Por Luciano Martins Costa em 11/02/2013 na edição 732.Comentário para o programa radiofônico do OI, 12/2/2013.
As edições dos jornais da segunda-feira (11/2) de carnaval são o
retrato congelado da nova realidade da mídia: nenhum lampejo de
criatividade, nenhum brilho, nenhuma tentativa de diferenciar a
cobertura.
A descrição dos desfiles é fria, padronizada como uma
planilha de jurado, as páginas repetem os registros da sucessão de
carros alegóricos e explicações sobre enredos de desfiles. As imagens de
mulheres seminuas poderiam ter sido feitas cinco anos atrás. Eventuais
tentativas de reproduzir o humor da festa soam deslocadas nas páginas
estáticas.
Como rescaldo da tragédia que ceifou a vida de 239 jovens em Santa
Maria, no Rio Grande do Sul, no dia 27 de janeiro, algumas reportagens
citam medidas de segurança tomadas nos grandes bailes do Rio e São
Paulo. Ainda assim, ganha espaço a falta de planejamento dos destiles de
blocos no Rio, com excesso de público e muita confusão.
No mais, os batalhões de repórteres e colunistas destacados para cobrir
os eventos mais badalados se concentram em registrar os sorrisos,
acenos e eventuais bocejos de celebridades estrangeiras convidadas sob
patrocínio das fábricas de cerveja. Nada muito diferente das crônicas
das cortes europeias do século 18.
Em meio à festa, porém, uma página inteira da Folha de S. Paulo
chama atenção: traz uma longa entrevista com o presidente do
tradicional bloco baiano Olodum, João Jorge Rodrigues, no qual ele
denuncia a desigualdade na distribuição dos recursos para o carnaval de
Salvador e a tentativa de deslocar os artistas negros para uma área
restrita chamada de “afródromo”. O desabafo do dirigente desnuda o
segregacionismo que impera na Bahia e que, mal ou bem, era dissimulado
durante o carnaval.
Apenas pelo fato de se deslocar da cobertura festiva e alienada e abrir
espaço para a realidade em meio à fantasia carnavalesca, a entrevista
merece um olhar cuidadoso. Estão ali expostas, de maneira clara, as
mazelas da política cultural, que repete na principal festa oficial do
país o sistema excludente que ainda persiste na sociedade brasileira.
Terra de uma artista só
A frase mais emblemática do entrevistado representa bem o que o turista
e o leitor pode não perceber em meio à empolgação da cobertura
jornalística: “A Bahia se tornou a terra de uma artista só – Ivete
Sangalo”.
Com amplo espaço de exposição na principal rede de televisão do país, a
cantora compete apenas com outra artista branca, Claudia Leitte, com
uma imitando a outra continuamente, em jogadas calculadas por assessores
de marketing, e ocupando toda a mídia dedicada ao entretenimento. Os
blocos de bairros e os grupos tradicionais que reproduzem o que restou
da cultura africana ficam longe dos holofotes.
Neste ano, deveria ter sido inaugurado um espaço destinado
exclusivamente aos blocos afro, mas acabou suspenso por causa da
polêmica que poderia causar. Para o entrevistado da Folha, em
vez de dar mais visibilidade aos blocos mais autênticos, o novo circuito
acabaria funcionando como um gueto para os negros na Cidade Baixa,
deixando livres as áreas mais amplas do bairro de Campo Grande e da
Barra, onde costumam se aglomerar as multidões de turistas que passam a
festa em Salvador.
“[O carnaval] é discriminatório, segregado, com mecanismos que
reproduzem o capitalismo brasileiro: a grande exclusão da maioria em
benefício de uma minoria”, diz o dirigente do Olodum. Para ele, Ivete
Sangalo é uma “galinha dos ovos de ouro” que atrai os grandes
patrocinadores porque tem mais visibilidade, o que prejudica os artistas
emergentes.
No mês passado, a cantora já esteve envolvida em polêmica, ao receber
um cachê de R$ 650 mil, pagos pelo governo do Ceará, para cantar na
festa de inauguração de um hospital na cidade de Sobral, berço político
do governador Cid Gomes e seu irmão Ciro. João Jorge Rodrigues, que é
mestre em Direito Público, entende que a influência de Ivete Sangalo e
de sua principal concorrente, Claudia Leitte, tem caráter étnico: “A
força delas é que são cantoras brancas”, afirma.
As declarações do presidente do grupo Olodum podem não representar mais
do que uma visão ideologicamente restrita da situação do carnaval na
Bahia, mas a inserção da entrevista em meio à cobertura festiva e
alienada deste ano desloca a Folha da mesmice da imprensa nacional.
Uma frase do entrevistado precisa ser destacada: “Você passa 359 dias
no ano praticando toda forma de violência institucional, de racismo
institucional, e quer que em seis dias o carnaval seja democrático?”,
pergunta ele.
A realidade rasga a fantasia.
Esta Matéria foi publicada originalmente em:
Nenhum comentário:
Postar um comentário