Chico, um gênio esquecido. A rotina do maior humorista brasileiro fora das telas. Ele
está doente, fala e pensa na morte, mas ainda segue à procura de um
teatro onde possa dar vida aos novos personagens que criou.
Por Leonardo Attuch.
Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho está sentado no centro de um
ambiente quase vazio, com os quadros que ele próprio pintou espalhados
pelos cantos da sala. Chico Anysio, o criador de tipos inesquecíveis que
fizeram história na televisão brasileira, se desculpa pela bagunça.
"Acabei de me mudar", diz. Ele agora vive em São Paulo, não mais no Rio
de Janeiro. Seu apartamento é modesto, tem apenas dois quartos e 90
metros de área útil num prédio antigo da alameda Santos, e de lá ele
quase não sai. Vai ao médico quando sente sintomas estranhos, como a dor
de cabeça que o pegou de surpresa no dia em que recebia a reportagem de
ISTOÉ pela primeira vez. "Uma dor diferente."
Aos 78 anos, o humorista,
que é considerado por muitos o "Chaplin brasileiro", combate um
enfisema pulmonar, adquirido após décadas de fumo compulsivo. Há três
meses, sofreu uma pneumonia e ficou quase 30 dias internado. Ao sentir o
sopro da morte, Chico escreveu uma espécie de testamento. "Deixo nove
filhos: oito homens e uma princesa. A vida está aí para que a
aproveitemos, mas a verdade é que estou de saída", postou na internet.
Ao falar à ISTOÉ, ele, o criador do Painho, do Pantaleão, do Alberto
Roberto, do Bozó e de dezenas de personagens que ainda estão vivíssimos
na memória afetiva dos brasileiros, mencionou o fim, citando o Hamlet,
de Shakespeare.
Entre uma lembrança e outra, Chico se recorda de uma cena que
observou da janela, alguns anos atrás. Num dia de intensa ventania, um
rapaz tentava em vão acender um cigarro nas ruas do Rio de Janeiro. Até
que se escondeu sob uma marquise e, finalmente, conseguiu. "Burro, mal
sabe que o vento queria apenas ajudá-lo", pensou Chico. Essa mesma
"burrice" custou ao humorista um pulmão praticamente enferrujado. Todos
os dias, ele faz um trabalho de reabilitação pulmonar e caminha numa
esteira. Começou fazendo um minuto apenas. Hoje, consegue andar quatro
minutos sem se cansar e espera chegar aos 40. Junto com a pneumonia, que
causou sua internação no Samaritano, do Rio, aconteceu também uma queda
doméstica. "Envelheci cinco anos numa semana", diz ele. "Descobri que a
vida é uma prova hípica, o nosso envelhecimento vem aos saltos."
Durante sua entrevista à ISTOÉ, dividida em duas etapas, a segunda já
com o apartamento mobiliado e com os quadros na parede, Chico também
falou sobre drogas. Durante muitos anos, pairou no meio artístico a
suspeita de que ele teria um famoso "nariz de platina", pois suas
mucosas nasais não teriam resistido às doses cavalares de cocaína.
"Cheirei três ou quatro vezes, algumas vezes até fingi que cheirava para
não ser o chato da festa, mas nunca gostei." Ele diz até ter
curiosidade em saber como seria um nariz de platina. "Como é isso?",
pergunta. Maconha, ele experimentou uma única vez e passou mal. Vícios
pesados mesmo, só dois: a nicotina e o trabalho.
Do segundo, ele ainda não abriu mão. Embora tenha um contrato com a
Rede Globo até 2012, que lhe rende cerca de R$ 100 mil mensais, Chico
não é um homem rico. "Nada pode ser tão caro na vida como o divórcio",
diz o humorista, já no sexto casamento, com a fisioterapeuta Malga di
Paula, 40 anos mais jovem. "Trabalho porque gosto, mas também porque
preciso."
