Seis
anos após o sangrento maio de 2006, que registrou 500 assassinatos em
menos de uma semana nos confrontos entre polícia e PCC, São Paulo encara
o retorno da mesma onda de violência, repetindo inclusive o brutal
número de mortes violentas, que na imensa maioria das vezes vitima
pessoas nada relacionadas com os dois lados em guerra.
Para retomar o assunto, o Correio da Cidadania entrevistou duas
pessoas ligadas ao movimento social e popular, profundamente
conhecedoras da realidade das regiões periféricas e da forma cruenta
como o Estado trata o assunto. Débora Silva, líder do movimento Mães de Maio
(referência aos crimes de 2006) e Givanildo Manoel, militante de
direitos humanos e candidato a vereador pelo PSOL que pediu impugnação
da candidatura do coronel Telhada por incitação à violência, oferecem um
olhar contundente sobre o real motivo dessa trágica onda de homicídios:
a corrupção dentro do próprio Estado, que permitiu a ascensão do grupo
criminoso com o qual mantém obscuros laços.
Para eles, o governo estadual prestigia a violência policial de
forma inequívoca, sempre escondendo seus crimes e apresentando provas
apenas contra as vítimas - mesmo que de forma pouco confiável e com a
ajuda de um poder judiciário igualmente conivente com as ilegalidades
cometidas pelo poder público e seus agentes de segurança.
Contra esse estado de coisas, propõem medidas que aumentem o
controle social sobre as polícias, para dar maior transparência a seus
métodos, além de um processo de desmilitarização e humanização de nossas
políticas de segurança pública. No entanto, não acreditam que, nas
atuais circunstâncias, os governos estadual e federal venham a ter este
foco. Para os dois militantes, o governo federal tem apenas reforçado o
que já vem sendo feito pelas forças oficiais paulistas: “oferecer mais
bala pra matar nossos filhos”, como define Débora.
Uma situação de guerra com acobertamento incessante de uma
política de segurança que extermina pobres, negros e periféricos, no fim
das contas servindo a “interesses econômicos revelados e não
revelados”. Como remédios mínimos, Débora e Givanildo propõem a
federalização dos crimes de direitos humanos e milicianos e a denúncia
do governo estadual na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Leia a seguir a entrevista completa.
Correio da Cidadania: A que vocês atribuem a onda de
violência, que marca o ano de 2012 em São Paulo e região metropolitana,
com centenas de mortes?
Débora Silva: Em 9 de maio de 2011, a Universidade
de Harvard, com vários movimentos sociais e de direitos humanos,
apresentou um relatório mostrando que havia possibilidade de novos
ataques. Quando a mídia perguntou ao governo estadual, este negou a
possibilidade, mentirosamente, dizendo que o relatório era inverídico.
Acreditávamos na veracidade do relatório e consideramos a reação e o
discurso dele (Alckmin) algo fascista.
De forma orquestrada, ele e o secretário de segurança disseram que o
PCC não existia. Como não existia, se foi o poder público que o criou, à
base de sua corrupção?
Porque o PCC foi criado de dentro dos presídios
pra fora, não de fora pra dentro.
Se fosse de fora, não iríamos atribuir
os crimes de maio à corrupção de Estado.
E foi através dessa corrupção
que os crimes de maio surgiram, graças a um monstro que o Estado criou e
que contra ele se rebelou um dia.
Givanildo Manoel: Penso que a resposta para essa
pergunta não pode ser buscada no imediatismo do momento. Embora
dramático, precisamos olhar historicamente quais as motivações dessa
violência.
Podemos identificar primeiramente a própria constituição da Polícia
Militar, que se deu no período da ditadura, quando foi montada uma
polícia que tem seu preparo para a guerra. A guerra no caso é contra o
inimigo interno e o inimigo interno é o seu povo! Não podemos
desconsiderar tal contexto para entender o atual momento, já que naquela
época essa estrutura servia aos interesses do capital, servia para
garantir a ordem com aqueles que discordavam do modelo implantado –
esses deveriam ser liquidados ou encarcerados.
Temos que ficar atentos ainda para outro aspecto importante: alguns
fatores fragilizaram a ação violenta da polícia e das Forças Armadas.
Lembremos que a Rota foi fundamental naquele momento, provocava o terror
no fim da década de 70 e começo dos anos 1980 contra os trabalhadores,
principalmente contra a juventude da periferia. Quem não viveu a época
pode encontrar uma boa fonte no livro Rota 66, do jornalista Caco
Barcellos.
