“Segundo crítica generalizada, um dos maiores obstáculos à livre
imprensa hoje está exatamente na Justiça, em especial com o que
denominam censura prévia que tem sido praticada pelos juízes, com o
fundamento da evitar lesões à honra e reputações das pessoas.”
Por Marcelo Semer, no blog Sem Juízo:
O
texto que segue foi a base da palestra “Judiciário e Mídia”, nas
Jornadas Jurídicas da Escola Superior da Magistratura do Amazonas,
realizado dia 25/08, na cidade de Manaus.

Do debate, coordenado pelo
juiz das Execuções Penais de Manaus, Luis Carlos Valois, também
participaram, o promotor de Justiça Otávio e Souza Gomes, o advogado e
jornalista Júlio Antônio de Jorge Lopes, e os juízes amazonenses Elci
Simões e Rosália Guimarães Sarmento.
Judiciário e Mídia
É
um enorme prazer estar presente na Escola Superior da Magistratura do
Amazona para fazer parte destas Jornadas Jurídicas e discutir questões
ligadas ao Judiciário e a Mídia.
Não pretendo conduzir uma
palestra dogmática, mas apenas compartilhar minha leitura sobre as
relações conflituosas entre Justiça e Mídia, sem a ilusão de que isso de
alguma forma sirva para superá-las.
Espero, entretanto, que lhes
sirvam como provocações para alimentar um debate – elogiando a direção
da Escola e a coordenação destas Jornadas (na presença do dr. Luis
Carlos Valois), que compartilham não apenas a possibilidade de uma
discussão não-dogmática dentro de uma escola da magistratura
(instituição sempre tão marcada pela reprodução de jurisprudências),
como em abrir o espaço à presença de advogados, estudantes e
profissionais da mídia.
Na dúvida entre tantos pontos
interessantes para abordar, sucumbi à tentação de fazer uma panorâmica
sobre vários deles, ainda que corresse o risco de uma exposição
fragmentada –aumento, todavia, a probabilidade de despertar a atenção
dos senhores para algumas das questões que me parecem relevantes.
Dividi
a exposição em 4 pontos para entender os principais pontos de contato e
de conflito: A mídia no Judiciário; o Judiciário na mídia; a mídia como
Judiciário; o Judiciário como mídia.
Começo por apontar o que é hoje a principal reclamação e polo de desgaste entre mídia e Judiciário: a censura prévia.
1) Midia no Judiciário.
Segundo
crítica generalizada, um dos maiores obstáculos à livre imprensa hoje
está exatamente na Justiça, em especial com o que denominam censura
prévia que tem sido praticada pelos juízes, com o fundamento da evitar
lesões à honra e reputações das pessoas.
O que para o jornalista é
traduzido como censura, para o juiz, muitas vezes, expressa-se apenas
como colisão de direitos (o direito de informar – e ser informado – e os
direitos da personalidade).
Ainda que não se possa excluir
nenhuma lesão ou ameaça de lesão da apreciação do poder judiciário,
diante do princípio da inafastabilidade (que é cláusula pétrea), e mesmo
diante de norma protetivas explícitas (como o art. 20, do Código Civil)
é de se notar que a Constituição Federal buscou eliminar a hipótese da
censura –e, na mesma medida, excluiu a proteção ao anonimato justamente
para poder viabilizar a responsabilidade de quem escreve.
Apenas a
titulo de exemplo, observo que a Constituição Federal assim disciplinou
a matéria no capítulo dos direitos fundamentais:
Fez explícita
que “ é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato(art. 5º, inciso IV) e ressalvou que é assegurado o direito de
resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material,
moral ou à imagem (inciso V).
Mais uma vez explicitou que “é
livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença (inciso IX, do
mesmo art. 5º), e também ressalvou que, sendo invioláveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das pessoas, “é assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação
(inciso X)”.
Ou seja, a Constituição se utiliza sempre o vocábulo
LIVRE para conferir o direito, ressalva o agravo (direito de resposta
proporcional, indenização pela violação), mas não faz nenhuma referência
à censura prévia.
