de ver a escravidão persistir por mais uma hora, assim como seus simpatizantes mais fervorosos, tem recebido e estão recebendo sua justa execração...” [ênfase adicionada]

Lincoln criticava amargamente abolicionistas que não votaram em Henry Clay na eleição presidencial porque ele era um escravocrata, e criticava igualmente aqueles que não votaram nele como uma forma de protesto contra a anexação do Texas como um território escravagista: “nunca me interessei pela questão do Texas”. Em 1837, enquanto servia na legislatura de Illinois, Lincoln e um colega representante não chegaram a proibir as associações abolicionistas, mas declararam “que a propagação de doutrinas abolicionistas tendia a aumentar os males da escravidão”.

Lincoln confessadamente teve que se distanciar do movimento abolicionista ou sua carreira estaria condenada em Illinois, mas ele não parece ter feito isso de forma relutante. Lincoln sempre foi a favor da Lei do Escravo Fugitivo. 

Em 1859, quando o partido republicano de Ohio denunciou a captura de escravos fugitivos, Lincoln contestou afirmando que isso poderia ser um golpe fatal no partido republicano, e tomou medidas urgentes pra impedir que o partido fizesse o mesmo em Illinois: “Eu vos asseguro que a causa republicana não terá chances em Illinois se assumir essa plataforma política”. Em 1854 ele havia dito, “Eu os daria [aos sulistas] qualquer legislação que lhes garantisse a restituição de seus fugitivos”.

Lincoln demonstrava uma ternura surpreendente com escravocratas. Seus próprios planos para uma gradual, voluntária e compensada emancipação do distrito de Columbia ou em estados adjacentes pretendiam ressarcir com o preço de mercado dos escravos (determinado por um conselho de assessores) qualquer dono de escravos “que desejasse emancipa-los”. 

Crianças escravas libertas “devem prestar serviço, como aprendizes” para seus antigos donos até atingir idade adulta. Se um estado de fronteira concordasse com a emancipação compensada, Lincoln ainda prometia mais subsídios “para compensá-los pelas inconveniências públicas e privadas, causadas por tal mudança de sistema”.

2.Inferioridade dos negros
Como Lincoln acreditava que negros era menos sensíveis a injustiças do que brancos, o que permitia que eles permanecessem contentes sob condições insuportáveis “como nós as sentiriamos”, ele claramente partiu de uma perspectiva de que negros são diferentes de brancos. 

Até 1862, quando já era presidente, Lincoln afirmava que usar negros nos exércitos da União era impraticável porque eles tinha pouca habilidade: “Eu não tenho certeza que podemos fazer muita coisa com os negros. Se nós os armassemos, temo que em poucas semanas as armas cairiam nas mãos dos rebeldes”

Enquanto debatia Stephen Douglas em 1858, Lincoln duvidou que estados tivessem o poder para declarar negros cidadãos com direito ao voto, “e se o estado de Illinois tivesse esse poder, eu me oporia ao exercício dele”. Ele acrescenta: “Eu digo então que não sou, nem nunca fui a favor de trazer qualquer igualdade política e social às raças branca e negra, [aplauso] – que não sou nem nunca fui a favor de transformar os negros em eleitores ou jurados, nem de torná-los elegíveis para cargos públicos, nem de permiti-los casar com pessoas brancas; e direi ainda que há uma diferença física entre negros e brancos que para sempre irá impedir que as duas raças vivam em termos de igualdade política e social. 

E já que não podem viver nesses termos, enquanto elas tiverem que conviver deverá haver uma posição superior e uma inferior, e eu assim como qualquer outra pessoa sou a favor de garantir aposição superior para a raça branca.” [ênfase adicionada]

Lincoln francamente expressou sua solidariedade com aquilo que ele percebia como sendo o racismo abrangente da sociedade. Falando sobre os escravos em Peoria em 1853, ele disse:“Libertá-los e mantê-los entre nós como subalternos? Será que isso melhoraria sua condição? Eu acredito que não manteria nenhum em escravidão, sem dúvida; no entanto essa questão não está clara pra mim o suficiente pra denunciar qualquer pessoa por mantê-los escravos. 