Aquele foi um momento em que se constituíram os grupos de extermínio,
e tais grupos foram sendo constituídos por agentes, ex-agentes do
Estado e eventualmente alguém de fora desse círculo. Tais grupos vendiam
segurança para pequenos comerciantes e cumpriam o papel de todo o
sistema de justiça, instituindo sempre a pena máxima para aqueles
"indesejados" ou desafetos dos contratantes de serviço, e também a
juventude, em particular a negra, sempre um alvo a se atacar. Esses
grupos foram fartamente denunciados e existe muito material publicado a
respeito.
Em maior ou menor escala, essas estruturas que foram sendo
constituídas serviam aos interesses econômicos de algum grupo,
entendendo que só com o uso da força seriam garantidos.
Penso que está aí a origem dessa violência recente, porque a
estrutura violenta montada, sem controle popular algum, a serviço do
Estado capitalista, atende aos interesses de um pequeno grupo, que não
tem preocupação com a forma com que a segurança deva ser feita, desde
que seja feita. Uma estrutura que permaneceu intocável com o processo de
redemocratização do Brasil, logo, passível de ser utilizada a qualquer
momento para atender aos interesses econômicos revelados e não
revelados.
A atual onda de violência tem tal característica e traz obscuridade
para todos nós. O que está claro para nós dos movimentos sociais é que
existem interesses revelados e outros não revelados, que começaram a
aparecer nos últimos dias. O que está declarado é o controle social do
povo morador da periferia, em especial a juventude negra, podendo ser
morta ou encarcerada.
Além disso, também se declara que existem regiões de interesse do
capital imobiliário. Para realizá-lo, é necessário expulsar os
moradores, utilizando-se de argumentos ilegais com roupagem legal e
métodos anteriormente não utilizados - como tem sido o caso dos
incêndios, sobre os quais existem fartas denúncias de envolvimento de
agentes do Estado, por ação ou omissão.
E o que não tem sido revelado, apesar de os movimentos virem
denunciando já há algum tempo, é a constituição de milícias (compostas
por agentes e ex-agentes de segurança do Estado). Essas passaram a
disputar a geografia do tráfico, com grupos como o PCC. Há uma matéria
feliz sobre o assunto no jornal O Globo, de 2 de novembro, com o título "
Milícia disputa com traficantes o controle dos caça níqueis". O que
vale a pena pensar é que, para além da estrutura institucional
e cultural da polícia, no último ano, o governador e o secretário de
segurança têm autorizado a polícia a usar da violência
indiscriminadamente.
Por fim, penso que existe mais um elemento a se considerar: uma
polícia mal paga, despreparada, sem controle, com todo esse poder,
conhecendo toda a estrutura de funcionamento do tráfico. A pergunta que
fica é: o que poderíamos esperar?
Correio da Cidadania: Portanto, vocês acreditam nas análises
de setores políticos e ligados aos direitos humanos, de que tudo não
passaria de desentendimentos pontuais entre PCC e polícia, em questões
nas quais estariam associados, e não em contradição?
Givanildo Manoel: Não penso que foi pontual o
desentendimento, foi um racha na possível relação existente e o que
marcou essa ruptura foi a morte de membros do PCC em maio, na zona
leste. Até hoje não foi explicada a ação da ROTA e a que serviu aquela
operação.
As notícias sobre a disputa da geografia foram muito bem tratadas na
matéria do jornal O Globo, como já mencionei anteriormente e com o que
concordo plenamente.
Débora Silva: Não concordo com as versões das
autoridades, pois os ataques e os crimes de maio são uma história ainda
não contada. Atribuíram mentirosamente as mortes ao crime organizado.
Sou mãe de vítima e sei que é mentira. Foi retaliação da polícia e seus
agentes, cujas famílias também foram vitimadas.
O que aconteceu? Os inquéritos foram todos arquivados. Por que foram
arquivados se o governo diz que foi o crime organizado que cometeu
crimes? Se o governo atribui os crimes ao PCC, por que não se faz
investigação?!
Vemos que os crimes de maio de 2006 têm sua continuação agora.
Ninguém foi punido, as autoridades que mataram nossos filhos não foram
punidas. E todo mundo acobertou, governos municipal, estadual e federal.
O federal porque até hoje não enviou uma única condolência. Mas quando
caiu o avião da TAM, fizeram tudo, solidariedade, memorial, tudo. Os
crimes de maio são três ou quatro aviões da TAM.
