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Escrito pela jornalista Daniela
Pinheiro, conhecida pela pena afiada, o texto revela os "mandos e
desmandos de Sérgio Cabral, o governador mais impopular do País"; na
entrevista, ele falou até dos voos de helicóptero do cachorro
Juquinha. “E o Juquinha, pelo amor de Deus, é um cachorrinho desse
tamanhinho, e é do meu filho”, disse ele. “Sempre foi voo de família,
meus filhos junto. Nunca foi só babá com cachorro. É segurança da minha
família".
247 - Quer saber como Sérgio Cabral se transformou no
governador mais impopular do País. A resposta está no perfil escrito
pela jornalista Daniela Pinheiro.
Leia abaixo:
Na boca do povo antes e depois dos protestos, os mandos e desmandos de Sérgio Cabral, o governador mais impopular do país.
por DANIELA PINHEIRO.
O visor digital indicou a chegada ao térreo, mas a porta
do elevador permaneceu fechada. Seis pessoas se entreolharam. “É
hidráulico?”, indagou o governador do Rio de Janeiro, Sérgio de Oliveira
Cabral Santos Filho, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro.
“Se for, é devagar mesmo.” O ascensorista apertava os botões da
emergência e dos outros andares. Usou insistência e força. Debalde. Como
era a autoridade máxima presente, Cabral governou outra vez: “Tenta o
quatro de novo e vê se sobe.” Nada aconteceu.
O vice-governador Luiz
Fernando Pezão, que tem 1,90 metro de altura e muito mais de 100 quilos,
enfiou os dedos de sua assombrosa mão direita no vão da porta. “Não
força!”, disse Cabral. “Tô tentando abrir, porra”, objetou o
outro. Ao seu lado, o presidente do Tribunal de Contas do Estado, Jonas
Lopes de Carvalho Júnior, enxugou uma mina de suor que lhe banhava a
raiz dos cabelos. “Eu tenho claustrofobia”, balbuciou bem baixinho,
quase inaudível. A caixa de metal continuava imóvel como um enfezado black bloc da avenida Delfim Moreira.
Terminava uma manhã do final de setembro e o grupo de
presos acabara de participar da abertura do seminário “Para a melhoria
da governança pública”, organizado pelo Tribunal de Contas da União, em
um auditório no Centro do Rio. Por meia hora, Cabral foi incensado pelos
palestrantes. Disseram que sua gestão era exemplo de retidão fiscal,
que era o único a submeter editais de licitação previamente ao Tribunal e
que sua política de segurança pública servia de lição para o país.
De sua parte, o governador não se poupou elogios. À
plateia, disse ter implantado na polícia bonificações por meritocracia,
mencionou pagar a melhor hora-aula para professores esta-duais do Brasil
e observou que, sob sua batuta, a economia do Rio crescera o dobro da
nacional. Ressaltou haver 21 bilhões de dólares em investimentos no
estado e garantiu que entregaria em três anos “mais metrô do que foi
feito em vinte”. Em tom solene, pregou que o tripé
legalidade–moralidade–transparência era a combinação de sucesso na
administração pública.
Se um carioca recém-chegado de vinte anos no Ártico
entrasse no auditório, jamais imaginaria ser Cabral o mandatário mais
hostilizado e pior avaliado do país. Desde os protestos de junho, a
aprovação a seu governo desabou de 45% para parcos 12%, segundo medição
do Ibope. É um percentual inalcançado em décadas. O recorde ainda é de
Fernando Collor de Mello, que tinha 9% de aprovação quando sofreu o impeachment.
Contra Cabral, houve passeatas, depredação, tentativa de invasão de
prédios públicos, saques de lojas, carros incendiados, ataques à polícia
e um vagalhão de apupos que chegou até a avenida Paulista. Por quase
cinquenta dias, manifestantes acamparam ao lado de seu apartamento no
Leblon para pressionar por uma renúncia.
Vizinhos se agitaram, exigindo
sua mudança do bairro. Correligionários de longa data evitaram
defendê-lo em público, caso do prefeito do Rio, Eduardo Paes. Em
solenidades, Cabral passou a ser vaiado com entusiasmo pela multidão.
Reeleito há menos de três anos em primeiro turno com 66% dos votos, a
grande estrela do PMDB se viu impedido de sair às ruas. Parecia um
calcinado corpo celeste caindo num buraco negro.
"É hidráulico ou não é?”, voltou a inquirir o governador.
Vexada, a desembargadora Leila Mariano, presidente do Tribunal de
Justiça do Rio, explicou que a engrenagem era velha e nunca fora
trocada. “Eu já falei para a presidenta Dilma e ela vai ser uma das
quatro testemunhas do processo que vou abrir contra o Cabral por
insalubridade”, disse Pezão, provocando uma gargalhada desanuviadora – à
exceção do magistrado Carvalho, que continuava mudo e suava em bicas.
A
porta se entreabriu. Parte do cocuruto de um bombeiro surgiu numa nesga
sob os pés dos enclausurados. “Ninguém saia do carro, por favor!”, ele
gritou, incitando mais risos. “Só se for voando”, disse Cabral,
esticando o pescoço como um filhote de pássaro querendo sair do ovo.
Depois de uma eternidade – três minutos, ao todo –, viu-se a luz do sol.
“Só faltava eu ficar preso, né?”, disse o governador ao receber a
lufada de ar quente vinda da garagem.
Era quase hora do almoço e ele estava atrasado para duas
audiências no Palácio Guanabara. Acomodou-se no banco de trás do carro
blindado, reclamou do calor e passou a relativizar as críticas contra
si. “Ao contrário do que você diz, eu posso e estou saindo nas ruas”,
falou, deslizando a mão pela gravata azul-cobalto, como se acariciasse o
rabo de um gato. “Ontem mesmo fui a Seropédica, Vassouras, Mendes e fui
muito bem recebido. Ando por aí direto e sou sempre bem acolhido.”
Mencionei que, na antevéspera, um coro de 85 mil pessoas o
havia xingado por um longuíssimo minuto durante uma apresentação no
Rock in Rio. Mais uma vez, ele contemporizou. “Ah, isso foi incitado por
um cantor, um cara que faz campanha contra mim desde 1997”, disse,
referindo-se a Tico Santa Cruz, vocalista da banda Detonautas, que puxou
a multidão. “Isso é o Rio de Janeiro. Depende do lugar, do perfil das
pessoas. Em 2010, eu me reelegi com faixas de ‘Fora Cabral’. O Rio não é
trivial.”