O que vem depois? Libertá-los e torná-los politicamente e socialmente nossos iguais? Minha índole jamais admitiria isso; e ainda que admitisse, sabemos que a grande massa de pessoas brancas não admitiria. Se esse sentimento está de acordo com a justiça e com um juízo são, não é o único problema, quiçá vem ao caso. Um sentimento universal, seja ele bem ou mal fundamentado, não pode ser ignorado. Não podemos, portanto, torná-los iguais.” [ênfase adicionada]

Mencionei mais acima que uma das razões que Lincoln apresentou para retirar os negros do território americano seria a redução na probabilidade de miscigenação: “O juíz Douglas se horroriza especialmente com a possibilidade da mistura de sangue entre negros e brancos: concordo – concordo mil vezes... A separação das raças é a única medida que pode prevenir a mistura, mas como a separação imediata é impossível a melhor medida é mantê-los separados onde eles ainda não estão juntos. Se brancos e negros nunca se juntarem no Kansas, eles nunca irão miscigenar no Kansas.” [ênfase no original]

Lincoln mudou de idéia sobre o emprego de negros no exército quando George Livermore lhe deu um livro relatando como Washington utilizou negros durante a revolução. Charles Sumner deu o livro de Livermore a Lincoln em agosto de 1862, e em janeiro de 1863 Lincoln convocou escravos libertos para servir no exército, mas apenas para “guarnecer fortes, estações e outros lugares, e para pilotar embarcações”. 

Ele ainda não concordava com o uso de negros em combate. Mas dois meses depois ele escreveu:“A população de cor é a força mais disponível, mas não utilizada, que temos para restaurar a União. A simples visão de cinquenta mil soldados negros armados e treinados nas bancadas do Mississippi daria um fim à rebelião de uma vez. E quem dúvida que poderiamos apresentar essa visão se nos empenharmos para isso? [ênfase no original]

Apesar de finalmente confiar armas aos negros, Lincoln se recusou por um ano e meio a dar aos soldados negros um pagamento igual àquele dado aos brancos, presumivelmente para não ofender os brancos sugerindo que os negros fossem seus iguais. Negros recebiam apenas a metade do pagamento dado ao mais baixo escalão dos soldados brancos. Apenas depois de ameaçar motim (e após vários soldados serem enforcados por protestar o pagamento desigual) os negros uniformizados conseguiram equalizar seu pagamento.

Apesar disso, o professor Gates – sobrinho-bisneto de J. R. Clifford, soldado negro que serviu o exército da União – acredita que soldados afro-americanos provocaram em Lincoln a primeira suspeita de que existiam “negros nobres”. Ele nunca havia conhecido nenhum negro bem educado até ter conhecido, perto de sua morte, Frederick Douglass. Mais ainda assim ele imaginava seus “guerreiros negros” como uma exceção à raça em geral. 

No último discurso proferido em sua vida, ele propôs que apenas negros veteranos ou aqueles “muito inteligentes” pudessem ter direito ao voto. Como delimitar essa classe dos “muito inteligentes” ele não fez questão de explicitar. Mas ainda assumia que a maioria dos negros não dispunha de inteligência.

3.Colonização
A medida mais clara do racismo de Lincoln era sua obsessão com um plano geralmente parece periférico para nós, mas que tinha uma importância central para ele – o plano de enviar escravos libertos para Colombia, Haiti ou Libéria. Não podemos afirmar o suficiente a importância dessa idéia pra Lincoln, tão obviamente impraticável aos nossos olhos, a não ser que atentemos para o fato que a migração forçada era o programa mais importante pelo herói  político mais estimado de Lincoln, Henry Clay. 

Ele considerava o plano de Clay para colonização de negros libertos como o sua maior contribuição para o pensamento político. Isso era o que eximia Clay do fato de que ainda possuía escravos – eles os estava mantendo até que pudesse deportá-los pra outro país. Clay afirmava que os negros libertos iriam carregar para a África a civilização e o cristianismo que haviam absorvido aqui. 

Lincoln cita as palavras de Clay com admiração: “Não seria um esse o grande plano do Mestre do universo (cujos desígnios são frequentemente inescrutáveis para nossa moral míope), transformar um crime original em um sinal de benção para a parte mais desafortunada do planeta?” Lincoln apoia fervorosamente esse sonho: “Que seja de fato realizado!”

Ele afirmou contra Stephen Douglas: “Eu não tenho nenhuma intenção de promover a igualdade política e social entre as raças negra e branca. Existe uma diferença física entre as duas que em meu juízo irá pra sempre proibir seu convívio em pé de plena igualdade”

Já que não podem viver juntos, devem ser mantidas o mais longe possível uma do outra. Lincoln admitiu os diversos problemas, logísticos e econômicos, no transporte de tal quantidade de homens, mulheres e crianças; mas acreditava que a tarefa valia tal esforço. 