Agora, vemos a coroação dos crimes de maio. A impunidade está
coroada. Se fossem apurados os crimes, com punição aos matadores dos
nossos filhos, não teríamos os crimes de 2007, 2008, 2009, 2010, 2011 e
2012.
E digo mais, algo ainda mais grave. Se não se apurarem os crimes de
2012, continuaremos na guerra urbana. Exigimos do governo federal que
venha acompanhar o desenrolar dos inquéritos e investigações, que na
verdade não existem. Porque a grande mídia, bandida, só fala dos crimes
contra as autoridades. E é preciso investigar muito a fundo os crimes
dos policiais.
Correio da Cidadania: As notícias sobre disputas entre
milícias e bandidos pelo controle dos caça-níqueis não trazem à tona a
corrupção como um dos grandes geradores de toda esta violência?
Débora Silva: Sim, o que gera essa violência é a
corrupção. De tudo. Não é só de caça-níquel, são biqueiras (pontos de
tráfico) também. A gente sabe disso. Só existe o crime organizado porque
existe algum apoio do Estado. Quando e se o Estado quiser, acaba com
isso. Mas não se combate nem tráfico nem crime matando inocentes. Matar
inocentes só vai generalizar mais violência.
Correio da Cidadania: Como vocês avaliam, mais
especificamente, a postura do governo estadual na questão, notadamente
Geraldo Alckmin e sua Secretaria de Segurança Pública?
Débora Silva: Em minha opinião, eles têm obrigação
de se apresentarem ao público e explicarem à sociedade o tamanho número
de mortes. E claro, dizer que existem bandidos fardados. Isso é
acobertado. Temos cobrado, mas sempre os vemos apoiando esse tipo de
policial. Nunca aparecem provas contra eles. A corregedoria só consegue
provas contra os cidadãos comuns que são assassinados. O judiciário
também nunca vê isto. Só tem prova “contundente” contra o cidadão comum.
Givanildo Manoel: Foi no governo Alckmin que se
instituiu a desastrosa política de segurança pública, que tem sua origem
na doutrina bushiana (George Bush, ex-presidente estadunidense) de
segurança nacional, de guerra preventiva e permanente contra o terror,
que deu base à política de segurança pública da “tolerância zero”.
Hoje, sem saber por onde caminhar e refém da sua própria política, a
única coisa que ele é capaz de fazer é determinar que se use mais
violência, causando ainda mais crimes contra o povo de São Paulo e
região metropolitana.
É necessário ter uma forte posição contra esse governo, levando-o
para a Corte Internacional de Direitos Humanos, responsabilizando-o por
crime contra a humanidade.
Correio da Cidadania: Acreditam que o governo continuará nesta postura radical ou pode mudar um pouco?
Débora Silva: Vai sempre agir desse jeito, porque os crimes de maio, assim como esses, “dão certo”.
Correio da Cidadania: Débora fez, há pouco, referências à
necessidade de acompanhamento mais efetivo do governo federal. Qual deve
ser, de fato, e em situações desse tipo, a atuação do governo federal? E
o que pensam, neste sentido, do anúncio recente e do caráter da ajuda
que a esfera federal deve conceder ao governo de estado?
Débora Silva: O governo federal errou de vir a São
Paulo oferecer, através do nosso dinheiro, dos nossos impostos, mais
bala pra matar nossos filhos. A gente precisa de uma visão que entenda a
segurança pública como algo falido. Não está aí pra proteger o cidadão.
E sim pra oprimir e exterminar. A partir do momento em que uma mãe vê
seu filho, trabalhador empobrecido, morrer na mão da polícia, desses
fascistas, que dizem que estão controlando a ordem pública matando um
filho que recebe uma miséria, só pode se revoltar.
Acho que chegou a hora de os governos estadual e federal fazerem a
lição de casa e pararem de sentir prazer de ver tantas mortes, de ver a
vida sendo banalizada. Depois vem o discurso “ah, morreu era bandido”;
“ah, tinha passagem pela polícia”. Isso é discurso de gente
conservadora, fascista e, em última instância, de ditador.
Aí vem o governo federal e oferece nosso dinheiro pra investir em
segurança pública. Por que ninguém quer as tropas da segurança nacional?
Porque sabemos o que ela faz com as populações pobres, negras e
periféricas.