Ao revés, assegurado ainda a “o acesso à
informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao
exercício profissional (inciso XIV, do art. 5º) e em capítulo próprio,
ainda expressa:
“Art. 220. A manifestação do pensamento, a
criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou
veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta
Constituição.
§ 1º – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa
constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em
qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º,
IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º – É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
Em
resumo, a Constituição foi múltipla na defesa da liberdade de
expressão, artística, intelectual, jornalística, política – mas sem
abrir mão das ressalvas que estabelecem os mecanismos de proteção
(direito de resposta proporcional ao agravo e indenização por danos
materiais e morais). E foi múltipla justamente porque vivenciamos época
forte de censura e seu impacto desastroso para democracia.
A
censura é a primeira providência do autoritarismo (pois impede crítica,
interdita debate, reduz política) e tende a ser invasiva, se espalha com
tentáculos. Na ditadura, por exemplo, chegamos à censura moral (do
obsceno) e até mesmo de uma epidemia de meningite.
A CF foi excessiva, porque democracia exige liberdade de expressão e a liberdade de expressão é um antídoto ao autoritarismo.
A democracia não sobrevive sem a liberdade de expressão, mas direitos da personalidade podem ter outros mecanismos de proteção.
É
certo que é difícil reparar a honra “a posteriori”, mas de outro lado é
impossível tutelar as lesões – uma tarefa que não será cumprida e um
remédio mais forte do que a doença.
Toda forma de censura tende a
ser sempre expansiva, pois a proteção se baseia no princípio da
prudência, da cautela. Na dúvida, sempre será mais prudente evitar a
reportagem –se pensarmos em todas as reputações que, com ou sem razão,
podem ser vulneradas em reportagens, dificilmente teremos jornais para
ler.
Nem se trata apenas de uma questão de garantir liberdade de
expressão (que, como nenhum direito também não é absoluta). Preocupa-me
mais a perversão no papel do juiz. De garantidor dos direitos
fundamentais e das liberdades, tende a se transformar em agente censor.
O controle pelo juiz é não apenas difícil, como também perigoso.
Embora
o reparo das lesões seja admissível perante o Judiciário, a questão é
saber se teríamos condições de evitá-las, sem ferir o direito à livre
expressão e sem interferir diretamente no processo político. Muitas
decisões acabam por desbalanceá-lo, ao proibir apenas determinadas
publicações.
Entre a posição de garantidor das liberdades e a de censor, creio que a posição do juiz se adequa melhor ao primeiro figurino.
É
bom lembrar que essa ideia de “juízo preventivo”, que resvala para a
censura prévia também foi empregada na proibição de manifestações,
diversas marchas que conteceram neste ano (Marcha da Maconha, Marcha da
Liberdade), especialmente a possibilidade de que crimes pudessem
acontecer durante as manifestações.
Em SP, por exemplo, tivemos
uma esdrúxula situação em que a manifestação foi proibida por decisão do
Tribunal de Justiça e liberada pela polícia.
Dada a função
garantista atribuída constitucionalmente ao juiz, é sempre preferível
que preserve a liberdade, sem o prejuízo de apreciar eventual reparação
dos danos. Aliás, o ponto central da inexistência de censura é
justamente a assunção da responsabilidade civil e penal pelos atos
publicados.
Se não há proibição antecipada de publicar, a responsabilidade pelo publicado é exclusiva dos órgãos de imprensa.
Nesse sentido, ausência de censura não significa desregulamentação ou ausência de responsabilidade.
Por
isso, a meu ver, questionável a posição do STF que, ao mesmo tempo que
extirpou a lei de imprensa (sob o duvidoso fundamento de que era uma lei
do tempo da ditadura) absteve-se, no caso Estadão, de apreciar a
inconstitucionalidade da censura prévia.
O fim da lei de imprensa
não elimina a responsabilidade penal, não elimina a responsabilidade
civil e só aumentou a confusão sobre o direito de resposta.
E se existe excesso de proibição nos tribuanis, de outro lado, há de se reconhecer que há escassez de direitos de resposta.