À esposa anterior, a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello, com quem
teve dois filhos, ele paga uma pensão de US$ 10 mil. E o destino também
lhe pregou uma peça. À medida que os anos passavam, o número de
ex-mulheres crescia e o salário na Globo, que já foi de R$ 400 mil,
diminuía. "Nunca me programei pensando que aquele meu auge um dia
poderia acabar", diz o homem que foi líder de audiência durante 36 anos e
saiu do ar em 2001, ao ser derrotado pelos músculos de Arnold
Schwarzenegger. Foi quando sua Escolinha do Professor Raimundo teve
menos Ibope que o filme O Exterminador do Futuro, exibido pelo SBT, de
Silvio Santos.
O trabalho fora da televisão, no entanto, não tem sido tão lucrativo
para Chico. Um dos últimos produtos lançados por ele foi um DVD duplo,
com os melhores momentos dos seus programas. Vendeu cerca de 15 mil
exemplares, mas os direitos autorais não corresponderam. "Sabe quanto eu
ganhei?", pergunta, repetindo com os dedos o gesto imortalizado pelo
Professor Raimundo ("e o salário, ó!"). "Du-zen-tos e qua-ren-ta e no-ve
re-ais", responde o humorista, enfatizando cada uma das sílabas. "Dizem
que a culpa é da pirataria." Na maior parte do tempo, Chico se dedica a
retocar um espetáculo novo, que ele acaba de criar. Chama-se "Tudo eu" e
terá dez novos personagens - entre eles um médico paulista chamado Dr.
Haddock Lobo, que não gosta de doentes, assim como o político Justo
Veríssimo tinha ojeriza a pobres.
Sentado na poltrona, diante da
reportagem, o artista se transfigura. Sua voz assume um novo timbre e
ele fala como um paulistano da Mooca. Num átimo, Chico se transforma
novamente, seus olhos diminuem de tamanho e ele passa a ser japonês -
seu Fukuda é um dos seus novos tipos, que ele espera, em breve, poder
incorporar. "Sairei à procura de um teatro", diz o artista. Mais um
corte: Chico agora está fanhoso e sua voz é inconfundível. Pantaleão, um
de seus mais célebres personagens, invade o ambiente. "Esse timbre é do
Luiz Gonzaga", revela Chico, antes de repetir um de seus bordões mais
famosos: "É mentira, Terta?"
O último trabalho publicado se chama "Três Casos de Polícia" e contém
uma inspirada história chamada "O Sucessor de Maigret", o célebre
detetive criado pelo belga Georges Simenon. A novela, que ele sonha ver
traduzida para o francês e interpretada no cinema com Gerard Depardieu
no papel principal, revela muito sobre o método de criação de Chico.
Antes de escrevêla, passou uma semana em Paris. Obsessivo pela qualidade
do trabalho, anotou a direção do tráfego e cronometrou o tempo que um
assassino levaria para ir de um ponto a outro da cidade. "Quis ser
preciso", diz ele. Como escritor, Chico publicou vários best-sellers na
década de 70, como "O Batizado da Vaca", "O Telefone Amarelo" e "O
Enterro do Anão".
Com uma voz cansada e bem menos ágil do que seu raciocínio, Chico
também se diz um homem sem fé. Fala que, a partir de certa idade, o ser
humano se vê diante de uma bifurcação.
Há aqueles que se apegam às religiões, e os que se mantêm descrentes -
Chico afirma fazer parte do segundo grupo. "Se houvesse uma eleição
para Deus, eu não votaria neste que está aí", diz ele. Mas então por que
ele decidiu inserir a figura de um profeta nos seus programas de humor?
"Foi antes da bifurcação", ele responde.
Chico gostaria de voltar à televisão. Poucos dias depois de postar um
comentário de despedida na internet, ele fez nova confidência na rede.