No ano de 1857 em Springfield, Illinois, ele disse: “Vamos acreditar que é moralmente correto, ou favorável aos nossos interesses, transferir os africanos para seu clima nativo, e encontraremos uma forma de fazê-lo, não importa quão difícil a tarefa seja. Os filhos de Israel, que chegavam a quatrocentos mil combatentes, sairam do Egito em um único grupo”

Após sua eleição pra presidência, Lincoln continuou se empenhando pra realizar seu plano favorito. Ele trouxe uma comitiva de líderes negros até a Casa Branca em 1862 e disse a eles que ambas as raças sofriam com a proximidade uma da outra: “Se não fosse por sua raça não teria havido guerra, apesar de muitos homens em cada lado do conflito não se importarem com vocês de um jeito ou de outro. De qualquer forma, eu repito, se não fosse pela instituição da escravidão e pela raça de cor como sua base, a guerra jamais aconteceria”.

Frederick Douglass condenou esse comentário de Lincoln até depois de sua morte. Lincoln disse aos negros que eles tinham que aguentar qualquer sofrimento que a deportação pudesse causar porque deviam isso à raça branca: “Nós somos de raças diferentes. Há entre nós uma diferença muito maior do que a diferenças que possam existir entre quaisquer outras raças. Se isso é certo ou errado não vem ao caso, mas essa diferença física é uma grande desvantagem para todos nós, pois acredito que sua raça sofra bastante convivendo entre nós assim como a nossa sofre com sua presença”.

Ainda naquele ano em seu discurso anual ao congresso, Lincoln afirmou (com poucas evidências) que ele encontrou “muitos americanos de descendência africana” que “eram favoráveis à imigração para a Libéria ou o Haiti”. Na sua última mensagem anual (6 de Dezembro de 1864) Lincoln pediu ao congresso para oferecer à Libéria uma embarcação armada para defender os negros libertos lá.

[4] Frederick Douglass, apesar de no fim estimar Lincoln após anos de desconfiança, viu o racismo fundamental por trás da ardente promoção desse esquema colonial. Dois livros recentes ressaltam apropriadamente a estima mútua que se formou entre Lincoln e Douglass.

[5] Mas até mesmo na dedicatória do Monumento aos Libertos a Lincoln, Douglass relembrou como Lincoln testou a paciência dos negros ano após anos. Em uma sentença eloquente ele recordou as vicissitudes dessa relação: “Quando ele esperou demais; quando estranhamente nos acusou de sermos a causa da guerra; quando ele de forma ainda mais estranha nos disse pra deixar a terra onde nós nascemos; quando ele se recusou a empregar-nos na defesa da União; quando, após aceitar nossos serviços como soldados de cor, ele se recusou a retaliar nosso assassinato e a tortura que sofremos como prisioneiros de cor; quando nos disse que ele salvaria a União mantendo a escravidão se pudesse; quando ele revogou a Procramação de Emancipação do General Frémont; quando ele se recusou, nos dias da derrota do exército da União em Potomac, a remover seu popular comandante que tinha mais zelo por proteger a escravidão do que por suprimir a rebelião; quando nós vimos tudo isso e mais, nós ficamos magoados, atordoados e perplexos; mas nossos corações acreditavam, ainda que doendo e sangrando.

[6] Douglas disse a Lincoln, depois de seu segundo discurso inaugural, que o discurso foi um “esforço sagrado”. Mas depois ele deu uma apreciação equilibrada sobre a performance de Lincoln em relação ao tratamento dos negros:“Visto da perspectiva abolicionista, Mr. Lincoln pareceu tardio, frio, vago e indiferente; mas medindo-o pelo sentimento de seu país, um sentimento que ele se via forçado a consultar, ele foi ágil, zeloso, radical e determinado[7]

Qual o julgamento final sobre o grande emancipador? Gates, assim como Douglass, concede a ele um louvor ressentido. Mas Gates afirma que o último serviço de Lincoln se baseou em um erro. Ele avançou a causa de negros afirmando, contra fato histórico, que a afirmação de Jefferson de que “todos os homens são criados iguais” devia também incluir negros. Gates sabe que não: “Thomas Jefferson certamente não estava pensando em negros e mulheres quando ele escreveu a Declaração de Independência, e nenhum desejo romântico pode mascarar esse fato”.

