A greve das universidades federais não é um evento
isolado, mas parte de um processo que, infelizmente, tem tudo para
acabar mal. Para entender, é importante lembrar que, diferentemente da
maioria dos outros países da América Latina, o Brasil nunca teve grandes
universidades nacionais abertas para todos que concluem o ensino médio,
e optou, desde o início, por universidades seletivas, abrindo espaço
para o crescimento cada vez maior do ensino superior privado, que, com
seus cursos noturnos, de baixo custo e sem vestibulares difíceis, acabou
atendendo à grande demanda por ensino superior de pessoas mais pobres e
sem condições passar nos vestibulares e estudar de dia, que o setor
público não atendia. Hoje, apesar do esforço do governo federal em
aumentar a matrícula em suas universidades, 75% dos estudantes estão do
setor privado.
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Com um setor público pequeno e seletivo, as universidades brasileiras
conseguiram criar um corpo de professores de tempo integral e dedicação
exclusiva, desenvolver a pós-graduação e criar muitos cursos de
qualidade, coisas que quase nenhum outro país da região conseguiu. Mas,
como parte do serviço público, elas possuem um sistema homogêneo de
contratos de trabalho, regras e promoção de professores e programas de
ensino que não tomam em conta o fato de que elas são, na verdade, muito
diferentes entre si – algumas têm programas de qualidade de graduação e
pós-graduação em áreas dispendiosas como Engenharia e Medicina e fazem
pesquisas relevantes, enquanto outras simplesmente copiam os modelos
organizacionais, as regras de funcionamento e os custos das primeiras,
com muito pouco de sua cultura institucional e conteúdos.
Com a
generalização dos contratos de tempo integral e a estabilidade dos
professores, os custos subiram, sem mecanismos para controlar a
qualidade e o uso adequado de recursos, que variam imensamente de um
lugar para outro, independentemente de resultados.
Na década de 90, com Paulo Renato Souza como ministro da Educação,
houve algumas tentativas de colocar esta situação sob controle,
introduzindo um sistema de avaliação de resultados (o Provão),
vinculando parte do salário dos professores ao número de aulas dadas, e
tentando introduzir legislação dando às universidades autonomia não
somente para gastar, mas também para assumir a responsabilidade pelo uso
eficiente dos recursos públicos através de orçamentos globais, e
tentando fazer valer a prerrogativa do governo federal de escolher
reitores a partir das listas tríplices selecionadas pelas universidades.
Estas políticas encontraram grande resistência, os orçamentos globais
nunca foram instituídos, o “Provão” na prática só afetou alguns
segmentos do setor privado, e o conflito entre as universidades e o
governo no episódio da nomeação do reitor da UFRJ, em um tempo em que os
salários não aumentavam, mobilizou grande parte dos professores, alunos
e administradores das universidades federais contra o Ministério da
Educação e o governo Fernando Henrique Cardoso.
Nos primeiros anos do governo Lula as relações das universidades
federais com o governo passaram por um período de lua de mel: tudo era
concedido, e nada era cobrado. A gratificação de docência foi
incorporada aos salários, que passaram a crescer graças à melhora da
economia e do aumento geral dos gastos públicos; o “Provão” foi
substituído por um pretensioso sistema de avaliação, o Sinaes, que
demorou em se organizar e continuou sem afetar as instituições federais;
e a nomeação dos reitores eleitos internamente pelas universidades se
transformou em regra.
Para atender à demanda crescente por educação
superior, o governo comprou vagas no setor privado com o ProUni, em
troca de isenção de impostos, aumentando cada vez mais a proporção de
estudantes no setor privado. Ao mesmo tempo, o governo iniciava uma
política de expansão do acesso às instituições federais, primeiro com a
introdução de cotas raciais e sociais, depois com a criação de novas
instituições e a abertura de novas sedes das universidades existentes, e
finalmente com o programa Reuni que, em troca de mais recursos, exigiu
que as universidades federais praticamente duplicassem o número de vagas
abrindo novos cursos, sobretudo noturnos, e aumentassem o número de
aulas dadas por professor.