O carro avançava pelo bairro do Flamengo e ele prosseguiu a
análise sem solavancos. Em suas pesquisas, disse, jamais atingiu o
percentual de impopularidade que lhe foi atribuído. “Nunca tive só 12%
de aprovação. Variou entre 15, 18, 20. E esse número é velho também, já
melhorou”, afirmou, escorrendo novamente a mão pela gravata. Na sua
avaliação, o que parecia uma crise sem solução era fruto da exploração
de um “imaginário popular” alimentado por adversários que “jogavam
abaixo da linha da cintura”.
Havia os que chamou de “profissas de
manifestação”, os sindicatos, os partidos políticos – como o Partido
Socialismo e Liberdade e o Partido da República –, seus representantes,
os black blocs, de quem não se conhecia exatamente a agenda, e
os “formadores de opinião”. “É o pessoal que em 2006 fez campanha para a
Denise Frossard, em 2008 e 2010 fez para o Fernando Gabeira, em 2012
estava com o Marcelo Freixo”, comentou. Parecia muita gente, disse, mas
eram vozes isoladas. Para ele, a oposição soube reverberar com força a
onda negativa produzida contra o governo, “mas é uma coisa que está
decantando, que as pessoas estão discernindo a ironia por trás dela,
vendo que são ataques que não ficam de pé”.
O carro parou em um semáforo vermelho. “A gente vê pelas
pesquisas que, em relação à sucessão, não houve nenhum legatário das
manifestações”, comentou Cabral. A situação estadual seria diferente do
que havia ocorrido em âmbito nacional com Marina Silva, que, depois das
jornadas de junho, ganhara musculatura como alternativa a Dilma
Rousseff. “O Pezão está lá embolado com todos. Não tem nenhum candidato
que passe dos vinte pontos. A diferença é que nós temos uma história de
sete anos de mudança no estado. E as pessoas sabem disso”, falou. Ao
cruzar os portões do Palácio Guanabara, Cabral concluiu: “Isso é um
processo. Um governante democrático tem que entender. Há de se ter
paciência e tolerância. Essa é a palavra: to-le-rân-cia.”
Numa tarde de agosto, o vereador e ex-prefeito Cesar Maia,
do Democratas, despachava em seu gabinete na Câmara Municipal. Vestia
uma camisa listrada de branco e azul e tinha uma gravata vermelha
pendurada nos ombros como uma echarpe. Assertivo e focado, ele fala
rápido, tem o olhar injetado e enormes fios de sobrancelha que apontam
para cima como pequenas antenas. Rabiscava o verso de um papel com uma
pesquisa do Instituto GPP. O levantamento de opinião pública mostrava
que, três meses antes dos protestos, mais de 60% da população não sabia
citar uma realização do governo Cabral.
Cesar Maia enumerou o recheio do “imaginário popular”,
citado por Cabral. “Vamos lá”, começou, “gastos exorbitantes na festinha
de sorteio da Copa do Mundo, construção de estádios, a boa vida,
viagens para o exterior, ligações promíscuas com Eike, Cavendish,
guardanapo, helicóptero, marquetagem, relação péssima com os servidores
públicos, catástrofe na serra fluminense e ele sempre viajando,
Amarildo, vídeo chamando menino de otário, escritório de advocacia da
mulher.” Recuperou o fôlego e perguntou: “É bastante, não?”
Segundo ele, os protestos de junho afetaram a imagem de
todos os políticos, mas a situação de Cabral era de outra ordem. “A
passagem de ônibus foi um tipping point. Com ele, o que houve
foi um processo cumulativo, foi a desfaçatez de anos, que estava
represada, que veio à tona”, comentou. Para o ex-prefeito, Cabral virou o
retrato acabado da ignomínia da política nacional. “Quando a população
se vê à deriva, você tem que escolher sua Geni de estimação, um fato ou
personagem para aglutinar e canalizar a revolta das pessoas. Ele foi
fácil. Quem colecionou tanta impropriedade assim?”, perguntou.
Dali a alguns minutos, Maia participaria de uma votação em
plenário. Levantou-se e fez o nó da gravata deixando o colarinho da
camisa em riste, como a gola da capa de um vampiro. Em sua opinião, a
situação de Cabral era irreversível e a tentativa de emplacar Pezão como
sucessor, um devaneio. “Quando eu saí da prefeitura, eu tinha 25% de
ótimo e bom e 35% de ruim e péssimo. Tinha uma campanha da TV Globo
contra mim, a epidemia de dengue, tudo muito ruim, mas eu podia andar na
rua. Ele tem 12% de bom e 50% de péssimo. Isso é mortal”, falou.
Primogênito do jornalista e crítico musical Sérgio Cabral, um dos fundadores do Pasquim,
e da museóloga Magaly, Serginho – como é chamado na intimidade – teve
uma infância de garoto de subúrbio. Nasceu no Engenho Novo e foi criado
em Cavalcanti, onde jogava bola e soltava pipa na rua. A família se
mudou para São Paulo quando o pai trabalhou na revista Realidade. De
volta ao Rio, instalaram-se no Leblon. A casa era frequentada por
sambistas e jornalistas cariocas de esquerda. Virou então um integrante
da jeunesse dorée, que discutia comunismo no Arpoador.
Desde cedo, Cabral gostou de política. Escrevia no jornal
da escola e discursava se houvesse três pessoas reunidas. Aos 15 anos,
frequentava reuniões da Juventude Comunista e, aos 18, já militava no
grupo jovem do Movimento Democrático Brasileiro – partido de oposição
consentida na ditadura. No 2º grau, foi expulso do colégio por ter
conclamado os alunos a montar um grêmio estudantil. Nessa época,
participou da campanha de seu pai para vereador e foi um dos
coordenadores do comitê que apoiou a eleição indireta de Tancredo Neves.