O “homem” referido em “todos os homens são criados iguais” é o homo politicus, a pessoa capaz de se auto-governar, o que no século XIII excluia mulheres, escravos, negros e outras “raças inferiores”, crianças e os insanos. Apenas homines politici tem, nas palavras da Declaração “o direito do povo de alterar ou abolir [a forma de governo] e instituir um novo governo”. 

Certamente nenhuma mulher e nenhum negro exercia esses direitos na Revolução que Jefferson lutou. Stephen Douglas estava correto em seus debates com Lincoln: “Quando Thomas Jefferson escreveu aquele documento, ele era dono, e assim continuou até sua morte, de uma vasta quantidade de escravos. Ele tinha intenção de dizer na declaração que seus escravos negros, que ele possuía e tratava como propriedade, haviam sido criados como seus iguais por lei divina, e que ele estava violando a lei de Deus todos os dias de sua vida os mantendo como escravos? É preciso lembrar que quando essa Declaração foi criada, cada uma das trezes colônias eram colônias escravagistas, e cada homem que assinou o documento representava um distrito eleitoral escravagista. 

Lembre também que nenhum deles emancipou seus escravos, muito menos os colocou em pé de igualdade consigo mesmo, após assinar a declaração. Ao contrário, todos eles continuaram a manter os negros como seus escravos durante a Guerra da Revolução. Agora você acredita que todos os homens que assinaram a Declaração de Independência aceitaram os negros como seus iguais, e ainda assim foram hipócritas o suficiente para continuar mantendo-os como escravos, violando aquilo que eles acreditavam ser uma lei divina?”[8]   

No entanto graças a Lincoln, a maior parte dos americanos hoje em dia acredita que as palavras de Jefferson de fato também se aplicavam aos negros, e Gates acredita que essa interpretação foi “a coisa mais radical que Abraham Lincoln fez”. Isso é uma daquelas releituras criativas que afeta a história de forma benigna. 

Outros exemplos são a falsa teoria de Políbio que afirmava que o governo romano era baseado em uma “constituição mista” que combinava monarquia, oligarquia e democracia; ou a aderência de Jefferson à teoria da “liberdade anglo-saxã” original que a Revolução Americana estava restaurando; ou a idéia de que o “controle” entre “poderes equivalentes” são a essência do sistema político americano.

[9] Em todos esses casos um pouco de má história abriu caminho para boas políticas. Se a Declaração não dizia realmente que brancos são iguais a negros, devia ter dito (ou pelo menos assim achava Lincoln), e nós continuamos adiante assumindo que assim foi dito. Obrigado, Mr Lincoln, por nos fazer o favor de estar proveitosamente errado.

Notas
[1] Lerone Bennett, Forced into Glory (Johnston, 2004)

[2] Frederick Douglass “Oration at the dedication of the Freedmen’s Monument”, em Autobiographies, editado por Henry Louis Gates Jr. (Library of America, 1994) pp. 921-922

[3] Lincoln Speeches and Writings, editado por Don E. Fehrenbacher (Library of America, 1989), Vol. 2, p. 641

[4] Lincoln Speeches and Writings, editado por Don E. Fehrenbacher (Library of America, 1989), Vol. 2, p. 641

[5] James Oakes, The Radical and the Republican: Frederick Douglass, Abraham Lincoln, and the Triumph of Antislavery Politics(Norton, 2007), e John Stauffer, Giants: The Parallel Lives of Frederick Douglass and Abraham Lincoln (Twelve, 2008)

[6] James Oakes, The Radical and the Republican: Frederick Douglass, Abraham Lincoln, and the Triumph of Antislavery Politics(Norton, 2007), e John Stauffer, Giants: The Parallel Lives of Frederick Douglass and Abraham Lincoln (Twelve, 2008)

[7] Douglass, Autobiographies, p. 921

[8] Speech at Galesburg, Illinois, October 7, 1858, in The Lincoln-Douglas Debates, editado por Rodney O. Davis and Douglas L. Wilson (University of Illinois Press, 2008), p. 184

[9] As palavras “controle” (checks) e “poderes equivalentes” (coequal branches) não aparecem na Constituição, e sobre essa última idéia Madison afirmou, “no governo republicano o poder legislativo necessariamente é predominante”. Ver The Federalist Papers, no. 51.
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Tradução de Leonardo Tavares Brown. Revisão de Juliano Torres.

Fonte: http://www.nybooks.com/articles/archives/2009/jun/11/lincolns-black-history/?pagination=false

Matéria publicada originalmente em:
http://www.libertarianismo.org/index.php/academia/artigosnovo/1252-a-historia-negra-de-lincoln

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