Garantir
a liberdade de expressão é uma necessidade, embora a imprensa também
tenha a sua parcela de responsabilidade nesta garantia.
A responsabilidade social da imprensa é exercer e estimular o pluralismo.
O
pluralismo é a premissa da liberdade de expressão. A liberdade de
expressão existe justamente para garanti-lo –preservar a fluência das
ideias.
Somos livres, sobretudo, para expressar nossas diferenças.
O
pluralismo é a voz que expressa a opinião que não nos pertence, da qual
não gostamos, aquela que mais nos incomoda. E justamente por isso é tão
necessária.
Porque não seríamos capazes de formulá-la por nós mesmos.
Sufocar
o pluralismo em nome do exercício da liberdade não é apenas um
contrassenso. É um verdadeiro paradoxo. Mas por incrível que possa
parecer tem acontecido quando cristalizamos uma grande imprensa quase
monolítica.
Embora tenhamos uma sociedade plural, extremamente
diversificada e repleta de divergências, a diversidade raramente é
contemplada nos órgãos da grande imprensa.
Os jornais são muito parecidos entre si e não se reproduz neles, em regra, a grande diversidade de opiniões.
Imprensa quando exibe apenas uma posição não faz jornalismo –faz publicidade.
Quando
a lei é empregada para, por exemplo, garantir direito de resposta, na
verdade está preservando a própria liberdade de expressão (ao assegurar o
‘outro lado’) e não atentando contra ela.
Ou seja, muitas vezes é
preciso garantir a liberdade de expressão contra a imprensa –sempre
lembrando que a liberdade de expressão e a liberdade de informar são,
sobretudo, direitos do cidadão.
A censura prévia não se coaduna com a liberdade de expressão, mas a desregulamentação tampouco.
2-) Judiciário na mídia
Se é verdade que a mídia vê no Judiciário um temor, o sentido inverso é ainda mais real.
A
aflição dos juízes para com a mídia sempre foi grande –agora que são
constantemente objeto de manchetes é simplesmente aterrorizadora.
Por que isso acontece?
É preciso lembrar que durante muitos anos, o Judiciário se colocou a si próprio numa situação de isolamento.
Era o que se acostumava chamar pejorativamente de “torre de marfim”, postura de alheamento fundada em três pilares:
a-) o juiz não deve se enfronhar em relações sociais que diminuam sua capacidade de julgar;
b-) o juiz é neutro, não tem posições políticas, tal como o direito é objetivo;
c-) não manifesta opiniões, porque juiz só fala nos autos.
Esse
isolacionismo partia de algumas premissas falsas, outras irrealizáveis.
Não é possível isolar o juiz de seus relacionamentos sociais, porque
ele só pode julgar sendo um membro da sociedade e não um corpo estranho a
ela.
A neutralidade não existe. Toda decisão carrega uma escolha
que é, lato senso, política, valores que se sobrepõem na interpretação
da Constituição e das leis.
A dita objetividade é nada mais do
que uma violência ao direito praticada pelo positivismo que pretendeu
enquadrar a justiça no legalismo. A neutralidade nada mais do que é um
mantra do positivismo para tolher interpretação judicial (evitar análise
da compatibilidade da lei com os princípios)
A perversão do
positivismo foi de estabelecer que o cumprimento estrito da lei é quase
sempre o desrespeito implícito da Constituição. Seu legado: a ideia de
que a regra é mais importante do que o princípio.
Não é ruim que a
sociedade sabe o que pensa o juiz. A surpresa não é conteúdo do ato
decisório –devemos nos preocupar menos com o que os juízes fazem à vista
de todos e mais o que se faz escondido.
O juiz é um cidadão e
como tal tem direito a suas próprias ideias e opiniões e a liberdade de
expressão que deve garantir aos outros também lhe pertence. Não é
desconstruindo a cidadania do juiz que ajudaremos a que ele seja um
garantidor da cidadania alheia.
Inclui na absurda restrição a
regra anacrônica e inconstitucional da proibição de se manifestar sobre
decisões judiciais em andamento ou crítica a decisões alheias (uma
supervalorização indevida da ética sobre a democracia).