Foi quando conheceu sua primeira mulher, Suzana, com quem
teve três filhos. Ela é sobrinha-neta de Tancredo Neves e filha de
Gastão Lobosque Neves, proeminente empresário do ramo de minério em
Minas Gerais. Cabral sempre teve uma diligente admiração pelo sogro e o
clã Neves. Ficou muito amigo de um primo da mulher, Aécio Neves, com
quem fumava nos fundos do avião que levava Tancredo aos comícios pelas
eleições diretas à Presidência. Tornou-se inseparável de um tio de
Suzana, o senador Francisco Dornelles, do Partido Progressista. É a ele a
quem recorre em encruzilhadas políticas.
Formado em jornalismo sem jamais ter exercido a profissão,
ele nunca cogitou outra carreira que não fosse a dos palanques, dos
gabinetes, das viagens – de campanha ou não. Numa antiga entrevista, seu
pai disse que “o Serginho gosta tanto de eleição que, se pudesse, ele
se candidataria a papa”. Trabalhou no gabinete do pai na Câmara
Municipal, mas vivia com conforto graças à família da mulher.
Em 1987,
aos 24 anos, Cabral assumiu seu primeiro cargo público. Foi nomeado
diretor de Operações da Companhia de Turismo do Estado do Rio de Janeiro
a pedido do sogro e do pai. Eles insistiram com o então governador
Moreira Franco para que desse uma chance ao jovem e ambicioso aspirante a
político.
A aposta vingou. Em pouco tempo, Cabral implementou dois
projetos que se tornariam sua marca registrada junto ao eleitorado: o
Clube da Maior Idade e os Albergues da Juventude. Passou a ser adorado
por velhinhos e mocinhos.
A profícua atuação à frente dos programas o levou ao PSDB e
ao cargo de deputado estadual – para o qual foi eleito em 1990 com
tímidos 12 000 votos. Aproximou-se do então prefeito Marcello Alencar – à
época no Partido Democrático Trabalhista –, que contava com alta
popularidade, diferentemente do que ocorria com o governador Leonel
Brizola. “Quero ser um novo Marcello sem o Brizola para atrapalhar”, era
o slogan de campanha de Cabral à prefeitura em 1992. Não deu certo e
foi derrotado. A maior visibilidade lhe rendeu frutos. Em 1994 garantiu a
reeleição para a Assembleia fluminense com 168 mil votos.
A essa altura, Sérgio Cabral já encarnava os atributos que
vieram a defini-lo no futuro. Animado, adaptava-se como um Zelig a
situações e pessoas. É dotado de uma dose de fanfarrice, que costuma
soar simpática, quase sedutora, conferindo-lhe um ar eternamente
juvenil.
Aprendeu com o pai a contar piadas, a soltar bons mots,
além de discorrer sobre boemia, samba, futebol e demais clichês da
carioquice. Por outro lado, sempre cultivou o modo tradicional de ganhar
votos: mandar cartões de aniversário para eleitores, não perder um
baile da terceira idade, beijar crianças de colo, chamar prefeitos do
interior de “meu querido”, contratar cabos eleitorais, tratar
empresários como sumidades e atender pedidos de emprego.
Bom de palanque e de rua, criou uma série de frases para
todos os gostos: “Meus filhos e minha família têm acesso à saúde e à
educação e a maioria não tem. Isso é muito injusto”, falava com
indignação à gente pobre. “A economia só se desenvolve se soltar a
criatividade do empresário”, defendia junto a proprietários. “Sou a
síntese social do Rio”, dizia a todos. Quando precisava, mencionava ter
saído do subúrbio apenas aos 7 anos.
Se outra situação pedia, lembrava
que sua casa sempre foi frequentada por artistas e intelectuais. Em um
terceiro cenário, podia se valer do parentesco torto com a aristocrática
família Neves. Entre os pares na política, ele é tido como ambicioso,
organizado, jeitoso e com afiada percepção de oportunidades. É
considerado o mestre das evasivas. Um deputado estadual da base
governista me contou que, quando o governador Cabral fala “Que
maravilha, vamos nessa!”, quer dizer exatamente o contrário.
Em 1994, Marcello Alencar se elegeu governador e seu
afilhado político conquistou a presidência da Assembleia Legislativa do
Rio de Janeiro. Aos 31 anos, Sérgio Cabral se cobriu com o manto da
austeridade e começou a coibir regalias. Nunca se esqueceu de avisar a
imprensa dos seus feitos. Foi na frente de repórteres que apresentou o
arsenal bélico apreendido com os seguranças de seu antecessor, o
deputado José Nader, e a salinha secreta, dentro de um banheiro, que
seria usada – dizia-se – para acertar pagamentos. Dispensou o motorista
da Casa e ia para o trabalho dirigindo o próprio carro, um Voyage.
Teve uma atuação profícua e ruidosa. Conseguiu aprovar o
fim da aposentadoria especial para parlamentares e estabeleceu um teto
para o funcionalismo público. Também agiu para melhorar a vida de
setores da população. Ajudou a implantar o Passe Livre para estudantes
da rede pública, deficientes físicos e maiores de 65 anos. Firmou-se na
opinião pública como “o novo”, “o austero”, e passou a contar com uma
forte simpatia da imprensa local, sobretudo emissoras de rádio.
Dois anos depois, candidatou-se novamente à prefeitura. Na
frente das pesquisas, Cabral dava como certa a eleição, já que seu
principal adversário era o poste da vez: o desconhecido Luiz Paulo
Conde, secretário de Urbanismo do prefeito Cesar Maia, do finado Partido
da Frente Liberal.
Durante a campanha, o deputado Miro Teixeira,
candidato pelo Partido Democrático Trabalhista, acusou Cabral de ter
embolsado diárias da assembleia para viagens jamais realizadas. Ele
negou e atacou o adversário, chamando-o de “político velho e carcomido”.
Os adversários revidaram dizendo que era a prova de que Cabral não
gostava de velhos.
“A campanha foi toda errada”, disse-me um dos
coordenadores de seu comitê eleitoral na ocasião, hoje parlamentar. “Ele
parecia um mauricinho vazio, que estava ali a passeio.” Outro equívoco
foi ter subestimado o poder de Cesar Maia, que acabara de inaugurar
dezenas de obras pela cidade. Derrotado por Conde, Cabral ficou
prostrado. Em momentos de crise, ele costuma se abater fisicamente.