Givanildo Manoel: O governo federal, se desejasse
ser sério, e não cúmplice da situação, deveria fazer intervenção,
federalizar crimes de direitos humanos e milicianos e passar a fazer uma
investigação muito séria sobre as responsabilidades de comandantes,
secretário e governador nessa situação de guerra contra a população de
São Paulo, que hoje está declarada.
O governo federal errou ao se omitir e erra agora ao estabelecer essa
relação. Penso que tal postura do governo federal mostra que hoje essa é
sua política de segurança também, vide as UPPs no Rio de Janeiro. O
padrão é o mesmo, ataques às populações empobrecidas e acordos com
grupos milicianos, que passam a ter o papel que o tráfico tinha
anteriormente.
Correio da Cidadania: O que todos estes posicionamentos dizem do modelo de segurança e do ordenamento público em vigor?
Débora Silva: É um modelo falido. É preciso
humanizar a política de segurança a partir do momento em que nos
conscientizarmos disso, da necessidade de humanização dos agentes.
Também é preciso desmilitarizar a polícia. Porque hoje não dá, temos a
polícia que mata, a que investiga e o Ministério Público, que enterra.
Givanildo Manoel: É uma política que serve aos
interesses do capital, não aos interesses do povo. Criminalizar e
prender é a tônica de tal política. Trata-se de uma estrutura que, nos
últimos 10 anos, se sedimentou na já existente estrutura de segurança
pública.
Um fato ao qual temos de estar muito atentos é a nossa frágil
estrutura democrática - as instituições que garantem o Estado
Democrático de Direito não se posicionaram nesse momento e estão de
joelhos diante do quadro que vivemos.
Correio da Cidadania: Quanto à estrutura policial, o que mais
considerariam importante destacar quanto à necessidade de mudanças em
sua atual conformação e atuação?
Débora Silva: Pra acabar a impunidade, temos de
separar a polícia científica da Secretaria de Segurança, assim como o
IML também deve ser retirado da alçada desta Secretaria. Encaminhamos
esses pedidos há alguns dias, tentando tirar o IML da Secretaria de
Segurança e deixá-lo na Secretaria de Saúde.
Givanildo Manoel: A estrutura existente responde a
sua própria constituição, uma estrutura autoritária, violenta e que não
permite questionamentos.
Hoje é fundamental a desmilitarização da polícia e o controle popular
com poder deliberativo sobre qualquer constituição de nova estrutura,
além da ampliação do controle popular para outras estruturas de
segurança.
Correio da Cidadania: O que mais fazer, finalmente, para
reverter tal lógica de guerra e encontrar caminhos que efetivamente
diminuam nossos índices de violência?
Débora Silva: A estrutura das forças de segurança
não tem acompanhamento psicológico. Eles são preparados pra oprimir e
exterminar. Conforme está indicado no 3º Plano Nacional de Direitos
Humanos, é preciso desmilitarizar a polícia, monitorá-la muito mais,
permitir aos movimentos e à sociedade civil fazerem um acompanhamento
direto sobre os treinamentos e preparativos policiais.
E não podemos esquecer que é necessária a reforma do judiciário,
porque este poder é uma grande caixa preta, financiada pelo nosso
dinheiro. Vemos que a impunidade pode ser atribuída em grande medida ao
judiciário. Só se sabe investir em tecnologia hoje em dia, não na parte
humana.
No final das contas, a dor das mães de maio é a dor das mães dos
policiais, do trabalhador, do jovem, que são sumariamente assassinados.
Por isso somos solidárias a todas as mães vítimas da mesma violência.
Givanildo Manoel: A única segurança que o povo quer é
a segurança social, com saúde de qualidade, moradia digna, escola de
boa qualidade, política de cultura, lazer. Todas essas políticas
garantem segurança para a população.
Os governos não têm interesse nestes temas e os partidos
tradicionais, que defendem os interesses do capital, falam em todas as
eleições que garantirão tudo isso, mas na prática voltam suas atenções
para garantir a continuidade no poder.
Nesse momento, os movimentos estão apontando os caminhos, muitos
deles indicados em minhas respostas. Outros têm de ser dados
coletivamente, porém, é fundamental que as instituições assumam
imediatamente o seu papel e ajam contra a barbárie que ocorre na região
metropolitana de São Paulo. Se isso não acontecer muito rapidamente, a
população pagará um preço muito grande.
Leia também ‘Em São Paulo tem sido utilizada a linguagem da guerra, carta branca à violência policial’.
Gabriel Brito é jornalista.