Se
pensarmos o quanto as questões estão judicializadas, a proibição assume
contornos de forte censura. Por exemplo, juízes estariam impedidos de se
manifestar por exemplo sobre a questão do subsidiariedade ou
concorrência das competências do CNJ, só porque a questão virou
judicial?
O isolacionismo foi tratado por muito tempo como soberba –e daí, um passo para o excesso de autoridade).
Por
outro lado, a mistura explosiva do tradicional corporativismo
(sentir-se certo, mesmo quando errado) com a supervalorização da
autoridade (nossos mecanismos de proteção) transformou o juiz e o
Judiciário em algo que esteja ao mesmo tempo fora e acima do alcance da
sociedade.
A noção de impenetrável foi por muito tempo
disseminada –até porque o Judiciário era impenetrável até mesmo para
seus próprios integrantes (as sessões secretas de que não podíamos
participar ou conhecer decidiam nossas promoções, por exemplo).
A
ideia de que o Judiciário é algo que a imprensa não consegue conhecer,
não consegue descrever e não consegue interagir, todavia, não nos
protegeu. Não nos protegeu, sobretudo, porque na redemocratização o
Judiciário virou um protagonista da cena política.
A
redemocratização e a promulgação da Constituição, expandindo direitos e
fortalecendo instituições, como o MP, a Defensoria, as Procuradorias,
valorizou sobremaneira o ingresso em juízo (calcula-se que as causas
multiplicaram por dez, com o advento da Constituição cidadã).
O
fim da ditadura, a afirmação da independência judicial e a retomada da
imprensa livre potencializam, ainda, a justiça como um canal mais seguro
de reinvindicações.
E gradativamente, os próprios juízes vão se
livrando das amarras do positivismo e se dando conta do poder que tem
nas mãos, a interpretação da Constituição, a promoção de políticas
públicas, a condução das eleições.
Judiciário passou a ser ator
também na cena política, mas na qualidade de uma variável que foge ao
controle do planejamento e aos arranjos partidários.
Passou a ser, assim, objeto de maior atenção, de cuidado e também de tentativas de tutela.
No
cômputo das reformas de Estado, o Judiciário é fortemente atingido por
elas: a reforma administrativa, que visa diminuir gastos e salários,
reforma da Previdência (que bombardeia aposentadorias integrais e tempo
menor de contribuição) e principalmente a reforma do Judiciário, que
também foi uma “reforma fiscal”, centrada na verticalização e
centralização do poder (o objetivo central da reforma do Judiciário,
lembremos, era o centralizar o Judiciário para aumentar sua
previsibilidade, conforme recomendava documento do Banco Mundial para as
reformas do Judiciário na América Latina. O intuito de verticalização
foi claramente obtido).
Há, portanto, um duplo movimento de atenção e exposição do Judiciário:
a-)
suas crises são amplificada para estimular o sentimento de reforma
(Judiciário é exposto em relação a seus salários, suas vantagens, seus
casos de corrupção).
b-) a maior procura provoca maior exigência e
por consequência, maior crítica; Judiciário passa a ser cobrado pelo
alto custo de manutenção, pela deficiência na gestão e também pelo
elitismo.
Tudo isso ao mesmo tempo agora faz o Judiciário protagonista no palco político.
Não é possível mais manter o Judiciário e os juízes afastados das luzes.
E
esse reencontro é de certa forma dolorido, como abrir os olhos depois
de tanto tempo no escuro: poder no judiciário não se acostumou ao debate
democrático (que inexiste para dentro de suas fronteiras), a corporação
não se acostuma com a discussão pública de suas vantagens (afirmando a
cultura da diferença), os agentes não se acostumam com a exposição e
crítica de suas posturas, na condição de autoridades.
Mas será
preciso entender que não dá para domesticar a imprensa para que respeite
nossas “diferenças” ou que se perpetue a equivocada ideia de que
“decisões judiciais não se discutem”. Não temos o condão de nos
excluirmos das pautas, por desejo próprio. Tampouco é possível esperar
ou exigir que as reportagens compreendam todas as dimensões das questões
que envolvem o Judiciário.