Tranca-se num quarto escuro, fica dias incomunicável com a cabeça
soterrada no travesseiro, à base de calmantes.
Em 1998, Anthony Garotinho, radialista evangélico, foi
eleito governador pelo Partido Democrático Trabalhista, numa ampla
coalizão de legendas de esquerda. A campanha de Garotinho foi fincada na
crítica à gestão de Marcello Alencar e, por consequência, à turma de
Sérgio Cabral – sobretudo no que dizia respeito às privatizações. O
governo vendera quase todas as empresas públicas estaduais – barcas,
energia elétrica, trens urbanos e o Banco do Estado do Rio de Janeiro, o
Banerj.
A um mês da posse de Garotinho, Cabral participou
de uma gravação clandestina, que revelou um esquema de cobrança de
propina na privatização da Companhia de Água e Esgoto, a Cedae, que
acabou suspensa.
A denúncia foi uma punhalada no peito de Alencar e
reduziu a pó a sólida amizade e parceria que os unia dando início a um
belicoso confronto diário pela imprensa. É quando se toma conhecimento de uma novidade:
Cabral havia ficado rico. Apesar de viver com o salário de deputado
estadual, Cabral, segundo Marcello Alencar, tinha um patrimônio
incompatível com sua renda.
Pela primeira vez, soube-se da casa
no condomínio Portobello, em Mangaratiba, um assunto sobre o qual o
governador ainda hoje tergiversa. A propriedade, avaliada por corretores
em 5 milhões de reais, tem as estruturas interna e externa feitas com
divisórias drywall, toda importada dos Estados Unidos. À época,
ele informou dar consultoria política a um publicitário, o que
justificava seus rendimentos.
Há dois anos, a revista Época mostrou que, para
quitar a casa, Cabral fizera empréstimos junto a seu chefe de gabinete,
ao subchefe e a um assessor, que ganhavam um décimo do valor que
disponibilizaram ao patrão. Também aparecia dinheiro do sogro e de
Suzana Neves na negociação do imóvel. Em sua declaração de bens entregue
ao Tribunal Superior Eleitoral, ele alegou que o valor da casa era de
200 mil reais.
Marcello Alencar ainda acusou Cabral de empregar parentes
em cargos no Tribunal de Contas do Estado, incluindo seu irmão e sua
segunda mulher, a advogada Marise Rivetti. Ele negou as acusações,
xingou Alencar, condenou o nepotismo e apresentou provas de que os
familiares eram assíduos.
Dizendo ser “inviável” sua permanência entre
os tucanos, Cabral rompeu com o partido e voltou à casa de origem, o
PMDB-cansado-de-guerra, mas ainda com excelente apetite. A partir daí,
aliou-se a Garotinho, o que lhe garantiu a continuidade à frente da
Assembleia Legislativa do Rio. No ano seguinte, a investigação sobre a
compra da casa de Mangaratiba foi arquivada na Justiça.
Foi no começo de 2001 que a advogada Adriana de Lourdes
Ancelmo, então assessora da Procuradoria-Geral na Assembleia fluminense,
conheceu seu futuro marido. Ela aguardava o elevador privativo quando o
presidente da Casa, Sérgio Cabral, chegou com seu vasto entourage.
A jovem se apresentou a Cabral, que ficou encantado com a morena de
sorriso largo e atitude destemida. Ele estava em sua terceira união e
ela era casada havia sete anos com um advogado, dono de um modesto
escritório no Centro da cidade.
Separaram-se e logo foram morar juntos.
No ano seguinte, nasceu o primeiro dos dois filhos deles, que só vieram a
celebrar oficialmente a união três anos depois, em uma cerimônia para
900 convidados no Copacabana Palace. A festa, cujo salão foi decorado
com 4 mil dúzias de rosas vermelhas, foi retratada em seis páginas da
revista Casamento. A lua de mel foi em Paris.
À frente da Assembleia, Cabral foi um fiel parceiro de
Garotinho, garantindo maioria do plenário nas votações de interesse do
governo. Em 2002, lançou-se ao Senado e foi eleito com 4,2 milhões de
votos, a maior votação para o cargo na história do Rio. Morando em
Brasília, longe da família, dos amigos, recém-casado e com filhos
pequenos, Cabral detestou o novo trabalho. Aborrecia-se com a modorra e
os conchavos no cafezinho do plenário.
Quando podia, ausentava-se. Um
levantamento da Mesa Diretora do Senado mostrou que, de 2003 a 2005, ele
havia faltado a um terço das votações, ou seja, havia acumulado 178
faltas. O maior feito de seu mandato foi ter sido o relator do Estatuto
Nacional do Idoso, o que lhe valeu mais admiração do antigo e fiel
eleitorado.
Rosinha Garotinho sucedeu o marido e era a governadora em
2005. Sem poder disputar mais um mandato, o casal Garotinho, então no
PMDB, resolveu apoiar Cabral para substituí-la no comando da Guanabara.
Colocaram a estrutura do governo à disposição da campanha e, em troca,
indicaram o vice na chapa, Luiz Fernando de Souza “Pezão”, ex-secretário
de governo de Rosinha, ex-prefeito de Piraí, cidade que havia sido
bombada com recursos dos cofres estaduais. Ali, Pezão promovera o que
chamou de “revolução tecnológica” com wi-fi público gratuito.
O governo Rosinha contava com boa popularidade
entre os mais pobres, mas era desprezado pela elite. Orientado por
marqueteiros, Cabral passou a imagem de querer romper com a
continuidade, sem enterrar os programas assistencialistas aprovados pelo
povo.
Adversários ressaltavam o enriquecimento mal explicado, a casa de
Mangaratiba e sua atuação na Assembleia. “Quando ele foi presidente da
Alerj, houve 66 CPIs, todas feitas só para achacar empresários”, disse à
época Elder Dantas, vice na chapa de Denise Frossard, do PPS, sem
apresentar provas.
Uma história me foi contada por três
interlocutores distintos. Rosinha havia decidido se desincompatibilizar
do governo para se candidatar ao Senado e garantir um cargo público. Com
sua saída, assumiria o vice-governador e ex-prefeito, Luiz Paulo Conde.
Às vésperas da saída, Cabral e Regis Fichtner – hoje chefe da Casa
Civil do governo – apareceram na residência oficial durante a noite.