Última atualização em Qui, 22 de Novembro de 2012
Seis
anos após o sangrento maio de 2006, que registrou 500 assassinatos em
menos de uma semana nos confrontos entre polícia e PCC, São Paulo encara
o retorno da mesma onda de violência, repetindo inclusive o brutal
número de mortes violentas, que na imensa maioria das vezes vitima
pessoas nada relacionadas com os dois lados em guerra.
Para retomar o assunto, o Correio da Cidadania entrevistou duas
pessoas ligadas ao movimento social e popular, profundamente
conhecedoras da realidade das regiões periféricas e da forma cruenta
como o Estado trata o assunto. Débora Silva, líder do movimento Mães de Maio
(referência aos crimes de 2006) e Givanildo Manoel, militante de
direitos humanos e candidato a vereador pelo PSOL que pediu impugnação
da candidatura do coronel Telhada por incitação à violência, oferecem um
olhar contundente sobre o real motivo dessa trágica onda de homicídios:
a corrupção dentro do próprio Estado, que permitiu a ascensão do grupo
criminoso com o qual mantém obscuros laços.
Para eles, o governo estadual prestigia a violência policial de
forma inequívoca, sempre escondendo seus crimes e apresentando provas
apenas contra as vítimas - mesmo que de forma pouco confiável e com a
ajuda de um poder judiciário igualmente conivente com as ilegalidades
cometidas pelo poder público e seus agentes de segurança.
Contra esse estado de coisas, propõem medidas que aumentem o
controle social sobre as polícias, para dar maior transparência a seus
métodos, além de um processo de desmilitarização e humanização de nossas
políticas de segurança pública. No entanto, não acreditam que, nas
atuais circunstâncias, os governos estadual e federal venham a ter este
foco. Para os dois militantes, o governo federal tem apenas reforçado o
que já vem sendo feito pelas forças oficiais paulistas: “oferecer mais
bala pra matar nossos filhos”, como define Débora.
Uma situação de guerra com acobertamento incessante de uma
política de segurança que extermina pobres, negros e periféricos, no fim
das contas servindo a “interesses econômicos revelados e não
revelados”. Como remédios mínimos, Débora e Givanildo propõem a
federalização dos crimes de direitos humanos e milicianos e a denúncia
do governo estadual na Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Leia a seguir a entrevista completa.
Correio da Cidadania: A que vocês atribuem a onda de
violência, que marca o ano de 2012 em São Paulo e região metropolitana,
com centenas de mortes?
Débora Silva: Em 9 de maio de 2011, a Universidade
de Harvard, com vários movimentos sociais e de direitos humanos,
apresentou um relatório mostrando que havia possibilidade de novos
ataques. Quando a mídia perguntou ao governo estadual, este negou a
possibilidade, mentirosamente, dizendo que o relatório era inverídico.
Acreditávamos na veracidade do relatório e consideramos a reação e o
discurso dele (Alckmin) algo fascista.
De forma orquestrada, ele e o secretário de segurança disseram que o
PCC não existia. Como não existia, se foi o poder público que o criou, à
base de sua corrupção? Porque o PCC foi criado de dentro dos presídios
pra fora, não de fora pra dentro. Se fosse de fora, não iríamos atribuir
os crimes de maio à corrupção de Estado. E foi através dessa corrupção
que os crimes de maio surgiram, graças a um monstro que o Estado criou e
que contra ele se rebelou um dia.
Givanildo Manoel: Penso que a resposta para essa
pergunta não pode ser buscada no imediatismo do momento. Embora
dramático, precisamos olhar historicamente quais as motivações dessa
violência.
Podemos identificar primeiramente a própria constituição da Polícia
Militar, que se deu no período da ditadura, quando foi montada uma
polícia que tem seu preparo para a guerra. A guerra no caso é contra o
inimigo interno e o inimigo interno é o seu povo! Não podemos
desconsiderar tal contexto para entender o atual momento, já que naquela
época essa estrutura servia aos interesses do capital, servia para
garantir a ordem com aqueles que discordavam do modelo implantado –
esses deveriam ser liquidados ou encarcerados.
Temos que ficar atentos ainda para outro aspecto importante: alguns
fatores fragilizaram a ação violenta da polícia e das Forças Armadas.
Lembremos que a Rota foi fundamental naquele momento, provocava o terror
no fim da década de 70 e começo dos anos 1980 contra os trabalhadores,
principalmente contra a juventude da periferia. Quem não viveu a época
pode encontrar uma boa fonte no livro Rota 66, do jornalista Caco
Barcellos.
