O titular do blog mais uma vez pede
licença aos leitores para publicar um texto maior do que o usual por
aqui. Trata-se do relato (um desabafo, seria a palavra mais correta) de
uma médica, após seu primeiro plantão no Socorrão I, em São Luís.
Na
narrativa, ela conta tudo o que passou (ou pelo menos o que lembrou que
passou), durante seis horas na unidade, no domingo (4).
É estarrecedor saber que numa capital ainda se está tão distante de um tratamento digno de saúde aos cidadãos.
Fiquem com o relato.
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São
12:55. Estou apreensiva. É meu primeiro plantão no Socorrão I. São só
6h, digo para mim mesma. Só 6h. É uma espécie de mantra que repito a
cada instante como se isso fizesse o tempo passar mais rápido e tornar
seis horas menos do que parece ser.
Na entrada encontro um colega de
outro hospital; ele me ensina um caminho por dentro da parte
administrativa para chegar ao centro cirúrgico. Fico aliviada, não vou
ter que passar pelos corredores abarrotados de gente. O que os olhos não
vêem…
Subo
alguns lances de escada que vão dar exatamente nos corredores que tanto
quero evitar. E lá me deparo com um paciente deitado em uma maca
encostada na parede onde há um papel escrito com letras maiúsculas MACA
12. Olho para o lado e existe uma fileira delas; macas que viraram
leitos fixos. Mas não há gritos, nem choro, nem reclamações. Todos estão
resignados com a situação. Eu não.
Enfim
chego ao meu setor, o centro cirúrgico(CC). Uma amiga me recebe e me
leva até o repouso médico onde, enquanto troco de roupa, ouço o relato
detalhado da atual situação. Ela está lá desde as 7h. Só uma cirurgia
até agora; uma neuro, grave. Todas as outras 04 salas estão ocupadas com
pacientes graves que foram operados na noite anterior. Todos entubados,
respirando por aparelhos, pacientes de UTI, mas não tem vaga.
Lá
fora, um jovem com apendicite aguda espera para ser operado. Faz-se
então uma seleção e o paciente menos grave é retirado da sala de
cirurgia e levado para o que seria a sala de recuperação pós anestésica
(SRPA). Hoje é um misto de SRPA e enfermaria pois, como não há leitos no
hospital, os pacientes ficam por lá até receberem alta ou morrerem. E a
SRPA, que segundo o regulamento da ANVISA deveria ser uma área de
acesso restrito com uso de roupas próprias, gorro e máscara, é aberta ao
público no horário de visitas às enfermarias.
A
sala cirúrgica desocupada é rapidamente arrumada para a apendicectomia.
O paciente é colocado na mesa mas ainda não será agora que vamos tratar
seu problema. Na hora da anestesia uma colega entra na sala e diz: “Não
faz! Tem que tirar da sala porque tá subindo uma paciente grave! Parece
que tá rebaixada, vai precisar entubar!” Respiro. OK. Mas não temos
como retirar o paciente da sala porque a única maca que tinha foi levada
às pressas para trazer a paciente grave.
E o paciente da apendicite,
apesar de ter entrado andando, agora mal consegue sentar porque está
sedado. É preciso reverter o efeito do sedativo e ele é levado de
cadeira de rodas para um leito improvisado na SRPA/enfermaria.
A
paciente chega junto com um dos cirurgiões que está fazendo massagem
cardíaca porque ela está sem pulso. Ela é prontamente entubada,
monitorizada e ressuscitada mas seu estado é grave. Ela foi operada há
dois dias. Parece-me que tinha um ferimento por arma branca na perna.
Foi encaminhada para a UTI do Hospital Universitário (Dutra) após a
cirurgia mas 48h depois ainda não haviam feito sua transferência e ela
estava entre a vida e a morte.
Precisa de infusão contínua de drogas
vasoativas para manter a pressão em níveis mínimos necessários à vida
mas sou avisada de que temos bombas de infusão mas não temos equipos
para as mesmas. OK. Não tem problema. Vamos colocar no soro mesmo. A
paciente se mantém grave. Alguém grita: “Entrou um esfaqueado!” e outro
responde:”Mas como? Não tem sala para operar!”
Corro
para ver o paciente. Ele tem um curatico no peito à esquerda e
aparentemente não respira. Pego no seu pescoço e punho, não tem pulso.