Queriam convencer o casal para que Rosinha terminasse o mandato. De
acordo com os relatos, Cabral disse que, se Conde assumisse, ele o
trairia e acabaria com o projeto dos Garotinho – e dele próprio – de
fazê-lo governador do Rio. Depois de uma longa conversa e a garantia de
que continuariam parceiros no governo futuro, o casal topou a proposta.
Rosinha ficou, Conde não assumiu, e Cabral foi eleito governador do Rio
com mais de 5 milhões de votos.
No dia seguinte à eleição, Cabral não atendeu aos
telefonemas de Garotinho. E não os atendeu nunca mais. A amigos, Sérgio
Cabral nunca escondera seu desprezo pelo ex-governador. Eleito,
livrou-se dele. De sua parte, Pezão também se afastou.
Um ministro de
Dilma Rousseff me relatou uma reunião do partido, na qual Rosinha
chamava Pezão de “traidor” na frente de todos, ao que ele permaneceu
calado. O casal Garotinho, que contava com secretarias e autarquias,
como a Cedae, só fez nomeações no Departamento Estadual de Trânsito.
Durante o mandato de Cabral, o Tribunal Regional
Eleitoral deixou os Garotinho inelegíveis e cassou o mandato de Rosinha
como prefeita de Campos dos Goytacazes. A Justiça prendeu o chefe da
polícia do governo de ambos, o deputado Álvaro Lins. Ele e Garotinho
foram acusados de lotear cargos nas delegacias do Rio e condenados por
formação de quadrilha.
Dez entre dez observadores fluminenses enxergaram
as digitais de Cabral nos processos contra o casal. O ódio entre eles é
do tipo visto apenas em filmes preto e branco estrelados pela atriz
Joan Crawford.
Ao assumir o governo do Rio, Sérgio Cabral acabou com a
nomeação política para cargos na Segurança Pública, na Saúde e nas
inspetorias da Fazenda. Formou uma equipe de perfil mais técnico,
equilibrou as despesas do estado no primeiro ano e logo produziu um
superávit nas contas, o que não se via fazia muito tempo.
Ainda nos
primeiros meses, duas barbaridades abateram o governo: a morte do garoto
João Hélio, arrastado por bandidos num assalto, e a chacina do Alemão,
na qual dezenove pessoas foram mortas pela polícia. O problema do
banditismo, e sua relação visceral com a polícia e o tráfico de drogas,
continuava insolúvel.
“Aí, acontecem as duas coisas mais importantes da vida do
Cabral: a invenção das Unidades de Polícia Pacificadora, quando ele
encanta a elite e a imprensa, e a proximidade com o presidente Lula”,
disse-me o deputado estadual Luiz Paulo da Rocha, do PSDB. Desde o
início, a ocupação das favelas pela polícia teve audiência de novela das
nove.
Na primeira página de O Globo, a entrada do Exército na
Vila Cruzeiro, no complexo do Alemão, por exemplo, foi comparada à
invasão da Normandia por tropas aliadas. Quando se anunciava a
instalação das UPPs, o espetáculo era televisionado ao vivo, com direito
a suíte no dia seguinte mostrando a nova realidade local.
Houve uma
queda significativa dos índices de criminalidade. Pela primeira vez em
anos, a taxa de homicídios no estado ficou abaixo de trinta mortes por
cada grupo de 100 milhabitantes – embora ainda superior à taxa de São
Paulo, em torno de dez para cada 100 mil habitantes. A sensação de
bem-estar da população era reforçada pelo noticiário entusiasmado com as
realizações do governo.
Em paralelo, Cabral construiu uma ponte com o Palácio do
Planalto, selando uma umbilical relação com o presidente Lula. “Foi um
encontro de interesses mútuos”, lembrou um deputado federal petista.
Para Lula, interessava ter um aliado na segunda maior capital do país,
já que São Paulo e Minas Gerais estavam com os tucanos.
De sua parte,
Cabral estava interessado em verbas e investimentos, que viabilizariam
obras e realizações em seu governo. Somou-se a isso a empatia entre o
governador e o presidente, celebrada várias vezes em público. O Rio de
Janeiro nunca recebeu tantas verbas de Brasília quanto no governo Lula.
Sérgio Cabral se apresentava como um governante
atualizado, pragmático, pós-ideológico, com uma agenda modernizadora,
inclusive no terreno dos costumes. Disse ser favorável à legalização das
drogas e do aborto. Propôs à Previdência do Rio pagar pensão a casais
homossexuais.
Angariara prestígio, simpatia de jornalistas, dos patrões
da mídia, do Palácio do Planalto, das organizações não governamentais.
Finalmente se tornara um personagem nacional. Concomitantemente, sua
imagem era vendida a peso de diamante por uma das maiores empresas de
comunicação do país, a FSB, e, mais tarde, pela Prole, uma ascendente
agência publicitária, que lidava com a propaganda institucional do
governo.
Entre janeiro de 2007 e setembro de 2013, o
governo Cabral gastou 715 milhões de reais na rubrica “Serviços de
comunicação e divulgação”, de acordo com dados do Sistema de
Administração Financeira para Estados e Municípios. “Isso é só o
que foi gasto para divulgar o que ele fez no governo. É uma média de
100 milhões por ano, o equivalente ao orçamento anual inteiro de um
município de pequeno porte”, disse o deputado tucano Luiz Paulo da
Rocha.
Mesmo diante das viagens cada vez mais frequentes ao
exterior, ou dos impropérios disparados em público – como chamar médicos
faltosos de “vagabundos e safados” –, ele parecia reagir com
naturalidade. “Sofro por estar fora, mas tenho que vender o Rio”, disse
em uma ocasião. “O presidente Lula também é criticado por isso. Então,
estou em boa companhia.” No final do primeiro ano de governo, Sérgio
Cabral havia passado uma média de um a cada seis dias fora do Brasil.
A
euforia aumentou com a economia a todo vapor, as promessas do pré-sal, a
Copa do Mundo, as Olimpíadas. O Rio voltou ao primeiro plano. Sem
percalços, Cabral elegeu em 2008, em primeiro turno, seu candidato a
prefeito da capital, Eduardo Paes. A amigos, ele nunca escondeu o sonho
de ser o vice na chapa da reeleição de Dilma em 2014.