Aquele foi um momento em que se constituíram os grupos de extermínio,
e tais grupos foram sendo constituídos por agentes, ex-agentes do
Estado e eventualmente alguém de fora desse círculo. Tais grupos vendiam
segurança para pequenos comerciantes e cumpriam o papel de todo o
sistema de justiça, instituindo sempre a pena máxima para aqueles
"indesejados" ou desafetos dos contratantes de serviço, e também a
juventude, em particular a negra, sempre um alvo a se atacar. Esses
grupos foram fartamente denunciados e existe muito material publicado a
respeito.
Em maior ou menor escala, essas estruturas que foram sendo
constituídas serviam aos interesses econômicos de algum grupo,
entendendo que só com o uso da força seriam garantidos.
Penso que está aí a origem dessa violência recente, porque a
estrutura violenta montada, sem controle popular algum, a serviço do
Estado capitalista, atende aos interesses de um pequeno grupo, que não
tem preocupação com a forma com que a segurança deva ser feita, desde
que seja feita. Uma estrutura que permaneceu intocável com o processo de
redemocratização do Brasil, logo, passível de ser utilizada a qualquer
momento para atender aos interesses econômicos revelados e não
revelados.
A atual onda de violência tem tal característica e traz obscuridade
para todos nós. O que está claro para nós dos movimentos sociais é que
existem interesses revelados e outros não revelados, que começaram a
aparecer nos últimos dias. O que está declarado é o controle social do
povo morador da periferia, em especial a juventude negra, podendo ser
morta ou encarcerada.
Além disso, também se declara que existem regiões de interesse do
capital imobiliário. Para realizá-lo, é necessário expulsar os
moradores, utilizando-se de argumentos ilegais com roupagem legal e
métodos anteriormente não utilizados - como tem sido o caso dos
incêndios, sobre os quais existem fartas denúncias de envolvimento de
agentes do Estado, por ação ou omissão.
E o que não tem sido revelado, apesar de os movimentos virem
denunciando já há algum tempo, é a constituição de milícias (compostas
por agentes e ex-agentes de segurança do Estado). Essas passaram a
disputar a geografia do tráfico, com grupos como o PCC. Há uma matéria
feliz sobre o assunto no jornal O Globo, de 2 de novembro, com o título "
Milícia disputa com traficantes o controle dos caça níqueis". O que
vale a pena pensar é que, para além da estrutura institucional
e cultural da polícia, no último ano, o governador e o secretário de
segurança têm autorizado a polícia a usar da violência
indiscriminadamente.
Por fim, penso que existe mais um elemento a se considerar: uma
polícia mal paga, despreparada, sem controle, com todo esse poder,
conhecendo toda a estrutura de funcionamento do tráfico. A pergunta que
fica é: o que poderíamos esperar?
Correio da Cidadania: Portanto, vocês acreditam nas análises
de setores políticos e ligados aos direitos humanos, de que tudo não
passaria de desentendimentos pontuais entre PCC e polícia, em questões
nas quais estariam associados, e não em contradição?
Givanildo Manoel: Não penso que foi pontual o
desentendimento, foi um racha na possível relação existente e o que
marcou essa ruptura foi a morte de membros do PCC em maio, na zona
leste. Até hoje não foi explicada a ação da ROTA e a que serviu aquela
operação.
As notícias sobre a disputa da geografia foram muito bem tratadas na
matéria do jornal O Globo, como já mencionei anteriormente e com o que
concordo plenamente.
Débora Silva: Não concordo com as versões das
autoridades, pois os ataques e os crimes de maio são uma história ainda
não contada. Atribuíram mentirosamente as mortes ao crime organizado.
Sou mãe de vítima e sei que é mentira. Foi retaliação da polícia e seus
agentes, cujas famílias também foram vitimadas.
O que aconteceu? Os inquéritos foram todos arquivados. Por que foram
arquivados se o governo diz que foi o crime organizado que cometeu
crimes? Se o governo atribui os crimes ao PCC, por que não se faz
investigação?!
Vemos que os crimes de maio de 2006 têm sua continuação agora.
Ninguém foi punido, as autoridades que mataram nossos filhos não foram
punidas. E todo mundo acobertou, governos municipal, estadual e federal.
O federal porque até hoje não enviou uma única condolência. Mas quando
caiu o avião da TAM, fizeram tudo, solidariedade, memorial, tudo. Os
crimes de maio são três ou quatro aviões da TAM.