Tiro o curativo e vejo um corte de mais ou menos 3cm bem em cima do
coração. “Chama o cirurgião! Rápido! Oxigênio! Material de entubação!
Monitor! Rápido!” O paciente está tamponado.
A facada foi no coração e o
sangue que “vazou” impede o coração de bater e o pulmão de respirar.
Não tem sala. Tudo é improvisado ali mesmo. No corredor. Tudo muito
rápido. Ninguém está ali para brincadeiras. Em segundos o paciente é
entubado, anestesiado e seu tórax é aberto expondo o coração que tem
duas lesões e já voltou a bater.
O
sangue jorra do seu peito e tudo se tinge de vermelho vivo. Ele já está
sendo transfundido. Me impressiona o fato de que em meio ao caos, tudo
funcione perfeitamente. Muita gente está ajudando. São 5 médicos, 2
enfermeiras, várias técnicas de enfermagem, maqueiros e até o pessoal da
limpeza. Tivemos que tirar o monitor de um dos pacientes operados à
noite que estava na sala próxima e trocá-lo por um incompleto porque não
havia mais nenhum.
Não tem foco nem aspirador, mas ninguém reclama.
Estão todos empenhados em fazer o possível para salvá-lo. O sangramento
diminuiu consideravelmente mas seu ferimento foi gravíssimo. Ele perdeu
muito sangue. Estou ventilando o paciente à mão com um ambu e um
cilindro de oxigênio porque estamos no corredor e não temos respiradores
disponíveis. Meu braço dói mas não posso parar, o coração está sendo
suturado.
Me sinto em um filme de
guerra. Na verdade, em um hospital de campanha, em plena guerra. Só que
não. Não estamos em guerra. Não existe nenhuma justificativa para essa
situação. A população de São Luís já chegou a 1 milhão de habitantes mas
ninguém, nenhum dos nossos governantes, se importou em aumentar o
número de hospitais públicos. São os mesmos hospitais de 10 anos atrás. A
única coisa que aumentou em todos foi o número de macas. São dezenas
delas espalhadas por todos os corredores e salas. Todas lotadas, o tempo
todo.
Conseguiram um leito com
respirador na SRPA e a paciente que havia parado há pouco e continuava
bem ruim foi levada para lá enquanto esperava sua transferência para o
Dutra. A sala é rapidamente preparada, desta vez para receber o
“esfaqueado” que ainda tem o tórax aberto e o coração exposto. Na sala,
enquanto o tórax é fechado ele para e é ressuscitado mais duas vezes. A
cirurgia termina e seu estado é crítico. Está fazendo arritmia cardíaca.
Vai ficar na sala porque não tem vaga na UTI. Mas é bem provável que
ele não resista.
Um paciente é
deixado na porta do centro cirúrgico. Ele está inconsciente e respirando
muito mal. Ninguém sabe dizer do que se trata. NÃO TEM SALA. Não vejo
nenhum ferimento aparente e ele usa fralda, o que pode significar que já
está há algum tempo no hospital. Preciso de oxigênio, monitor, material
de entubação, sala. Ausculto seu pulmão, está em edema agudo. Estamos
no corredor. Ouço alguém falar “Por que trouxeram para cá? Não é
cirúrgico! Não tem sala!”. Algumas pessoas não se importam. Já se
acostumaram com isso. Eu não. É meu primeiro dia e eu me sinto na
guerra. Entro na primeira sala que vejo.
O paciente que está na mesa é
um jovem que sofreu um acidente e fez uma neurocirurgia pela manhã. Está
grave mas estável. Não tem vaga na UTI p ele que respira por aparelho e
está sedado. Coloco o outro paciente no canto da sala e enquanto não
arranjam um monitor, divido o do jovem acidentado com ele. Começo a
tratar seu edema de pulmão na esperança de que não seja preciso
entubá-lo porque ainda não temos respirador para ele. Mas ele não
melhora.
A essa altura, a equipe do
SAMU já chegou para transportar a paciente até a UTI do Dutra mas já não
há mais esperanças. Ela não resiste e morre ali mesmo. Tinha 35 anos.