Corria o 23º dia do “Ocupa Cabral” na esquina da avenida
Delfim Moreira com a rua Aristides Espínola, no coração do Leblon, o
metro quadrado mais caro do país. A 100 metros do apartamento de Sérgio
Cabral, seis barracas de camping, uma extensa cobertura de lona
preta e outra tenda branca tomavam conta de parte da calçada e de uma
faixa da avenida, criando um funil para o trânsito. No entorno, havia
cadeiras, bancos, espelhos, isopores, uma quantidade industrial de
cobertores sujos e embolados, faixas de protesto e uma caixa de som
profissional conectada a um gato feito no poste de luz. Ouvia-se música
eletrônica quase o dia inteiro.
Era um final de tarde e cerca de trinta pessoas davam
conta da rotina diária do acampamento. Um rapaz magro, sardento e
articulado, apresentou-se como Bruno Cintra, mais conhecido co-moBruno
Ruivo. Um dos coordenadores do Ocupa, ele segurava o livro Constituição Federal para Concursos e
teclava em um iPad, cedido aos manifestantes por um estudante da
Pontifícia Universidade Católica, morador do Leblon.
Cintra me mostrou o
histórico dos dias de ocupação, organizado como numa tabela Excel, e
depois contou como nasceu o movimento. Segundo ele, no final de junho,
“o Pepe, o Maicon e o Zeca” estavam em um bar e assistiam a um
pronunciamento de Dilma Rousseff em rede nacional. “Uma hora ela
mencionou a baderna em relação aos protestos. Aí, eles falaram:
‘Baderna? Vamos dar uma lição neles’”, contou.
No mesmo dia, divulgaram
pela Mídia Ninja e pelas redes sociais que se instalariam na porta do
governador. O maior dos atos organizados por eles reuniu 4 mil pessoas
na rua de Cabral. Dez dias depois, a polícia desmontou as tendas na
marra e prendeu um dos que protestavam.
Em menos de um mês, eles estavam de volta. Dessa vez, sem
previsão de ir embora. Um rapaz com o capuz preto do moletom enterrado
na cabeça interrompeu a conversa. “Me dá aí o iPad, meu”, disse.
“Combinei de encontrar uma mina, libera aí para eu ver se ela mandou
mensagem no meu Facebook.” A contragosto, Ruivo lhe passou o tablet.
Uma dupla de jornalistas italianos fotografava tudo. Outro repórter, um
afegão com uma filmadora a tiracolo, aproximou-se e Ruivo se dirigiu a
ele em inglês fluente. Cintra me disse ser estudante universitário e
morar na Zona Sul com o irmão, que “tinha trabalho, todo certinho”.
Passaram pelo acampamento estudantes, desempregados,
indolentes, trabalhadores, curiosos, mendigos, adictos, sem-teto,
moradores dos vizinhos Morro do Vidigal e da Rocinha, rebeldes com e sem
causa, neo-hippies, militantes de partidos e os black blocs.
No auge da ocupação, a população flutuante chegava a quarenta pessoas de
dia, reduzia-se à metade durante a madrugada e dobrava nos fins de
semana. Dividiam-se em grupos: segurança, mídia e mobilização, limpeza,
estratégia política e materiais. Cintra era da estratégia política. Um
rapaz, chamado de Islã, era o chefe da segurança. Usava jaqueta de couro
preta mesmo nos dias mais quentes e ficava sentado horas a fio em uma
cadeira de praia.
Eles haviam feito um acordo com os seguranças do Posto 12,
em frente à praia, para, por 50 reais por dia, usar o banheiro e o
chuveiro à vontade. Ao público em geral, custa 2,80 por pessoa a cada
vez. As baterias dos celulares eram carregadas em portarias de prédios
da orla por zeladores, que se ofereciam para a tarefa. Na hora das
refeições, contavam com doações de vizinhos ou cada um se virava para
comer o que desse.
O dia passava na modorra. Conversavam entre si, falavam
para as câmeras da mídia alternativa sobre qualquer coisa o tempo todo,
pediam dinheiro para motoristas, iam até o mar, voltavam com olhos
vermelhos, rindo muito, entoavam gritos de guerra contra Cabral,
dançavam como numa festinha ao ar livre. Boa parte do tempo era usada
para discutir uma maneira de engrossar algum protesto ou cultivar o
desprezo por inimigos comuns: a imprensa – as Organizações Globo, em
particular –, o governo e o capitalismo.
A maioria fazia questão de
parecer enfastiada com a presença dos jornalistas. Como uma Greta Garbo
voluntariosa, a black bloc conhecida por Emma, que estampou a capa da revista Veja,
dispensava pedidos de entrevistas. “Não tenho mais nada para falar.”
Por três vezes, perguntaram-me se eu era da “mídia burguesa”.
Luiza Dreyer tem 23 anos, estudou no tradicional Colégio
Santo Inácio, mora com a mãe no bairro do Flamengo e trancou a faculdade
na PUC. Estava acampada desde o primeiro dia e, uma vez por semana,
voltava para casa para pegar roupas limpas ou “lavar o cabelo direito”.
Ela estendia camisas e shorts masculinos em um varal improvisado, preso a
duas árvores no canteiro da avenida. “Olha o tanto de coisa que
conquistamos.
O Cabral voltou atrás em várias decisões porque fomos lá e
brigamos. Isso mostra nossa força. Agora ele vai ter que dizer cadê o
Amarildo!”, disse, referindo-se ao sumiço do ajudante de pedreiro, que
se suspeitava ter sido morto por policiais na Rocinha. Perguntei se
pensavam que o movimento poderia se institucionalizar e, eventualmente,
virar um partido. “Não estamos pensando nisso agora. O objetivo hoje é
efetuar as mudanças e tirá-lo do governo.” A moça, que também era
assídua da Marcha das Vadias, disse que a mãe ficava preocupada com sua
ausência, mas que “agora entendia a importância de participar dos
protestos”.
Um carro da Globosat ficou preso num extenso
engarrafamento na Delfim Moreira. “É a Globo, é a Globo, vamos lá!” Uns
saíram correndo, outros pegaram balões a gás recheados com tinta, um black bloc tirou
um spray laranja de dentro de uma barraca. “Foda-se a Globo!”,
ouvia-se. Minutos depois, voltaram com ar satisfeito. Contaram ter
pichado todo o carro e disseram que o motorista havia ficado com medo.