Agora, vemos a coroação dos crimes de maio. A impunidade está
coroada. Se fossem apurados os crimes, com punição aos matadores dos
nossos filhos, não teríamos os crimes de 2007, 2008, 2009, 2010, 2011 e
2012.
E digo mais, algo ainda mais grave. Se não se apurarem os crimes de
2012, continuaremos na guerra urbana. Exigimos do governo federal que
venha acompanhar o desenrolar dos inquéritos e investigações, que na
verdade não existem. Porque a grande mídia, bandida, só fala dos crimes
contra as autoridades. E é preciso investigar muito a fundo os crimes
dos policiais.
Correio da Cidadania: As notícias sobre disputas entre
milícias e bandidos pelo controle dos caça-níqueis não trazem à tona a
corrupção como um dos grandes geradores de toda esta violência?
Débora Silva: Sim, o que gera essa violência é a
corrupção. De tudo. Não é só de caça-níquel, são biqueiras (pontos de
tráfico) também. A gente sabe disso. Só existe o crime organizado porque
existe algum apoio do Estado. Quando e se o Estado quiser, acaba com
isso. Mas não se combate nem tráfico nem crime matando inocentes. Matar
inocentes só vai generalizar mais violência.
Correio da Cidadania: Como vocês avaliam, mais
especificamente, a postura do governo estadual na questão, notadamente
Geraldo Alckmin e sua Secretaria de Segurança Pública?
Débora Silva: Em minha opinião, eles têm obrigação
de se apresentarem ao público e explicarem à sociedade o tamanho número
de mortes. E claro, dizer que existem bandidos fardados. Isso é
acobertado. Temos cobrado, mas sempre os vemos apoiando esse tipo de
policial. Nunca aparecem provas contra eles. A corregedoria só consegue
provas contra os cidadãos comuns que são assassinados. O judiciário
também nunca vê isto. Só tem prova “contundente” contra o cidadão comum.
Givanildo Manoel: Foi no governo Alckmin que se
instituiu a desastrosa política de segurança pública, que tem sua origem
na doutrina bushiana (George Bush, ex-presidente estadunidense) de
segurança nacional, de guerra preventiva e permanente contra o terror,
que deu base à política de segurança pública da “tolerância zero”.
Hoje, sem saber por onde caminhar e refém da sua própria política, a
única coisa que ele é capaz de fazer é determinar que se use mais
violência, causando ainda mais crimes contra o povo de São Paulo e
região metropolitana.
É necessário ter uma forte posição contra esse governo, levando-o
para a Corte Internacional de Direitos Humanos, responsabilizando-o por
crime contra a humanidade.
Correio da Cidadania: Acreditam que o governo continuará nesta postura radical ou pode mudar um pouco?
Débora Silva: Vai sempre agir desse jeito, porque os crimes de maio, assim como esses, “dão certo”.
Correio da Cidadania: Débora fez, há pouco, referências à
necessidade de acompanhamento mais efetivo do governo federal. Qual deve
ser, de fato, e em situações desse tipo, a atuação do governo federal? E
o que pensam, neste sentido, do anúncio recente e do caráter da ajuda
que a esfera federal deve conceder ao governo de estado?
Débora Silva: O governo federal errou de vir a São
Paulo oferecer, através do nosso dinheiro, dos nossos impostos, mais
bala pra matar nossos filhos. A gente precisa de uma visão que entenda a
segurança pública como algo falido. Não está aí pra proteger o cidadão.
E sim pra oprimir e exterminar. A partir do momento em que uma mãe vê
seu filho, trabalhador empobrecido, morrer na mão da polícia, desses
fascistas, que dizem que estão controlando a ordem pública matando um
filho que recebe uma miséria, só pode se revoltar.
Acho que chegou a hora de os governos estadual e federal fazerem a
lição de casa e pararem de sentir prazer de ver tantas mortes, de ver a
vida sendo banalizada. Depois vem o discurso “ah, morreu era bandido”;
“ah, tinha passagem pela polícia”. Isso é discurso de gente
conservadora, fascista e, em última instância, de ditador.
Aí vem o governo federal e oferece nosso dinheiro pra investir em
segurança pública. Por que ninguém quer as tropas da segurança nacional?
Porque sabemos o que ela faz com as populações pobres, negras e
periféricas.