É preciso entender que as regras que regem a imprensa não são as mesmas do Judiciário.
O
“outro lado” é mais um elemento legitimador da reportagem –não funciona
necessariamente como um contraditório prévio. Em geral se estabelece
após a reportagem ser formada.
O timing da mídia é o de sua
publicação, que em geral é predeterminado; não funciona como um processo
que só vem a público quanto está “pronto”.
A linguagem é leiga e simplifica para viabilizar em entendimento de quem não conhece leis.
A
manchete é o que chama a atenção; não necessariamente o aspecto mais
relevante –o apego ao público, que em última instância suporta a mídia,
prevalece sobre os fundamentos. A perversão é que chama a atenção, não o
acerto (ou, como se costuma dizer na deontologia da imprensa, notícia
boa é notícia ruim).
Compreender isso ajuda a afastar muitas teorias da conspiração –embora nem todas.
Quando
a imprensa denuncia um ato de exacerbação do poder não deve ser sempre
recebido como um ataque ao Judiciário que merece resposta –nós também
precisamos aprender a domar o corporativismo, principalmente ao
compreender que a Justiça pode ser feita por nós, mas não nos pertence. E
que o nosso serviço público é, sobretudo, um serviço ao público.
Mas, se é certo que a mídia tem seus princípios, também não se pode esquecer que tem seus interesses.
É
verdade que isso afasta um pouco a versão idílica ou romântica do
jornalista que se cultua, uma espécie de “profissional liberal”, dono de
seu próprio nariz, incansável perseguidor da verdade, inimigo dos
poderes e dos poderosos.
Não é possível falar da grande mídia sem entender que se trata, sobretudo, de grandes empresas.
E
como empresas: a-) têm a dependência do público consumidor e de seus
financiadores (anunciantes); b-) mantem interesses empresariais,
inclusive nas questões políticas e econômicas.
Pelo apego ao
“interesse público” que despertam, temos o hábito de separar a mídia do
rol das grandes empresas –como se estivessem sempre dispostas a defender
o bem comum acima de seus próprio interesses.
Recentes
editoriais do jornal de televisão, por exemplo, tornam isso claríssimo:
extremamente fortes contra o trabalhador na greve de serviço público
(que colocariam a democracia em risco), mas reclamando da perda de
competitividade das empresas pela fiscalização do trabalho escravo. Não é
voz de jornalista, é voz de patrão.
Um exemplo de como
interesses envolvem princípios é a crítica exacerbada que a grande mídia
faz com frequência ao setor público, muito mais ácida e corrosiva do
que faz ao setor privado no qual se insere -ainda que este seja, em
certas situações, como no caso das instituições financeiras, detentor de
tanto ou mais poder real que os políticos.
Observe-se também a
adesão da grande imprensa no discurso ‘anticorrupção’, apenas quando
dirigido aos agentes públicos, mas nunca aos corruptores, que em grande
parte a financiam.
A imprensa tem enfatizado atos que denunciam a
corrupção dos funcionários, mas pouco trata dos movimentos que
questionam a corrupção do sistema financeiro –exemplo típico os
movimentos que se seguiram à primavera árabe como o Acampa de Sol e
Occupy Wall Street.
Os indignados que questionam as mazelas e a
corrupção inerente ao capitalismo são claramente ignorados, mas os
“indignados” que questionam apenas os agentes públicos são incensados.
Reproduzem, na verdade, a mesma lógica dos liberais que criticam o gigantismo do Estado social, mas o estimulam na esfera penal.
Isso
se mostra ainda mais gritante diante da diferença entre a postura
crítica da imprensa em regra com as autoridades públicas e o
endeusamento de delegados ou promotores na cobertura de casos policiais.
3) Mídia como Judiciário
Mas para quem trabalha no direito penal, a maior perversão da mídia se caracteriza quando se afirma como Judiciário.