Disse que ainda esperava um telefonema dos irmãos Marinho, assim como
uma adolescente aguarda a ligação do primeiro namorado. "Estou vivo e paciente, esperando a cada telefonema que seja alguém
da Globo, vestido de azul marinho e dizendo que alguém da mesma cor quer
me ver de novo na telinha." O telefone toca, Chico atende e interrompe
por alguns instantes a entrevista. Não era ninguém da Globo. Ainda assim
ele não perde a esperança. "Eles (a Globo) querem muito que eu faça de
novo o Alberto Roberto, mas eu gostaria de fazer também o Justo
Veríssimo, que nunca foi tão atual como agora", diz ele. "E queria
também que eles me dessem um espaço à tarde, depois das reprises
daquelas novelas".
Chico imagina um "Vale a Pena Rir de Novo". Alguma
mágoa? "Quem tem menos de 14 anos não sabe quem eu sou". E ele, sem
modéstia, diz que foi uma das pessoas que mais fizeram o brasileiro
feliz no século XX. "Pelé, Roberto Carlos, Oscarito... jogo nesse time,
com certeza." E sobre o humor, o que o velho Francisco, que desceu de
Maranguape, no Ceará, e conquistou o Brasil, tem a dizer? "Há dois
tipos: o engraçado, que eu fazia, e o sem graça, que se vê por aí."
"Não há outra vida. Morreu, acabou"
Enquanto fazia sua mudança do Rio de Janeiro para São Paulo,
Chico Anysio falou à ISTOÉ. E disse que, aos 78 anos e tendo de
enfrentar um enfisema pulmonar agudo, não há como não pensar na morte.
ISTOÉ - Ao deixar um adeus na internet, o sr. sentia a morte por perto?
Chico Anysio - Aos 78 anos, é inevitável. Tive uma pneumonia, sofri
uma queda e envelheci cinco anos numa semana. Fumei muito e hoje tenho
um enfisema. Mas, quando penso que podia ser um câncer, me sinto
premiado.
ISTOÉ - O envelhecimento o deprimiu?
Chico - Não, porque minha cabeça está trabalhando.
Criei novos personagens, fui descoberto pelo cinema e imagino novas
histórias. Tenho vários livros inéditos. Apenas estou fora da televisão.
Só faço uma advertência: talvez seja precipitado escrever meus
obituários.
ISTOÉ - O sr. tem fé?
Chico - Não. Já perdi meus avós, meu pai, minha mãe,
uma irmã e até agora não apareceu ninguém aqui para me dizer: "Chico,
venha, que tem outra vida do lado de cá." Como diz Shakespeare: "Morrer é
dormir. Talvez, sonhar." Não há outra vida. Morreu, acabou.
ISTOÉ - Ficar tanto tempo fora da televisão é também uma morte?
Chico - De certa forma, sim. O artista está vivo
enquanto atua. E eu, que sou um ator de televisão, estou à procura de um
teatro. Criei dez novos personagens e quero mostrá-los. Além disso, o
palco é curativo. Às vezes, tenho uma baita dor de estômago. Subo num
palco, a dor passa. Saio, ela volta.
ISTOÉ - Como o sr. avalia o humor feito no Brasil hoje?
Chico - Há dois tipos de humor: o engraçado e o sem
graça. De repente, na Globo, acharam que era preciso uma coisa nova. Mas
o humor nunca pediu uma coisa nova. Ele pede apenas uma coisa
engraçada. Recentemente, o "CQC" foi apontado como o melhor programa de
humor da televisão brasileira, mas aquilo não é humor. É jornalismo
combativo, irreverente. O "Pânico" atinge uma parcela pequena da
juventude. E o "Casseta & Planeta", quanto será que daria de Ibope,
se não estivesse na Globo?
ISTOÉ - Aos 78, o sr. ainda teria gás para continuar?
Chico - Pelo menos mais dez ou 15 anos.
FONTE: http://brasil247.com/pt/247/cultura/49504/Chico-Anysio-Morrer-dormir-talvez-sonhar.htm
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