Givanildo Manoel: O governo federal, se desejasse
ser sério, e não cúmplice da situação, deveria fazer intervenção,
federalizar crimes de direitos humanos e milicianos e passar a fazer uma
investigação muito séria sobre as responsabilidades de comandantes,
secretário e governador nessa situação de guerra contra a população de
São Paulo, que hoje está declarada.
O governo federal errou ao se omitir e erra agora ao estabelecer essa
relação. Penso que tal postura do governo federal mostra que hoje essa é
sua política de segurança também, vide as UPPs no Rio de Janeiro. O
padrão é o mesmo, ataques às populações empobrecidas e acordos com
grupos milicianos, que passam a ter o papel que o tráfico tinha
anteriormente.
Correio da Cidadania: O que todos estes posicionamentos dizem do modelo de segurança e do ordenamento público em vigor?
Débora Silva: É um modelo falido. É preciso
humanizar a política de segurança a partir do momento em que nos
conscientizarmos disso, da necessidade de humanização dos agentes.
Também é preciso desmilitarizar a polícia. Porque hoje não dá, temos a
polícia que mata, a que investiga e o Ministério Público, que enterra.
Givanildo Manoel: É uma política que serve aos
interesses do capital, não aos interesses do povo. Criminalizar e
prender é a tônica de tal política. Trata-se de uma estrutura que, nos
últimos 10 anos, se sedimentou na já existente estrutura de segurança
pública.
Um fato ao qual temos de estar muito atentos é a nossa frágil
estrutura democrática - as instituições que garantem o Estado
Democrático de Direito não se posicionaram nesse momento e estão de
joelhos diante do quadro que vivemos.
Correio da Cidadania: Quanto à estrutura policial, o que mais
considerariam importante destacar quanto à necessidade de mudanças em
sua atual conformação e atuação?
Débora Silva: Pra acabar a impunidade, temos de
separar a polícia científica da Secretaria de Segurança, assim como o
IML também deve ser retirado da alçada desta Secretaria. Encaminhamos
esses pedidos há alguns dias, tentando tirar o IML da Secretaria de
Segurança e deixá-lo na Secretaria de Saúde.
Givanildo Manoel: A estrutura existente responde a
sua própria constituição, uma estrutura autoritária, violenta e que não
permite questionamentos.
Hoje é fundamental a desmilitarização da polícia e o controle popular
com poder deliberativo sobre qualquer constituição de nova estrutura,
além da ampliação do controle popular para outras estruturas de
segurança.
Correio da Cidadania: O que mais fazer, finalmente, para
reverter tal lógica de guerra e encontrar caminhos que efetivamente
diminuam nossos índices de violência?
Débora Silva: A estrutura das forças de segurança
não tem acompanhamento psicológico. Eles são preparados pra oprimir e
exterminar. Conforme está indicado no 3º Plano Nacional de Direitos
Humanos, é preciso desmilitarizar a polícia, monitorá-la muito mais,
permitir aos movimentos e à sociedade civil fazerem um acompanhamento
direto sobre os treinamentos e preparativos policiais.
E não podemos esquecer que é necessária a reforma do judiciário,
porque este poder é uma grande caixa preta, financiada pelo nosso
dinheiro. Vemos que a impunidade pode ser atribuída em grande medida ao
judiciário. Só se sabe investir em tecnologia hoje em dia, não na parte
humana.
No final das contas, a dor das mães de maio é a dor das mães dos
policiais, do trabalhador, do jovem, que são sumariamente assassinados.
Por isso somos solidárias a todas as mães vítimas da mesma violência.
Givanildo Manoel: A única segurança que o povo quer é
a segurança social, com saúde de qualidade, moradia digna, escola de
boa qualidade, política de cultura, lazer. Todas essas políticas
garantem segurança para a população.
Os governos não têm interesse nestes temas e os partidos
tradicionais, que defendem os interesses do capital, falam em todas as
eleições que garantirão tudo isso, mas na prática voltam suas atenções
para garantir a continuidade no poder.
Nesse momento, os movimentos estão apontando os caminhos, muitos
deles indicados em minhas respostas. Outros têm de ser dados
coletivamente, porém, é fundamental que as instituições assumam
imediatamente o seu papel e ajam contra a barbárie que ocorre na região
metropolitana de São Paulo. Se isso não acontecer muito rapidamente, a
população pagará um preço muito grande.
Gabriel Brito é jornalista. Última atualização em Qui, 22 de Novembro de 2012.
FONTE: http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=7829:manchete141112&catid=34:manchete
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