O
mergulho da mídia no julgamento informal dos casos, especialmente da
esfera criminal, acaba por deixar pouca importância à dinâmica do
processo. Seja porque sua influência no julgamento das lides é manifesta
(notadamente nos casos submetidos ao júri), seja porque, em certos
casos, o julgamento moral se torna incontornável.
Tudo isso
decorre de uma tendência a que estamos nos acostumando com muita
frequência, que privilegia a ‘espetacularização dos julgamentos’.
A
imprensa se aproveita da atração atávica na devassa no íntimo e fomenta
a proximidade dos crimes, estimulando no espectador ou leitor sensações
de que o crime praticamente faz parte de sua vida. Nós nos sentimos
como vítimas, somos levados a sentir e chorar e, sobretudo, clamar por
vingança.
Esse sensacionalismo tem efeitos perversos na opinião
pública, pois estimula o punitivismo e a busca de soluções mais
rigorosas no âmbito penal.
Cria-se uma sensação permanente de
medo e de insegurança que é fomentadora de um pensamento regressivo: a
cultura da impunidade, a frouxidão penal, o domínio da violência e a
passividade do Estado, construindo uma cultura punitiva.
Quanto
mais a inserção da mídia na apuração e nos julgamentos se torna intensa,
maior a dificuldade do juiz de lidar com a enorme expectativa.
Se
isso acontece com frequência aos juízes de primeiro grau, vemos, com o
componente de política partidária que não raro contamina também os
interesses jornalísticos, como
ocorre atualmente com o julgamento do caso Mensalão no STF.
Penso que esse ambiente nos influencia de duas formas:
a-)
juízes acabam por se sentir responsáveis pelo ‘aumento da
criminalidade’ (quando na verdade não o são) e se tornam mais rigorosos;
b-) juízes se sentem pressionados quando decidem de forma ‘contramajoritária’ (aumenta ainda mais nossa impopularidade).
E
a pressão amplificada pela mídia enquanto juízes, nos coloca numa
situação delicada: temos de manter a sensibilidade aberta à sociedade a
qual representamos e ao mesmo tempo independência do julgar (que deve se
manter a par de qualquer pressões, internas, externas ou mesmo da
opinião pública).
Afinal, o juiz é o tutor dos direitos
fundamentais e se estes forem interpretados de acordo com a vontade da
sociedade, simplesmente desaparecerão.
Se não defendermos, quem defenderá?
E, em algum momento, os juízes devem realizar essa difícil empreitada de:
a-) ser o garantidor das liberdades, inclusive a de expressão;
b-)
assumir o seu papel político, interagir com a sociedade do qual faz
parte, no papel de cidadão, aceitando as cobranças acerca da prestação
de seu serviço público;
c-) afirmar sua independência e impedir que ela seja mutilada pelos poderes ou fragilizada pela espetacularização dos processos.
Em
resumo, estar o juiz capacitado para assumir sua função política de
garantidor de direitos, inserir-se na sociedade do qual faz parte,
combinar o exercício da autoridade que a lei lhe compete com a condição
de servidor e ao mesmo tempo afirmar a independência sem submeter-se a
pressão da opinião pública.
Mas quem disse que ser juiz seria uma tarefa fácil?
Indispensável
nesse caminho convencer a sociedade da importância de sua função -o
Judiciário precisa urgentemente reconquistar a legitimidade.
Sempre
aprendemos que as prerrogativas dos juízes são direitos do cidadãos,
mas ainda carecemos de convencer os cidadãos a querer preservá-las…
E aqui reside a última colocação, que se relaciona diretamente com os instrumentos à disposição para essa tarefa: a comunicação.
4) Judiciário como mídia
O
Judiciário enquanto poder e os juízes enquanto cidadãos devem aprender a
estabelecer canais de comunicação que lhes permitam cumprir as tarefas
indicadas, seja informando os destinatários do serviço público (de forma
não oportunista ou sensacionalista), seja cultivando a imagem de
cidadãos, inseridos na vida social (não seres estranhos a ela), seja
afirmando os princípios que norteiam a aplicação do direito.