“Falamos para ele que não era nada pessoal”, explicou-me um rapaz magro
de barba por fazer.
No final da tarde, apareceu Ernesto Fuentes Brito, guru dos acampados, que usava uma boina a la Sierra
Maestra. Filho do historiador Elinor Mendes Brito – um dos setenta
presos políticos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bucher,
sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária, em 1970 –, ele tem 36
anos, nasceu no Chile, onde o pai ficou exilado e é professor de
biologia.
Estava desempregado havia três meses. “Fui demitido por minhas
ideias, mas também porque eu queria uma vida mais libertária”, contou.
Desde então, havia passado a organizar atos e manifestações pela cidade
contra o governo Cabral. Ele contou manter um apartamento na Zona Norte,
cujas despesas de manutenção eram pagas com suas economias. “Eu tenho
uma reserva”, disse-me.
Sentado na calçada, Fuentes apontou um black bloc que
rebolava agachando-se até o chão ao som da Gaiola das Popozudas em
companhia de outros cinco manifestantes. “Veja aquele garoto. É negro,
pobre, encontrou um lugar para ser libertário e viver como quer”, disse,
professoral. “Ele não é morador de rua. Ele escolheu morar na rua, é
diferente. Isso é um ideal, é muito importante.” O black bloc começou
a gritar “Vai se foder” para um carro. “Peralá, isso não!”, Fuentes lhe
chamou a atenção de longe. “Foi mal, foi mal”, respondeu o rapaz.
Por alguns minutos, o professor passou a discorrer sobre a
luta de classes e como a imprensa, os bancos e os governos têm uma
agenda que jamais beneficiará a maioria. De um utilitário preto, um
playboy segurando uma latinha de cerveja buzinou e acenou para os
manifestantes. “É isso aí! Fora, Cabral!” Com um sorriso contido,
Fuentes comentou: “Isso é bem Bertoldo.” Fiz cara de interrogação.
“Bertoldo Brecht. É a coisa do motorista e do patrão. Quando bebe, fica
legal e justo, é capaz de oferecer a filha para o motorista. Mas quando
baixa o teor do álcool, o abismo social volta com força”, disse em
referência à peça O Senhor Puntilla e Seu Criado Matti. “Quando a elite bebe, vem aqui, abraça a gente... Depois, quer distância”, concluiu.
Um ônibus se ateve no engarrafamento e um passageiro
passou através da janela uma faixa em que se lia “Fora, Sérgio Cabral e
Eduardo Paes. Respeitem o povo!”, o que provocou uma ovação dos
manifestantes. O painel foi instalado entre as barracas. Em meia hora,
doze carros pararam e deram alguma contribuição em dinheiro para o
grupo.
No começo da noite, mais de cinquenta pessoas circulavam
pelo local. Aproximou-se um garoto de 20 anos, usando jeans, tênis e
carregando uma mochila. Chamava-se Bruno, era estudante de geografia da
puc e estava cansado da “vida burguesa”. Durante vinte minutos, entoou
uma cantilena de problemas com o pai rico, que não aceitava que ele
fizesse geografia, que sua vida era vazia e superficial.
Fuentes ouviu
com atenção e, ao final, o aconselhou a voltar para a faculdade. Logo em
seguida, um homem negro lhe trouxe um copo de café quente. Era
funcionário da obra do metrô, a 500 metros dali, e dormia todos os dias
no acampamento. “Ele mora em Nova Iguaçu. Ganha 100 reais por dia e
gasta 27 de passagem, não vale a pena voltar para casa. Antes de a gente
estar aqui, ele dormia sob uma marquise. Agora, está aqui com a gente”,
explicou Fuentes.
Luiza Dreyer apareceu com a expressão de felicidade. Havia
disponibilizado sua conta bancária pessoal para doações e tinham feito
um depósito de 700 reais. De quem? “Não sei, colocaram! Ótimo, vamos
fazer vários investimentos em arquitetura aqui, comprar mais barracas e
botijões de gás”, comentou. Todos os acampados com quem conversei
durante os quatro dias que estive no Ocupa Cabral negaram receber
pagamentos de grupos ou partidos políticos. “Falar que recebemos de
alguém é uma maneira baixa de desmerecer nossa ação”, comentou Fuentes.
A reeleição de Cabral teve o clima de verso de Baudelaire: lá, onde tudo é ordem e beleza/ luxo, calma e volúpia . As
UPPs eram uma vitrine mundial e sombreavam os baixos índices nas áreas
de saúde e educação. Porém, a conjuntura estava diferente. Afastado da
vida política para tratar do câncer na laringe, Lula já não era um
parceiro presente. De sua parte, Dilma nutria pouca simpatia pelo jeito
galhofeiro do governador. Lembrava-se com desprezo de um vídeo gravado
no Carnaval em que apareciam juntos – ele, bêbado, enrolando um inglês
incompreensível –, quando ela ainda era candidata. Ela gostava era de
Pezão, que considerava sério, competente e trabalhador.
Havia pegado muito mal o sumiço de Cabral quando das
enchentes de janeiro de 2011 na serra fluminense, que mataram quase mil
pessoas. No ano anterior, diante da mesma tragédia, ele só tinha
aparecido dias depois, quando culpou a prefeitura dos municípios
atingidos. Mas, ainda que a economia desse os primeiros sinais de que
iria desandar, Cabral conservava a maré de estabilidade. “Aí acontece o
incontrolável, o inesperado, o que abalou tudo: o acidente de
helicóptero na Bahia”, lembrou o vereador Cesar Maia.
Em junho de 2011, Sérgio Cabral, familiares e amigos
tomaram emprestado o avião particular do empresário Eike Batista para ir
à festa de aniversário do empreiteiro Fernando Cavendish, que tinha
contratos de mais de 1 bilhão de reais com o governo, parte deles sem
licitação. O governador vivia um momento de euforia, sobretudo na vida
pessoal. A turma desembarcou do jato de Eike em Porto Seguro, na Bahia, e
pegaria um helicóptero até Trancoso, um voo de dez minutos.