Seu
leito, após ser desocupado, é preparado para receber o paciente
dispnéico. Acabo de descobrir que ele tem um tumor cerebral que está
causando hipertensão intracraniana. Precisa ser operado mas não tem a
vávula necessária para a cirurgia. Nem sala. Ele é entubado ali mesmo,
ao lado do paciente da neuro. Uma colega comenta, com um riso nervoso,
que em 20 anos de medicina nunca tinha visto dois pacientes ocuparem a
mesma sala de cirurgia. Eu entendo. É porque ela nunca esteve na guerra.
Nem eu.
Na outra sala, o paciente da
facada acaba de fazer mais uma parada cardíaca. Dessa vez, sem volta.
Acho que tem 40 anos. Os outros pacientes resistem bravamente. São 4.
Todos precisam de UTI. Três deles fizeram neurocirurgia, um está com
tétano. Todos em respiradores, sem ter para onde ir.
Lá
fora, além do “rapaz da apendicite”, um eviscerado espera uma sala para
ser operado. Meu mantra virou fumaça. Em menos de 6h muita coisa
aconteceu. Minha cabeça está a mil. Penso tanto que não consigo nem
falar.
Penso nos políticos que governam nossa cidade e uma revolta sobe
das minhas entranhas e fica entalada na garganta. Eles deviam estar
aqui. Eles deviam ver isso. Mas eles não se importam. Simples assim. Nunca nenhum deles se importou.
Só se interessam por supostas obras e
melhorias quando é para desviar o dinheiro para encher seus bolsos. Me
disseram que foram comprados vários aparelhos e monitores de última
geração mas que, por algum motivo burocrático, não foram entregues.
Ninguém se importa.
Precisamos de mais leitos(não macas!), mais UTIs,
mais dignidade para a população. São Luís não tem hospitais públicos.
Tem depósitos de doentes. Eles são jogados lá, feito lixo e nenhum
desses bandidos de colarinho branco se importa com isso.
No
meio de todo esse descaso, porém, ainda florescem espíritos nobres.
Nessas 6h que ali passei, pude ver o empenho e a dedicação de
profissionais que não medem esforços para ajudar o próximo. Técnicos,
enfermeiras, médicos, maqueiros, funcionários. Bravos soldados no campo
de batalha, lutando uma guerra que nunca tem fim.
São
18:50, está terminando meu turno. Ainda estou atordoada. Preocupo-me
com o paciente do edema de pulmão. Será que vão cuidar dele? Mas ele
está estável. Tento me acalmar. O colega chega às 19h para o turno da
noite. Faço um resumo da situação e desejo-lhe um bom plantão. Na porta
do CC algumas pessoas conversam com uma técnica de enfermagem: _A
barriga dele tá aberta! Ele não vai aguentar! Vai morrer! Tem que
operar!
_ Estamos arrumando sala para ele, senhora.
Acho
que estão falando do eviscerado. Meu coração se aperta. Peço para
agilizarem e vejo o maqueiro sair com uma maca. Na antessala do CC vejo
um paciente sentado em cadeira com um curativo no abdômen que ele segura
com as duas mãos enquanto geme baixinho. Será que é ele?, penso. Mas
está sentado! Nesse estado! Não pode ser… Não tem maca, lembrei. Faço
uma oração silenciosa para que tudo fique bem com ele.
Vou
para casa com meu tênis sujo de sangue e meus ombros caídos com o peso
da luta. Não sou a mesma que entrou seis horas antes. Ninguém é, depois
de voltar de uma guerra.
Link desta matéria: http://gilbertoleda.com.br/2013/08/06/medica-relata-cenario-de-filme-de-guerra-apos-plantao-no-socorrao-i/
Comentário: Tomei a liberdade de copiar na integra este relato do Blog do jornalista Gilberto Leda, pois nos últimos dias venho publicando voluntariamente uma série de notícias em apoio ao Programa Mais Médico do Governo Federal, programa onde a classe médica em geral, vem se opondo flagrantemente contra, sem se incomodar que este projeto visa única e exclusivamente atender aos mais humildes nestes rincões do Brasil.
Confesso ter me emocionado com o relato desta médica plantonista "Quiçá doutora tivéssemos mais médic@s com a sua consciência critica, com o seu humanismo latente".
Doutora na sua anonimidade receba meus sinceros votos de parabéns e rezarei a Deus para que você tenha força e saúde, para continuar sendo esta profissional humana que conheci em seu relato.
Francisco Barros.
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