Ao mesmo tempo, os antigos centros federais
de educação tecnológica, os Cefets, foram transformados em Institutos
Federais de Tecnologia e equiparados às universidades em termos de
custos e prerrogativas. Segundo dados do Inep, o gasto por aluno do
governo federal passou de R$ 9 mil ao ano em 2001 para R$ 18 mil em
2010, acompanhando a inflação. Como o número de alunos do sistema
federal duplicou nestes dez anos, devendo estar hoje em cerca de um
milhão, os custos do sistema aumentaram na mesma proporção em termos
reais, embora o número de formados tenha aumentado pouco. Só o programa
Reuni custou R$ 4 bilhões, metade para investimentos e outra metade que
passou a se incorporar ao orçamento das universidades federais.
Esta política de expansão acelerada não obedeceu a nenhum plano ou
avaliação cuidadosa sobre prioridades, abrindo instituições aonde não
havia demanda, admitindo alunos antes de existirem os edifícios e
instalações adequadas, forçando as universidades a criar cursos noturnos
e contratar mais professores mesmo quando não havia candidatos
qualificados, e sobretudo sem preparar as universidades para lidar com
alunos que chegavam do ensino médio cada vez menos preparados. Ao mesmo
tempo, a necessidade de contenção de gastos do governo Dilma tornou
impossível atender às expectativas de aumento salarial dos professores,
gerando um clima generalizado de insatisfação revelado pela greve.
É possível que a greve leve a algumas concessões salariais por parte
do governo federal, como costuma acontecer, mas o efeito mais visível
deste tipo de movimento é o de prejudicar os estudantes e professores
mais comprometidos com o estudo e pesquisa, levando à desmoralização das
instituições, sem que as questões de fundo sejam tocadas.
A principal
questão de fundo é a impossibilidade de o setor público continuar se
expandindo e aumentando seus custos sem modificar profundamente seus
objetivos e formas de atuação, diferenciando as instituições dedicadas à
pesquisa, à pós-graduação e ao ensino superior de alta qualidade, que
são necessariamente mais caras e centradas em sistema de mérito, das
instituições dedicadas ao ensino de massas em carreiras menos exigentes,
que é onde o setor privado atua com custos muito menores e qualidade
pelo menos equivalente. Esta é uma tese que provoca enorme reação nas
instituições federais e os sindicatos docentes, que querem sempre
continuar iguais e niveladas por cima em seus direitos, embora esta
nivelação não exista em relação aos resultados. Mas a conta,
simplesmente, não fecha.
Uma diferenciação efetiva exigiria limitar os contratos de trabalho
de tempo integral e dedicação exclusiva às instituições que consigam
demonstrar excelência em pesquisa, pós-graduação e formação
profissional; introduzir novas tecnologias de ensino de massas e à
distancia, aumentando fortemente o número de alunos por professor; e
criar mecanismos efetivos que estimulem as instituições a definir seus
objetivos, trabalhar para eles, e receber recursos na proporção de seus
resultados. Um exemplo do que poderia ser feito é o processo de Bologna
que está ocorrendo na Europa, que cria um primeiro estágio de educação
de superior de massas de três anos, com muitas opções, e depois as
instituições se especializam em oferecer cursos avançados de tipo
profissional e científico conforme sua vocação e competência.
É
necessário, também, criar condições e estimular as instituições federais
a buscar recursos próprios, inclusive cobrando anuidades dos alunos que
podem pagar. Esta diferenciação exigiria que as universidades federais
fossem muito mais autônomas e responsáveis pelos seus resultados do que
são hoje, sobretudo na gestão de seus recursos humanos e financeiros, o
que se torna impraticável quando os salários dos professores são
negociados diretamente entre os sindicatos e o Ministério da Educação e
as tentativas de diferenciar benefícios e financiamento em função do
desempenho são sistematicamente combatidas.
Se nada disto for feito, o mais provável é que as universidades
federais continuem a se esgarçar, com greves sucessivas e piora nas
condições de trabalho dos professores e de estudo para os alunos,
abrindo espaço para que o setor privado ocupe cada vez mais o segmento
de educação superior de qualidade, como ocorreu no passado com o ensino
médio.
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