Como se diz nos movimentos de indignados: se você odeia a mídia, seja a mídia.
As possibilidades abertas pela web e as redes sociais permitem expandir a noção de meio de comunicação.
Por
intermédio das redes sociais, qualquer pessoa pode ser, em si mesma, um
meio de comunicação de massa –pois o que adquire na rede “caráter
viral” (ou seja, se dissemina) tem mais relação com o conteúdo do que
com a origem.
Importância da comunicação direta permite passar a
informação, com mais precisão e com menos filtros –com o correr do
tempo, muitos retransmitem a informação produzida pelos órgãos oficiais.
Penso
que os tribunais não deveriam desperdiçar a oportunidade de dar
divulgação de suas decisões, tanto jurisdicionais como administrativas,
aumentando ao mesmo tempo o espaço da transparência e da qualidade de
informação.
E as redes sociais, como twitter e facebook, devem ser utilizadas para esse fim.
É
óbvio que não vai caber ao emissor o comentário, a análise e as
críticas sobre as decisões e é certo que não nos cabe impedi-las ou
limitá-las.
Mas a produção e disseminação das informações que não sejam objeto de segredo de justiça são altamente recomendáveis.
Desvios ocorrem, mas a perversão não abala o instrumento.
É um equívoco achar que o Judiciário manterá sigilo sobre seus atos e que isso de alguma forma nos será valioso.
Se
for relevante, mais hora, menos hora, a informação virá à tona e quanto
mais escondida, mais distorcida virá; quanto mais for escondida, maior a
chance de que apenas uma parte dela venha à lume.
Mas, penso, que essa comunicação não se restringe aos tribunais; também aos juízes.
É
certo que os juízes não podem antecipar decisões e nem é razoável que
se manifestem sobre processos que tenham em julgamentos. As regras da
suspeição devem ser respeitadas.
Mas os juízes desempenham,
individualmente e cada um a seu modo, um importante papel de humanização
da figura do magistrado quando se expõem e permitem que a sociedade os
conheça.
Alguns gostam de tratar de temas políticos, outros de natureza institucional.
Muitos
discutem assuntos jurídicos, outros relatam aspectos curiosos do
cotidiano jurídico, e quantos de nós não são músicos, poetas, artistas
plásticos ou das letras.
Há quem diga que juízes que se expõe
prejudicam a imagem diante de seus jurisdicionados. Mas trata-se aqui da
imagem idealizada de um juiz recluso e alheio à vida em sociedade, uma
imagem de juiz que muitos quando ingressam na magistratura tentam ser ou
passar, completamente em desacordo com sua própria natureza, tanto mais
ao perfil de jovens profissionais que são.
Essa reclusão é condimento de frustrações e depressão –pois o fato de sermos juízes não nos impõe a condição de reclusos.
Ao
revés, a sociedade carece de conhecer os juízes, de inteirar-se sobre
seus dramas, sobre seus sofrimentos, sobre a dificuldade de exercer suas
tarefas, até para que possa respeitá-los.
Quando mais a sociedade nos conhece, naquilo que somos (e não apenas nas imagens que fazem de nós) mais nos respeita.
É óbvio que temos nossas mazelas e a exposição nos ajuda a entender os nossos próprios equívocos.
Não
devemos ficar refém das imagens ou das perversões que a sociedade
cultua sobre nós; devemos aumentar o grau de informação que a sociedade
tem do Judiciário e de seus juízes, e penso que isso só tende a nos
auxiliar e à própria sociedade.
A humanização da figura do juiz mais ajudará que atrapalhará essa perspectiva que a sociedade tem de nós.
Sem
contar que, cidadãos que somos, não podemos fechar os olhos a essa nova
forma de democracia que, gostemos ou não, está nascendo diante de nós,
por intermédio das redes sociais.
Não sabemos muito bem para onde vai nos levar, mas ignorar esse admirável mundo
novo não vai impedir que ele nasça.
Muito obrigado.
Fonte:http://www.conversaafiada.com.br/pig/2012/08/28/redes-sociais-constroem-a-nova-democracia/