Como havia
muitos convidados, os homens deram prioridade às mulheres e crianças. A
aeronave caiu no mar cinco minutos depois da decolagem. No acidente,
sete pessoas morreram. Entre elas, a namorada do filho do governador; a
cunhada, Fernanda Kfuri, e a mulher de Cavendish, Jordana; e o filho
dela, o menino Lucas Kfuri de Magalhães Lins, neto do executivo José
Luiz de Magalhães Lins, figura destacada da elite brasileira,
articulador político e responsável pela consolidação do Banco Nacional,
que, com sua saída, foi à bancarrota.
A criança era o alento do patriarca, que lidava com outra
tragédia particular. O pai do menino – seu filho predileto, José Luca –
sofria de um grave câncer. A notícia da morte da criança devastou os
parentes. Logo depois do acidente, os Magalhães Lins chamaram o advogado
carioca Nelio Machado para uma reunião na casa da família no bairro do
Humaitá. Parte deles queria responsabilizar criminalmente Sérgio Cabral e
Fernando Cavendish pela tragédia. Naquela mesma noite, desistiram da
ideia. Destruído pela perda do filho único, José Luca chegou a
interromper o tratamento de quimioterapia. Um ano e meio depois, ele
sucumbiu à doença.
À medida que as notícias e os corpos iam sendo encontrados
em alto-mar mais detalhes vinham à tona. Soube-se que o voo foi feito à
noite, chovia, havia densa neblina e o piloto do helicóptero estava com
o brevê vencido havia cinco anos. Também que a mulher de Cabral, que
estava no Rio, ignorava a viagem. O governador foi ao enterro da nora e
depois se isolou em Mangaratiba. Como resposta institucional à tragédia,
baixou uma norma para si próprio: lançou com alarde um Código de
Conduta Ética para o servidor público regulamentando a proibição de
receber presentes e vantagens no exercício do cargo.
“O acidente desnudou o que sempre foi a principal
característica do governo dele: a relação promíscua entre o público e o
privado”, comentou o deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL, em uma
tarde recente. “O Cabral é um psicopata, que não tem sentimento de culpa
por nenhuma das coisas bizarras e absurdas em que ele se envolve. Ele
se comporta como se não fosse nada com ele.” Logo em seguida, Cabral e
Adriana Ancelmo homologaram o divórcio, que durou quarenta dias. No
outro ano, o casal renovou os votos numa cerimônia no Palácio
Laranjeiras, cujos padrinhos postiços foram Lula e Dilma, que estavam na
cidade para uma solenidade pública.
Quase um ano depois, em abril de 2012, o deputado
federal e ex-governador Anthony Garotinho publicou em seu blog uma série
de fotos, tiradas em Paris, quando Sérgio Cabral, acompanhado de uma
comitiva de 150 pessoas, desembarcou na capital para receber a Legião de
Honra pelo Senado francês. Nas fotos, Fernando Cavendish aparece
abraçado a secretários de estado com guardanapos amarrados na cabeça.
Em
outra série, Cabral e a turma dançam funk ou algo do gênero agachados
em frente a um cantor. Noutra, Cavendish, o empresário George Sadala,
concessionário do Poupatempo no Rio e em Minas, mais os secretários de
Saúde e de Transportes (Sérgio Cortes e Wilson Carlos) estão no
restaurante do hotel Ritz de Paris. Há também a cena das respectivas
mulheres exibindo a sola de sapatos da grife Christian Louboutin.
Depois de quase um mês em silêncio, Cabral respondeu não manter relações escusas com o empreiteiro, seu amigo de longa data.
"O pior é que o Sérgio Cabral foi o melhor governador que o
Rio já teve”, disse Jorge Picciani, presidente do PMDB fluminense,
durante um jantar em um restaurante na Barra da Tijuca, em agosto.
“Essas críticas são injustas. Ele tem sensibilidade social, um histórico
de melhorias para a população, para o Rio e para a democracia. Essa
coisa mesmo de acabar com voto secreto, ele fez isso na Assembleia há
muitos anos”, comentou.
Alto, corpulento, com bochechas macilentas e voz gutural,
Picciani lembra um personagem de desenho da Pixar. Calado, parece mais
ameaçador do que quando conversa, em tom amistoso e gentil. Tinha o
cabelo cortado à escovinha, usava jeans, camiseta, blazer de linho e um
mocassim branco. Ele é considerado “o dono do PMDB do Rio”.
O problema de Cabral, segundo Picciani, era mais complexo.
“A pessoa física interferiu na jurídica”, disse. Passando os olhos no
cardápio, ele comentou: “Eu sou da roça. Eu não gosto de viajar. Esse
negócio de 200 pessoas, bebida, deslumbramento. Ali foi o novo-riquismo,
a soberba”, falou. Ele classificou de “falta de sorte” a amizade de
Cabral com Cavendish, que tinha negócios com o bicheiro Carlinhos
Cachoeira. “Uma empresa que estava estabelecida no Rio muito antes do
governo dele”, afirmou.
Na avaliação de Picciani, a imagem do governador será
recomposta em breve, mas é preciso uma mudança urgente na maneira de
vender sua imagem. “Os programas de tevê dele são um horror. A gente
combina uma coisa, sai outra”, comentou. Na véspera, a propaganda do
PMDB estadual mostrou obras, tratores, trabalhadores, túneis.
Não se fez
menção ao nome ou à imagem de Cabral. Segundo Picciani, o combinado era
comparar o governo Cabral com o de Benedita da Silva, do Partido dos
Trabalhadores, usando imagens do traficante Fernandinho Beira-Mar rindo
ao ser preso. “Ia mostrar como mudou a segurança. Isso é o que melhora a
imagem dele! Aí, você liga a tevê e é tudo o contrário”, disse. Os
programas são feitos pela agência Prole, a mesma responsável pelas
inserções de Aécio Neves, e aprovados pelo governador.
Picciani passou a se mexer na cadeira como se tivesse sido
acometido por uma crise de coceira. “Ai, esse sapato estava me
apertando demais”, disse, aliviado, ao se livrar de um deles por debaixo
da mesa. Falou-se sobre as manifestações populares contra o governo e
ele afirmou que os acampados na rua de Cabral eram financiados por
partidos políticos, como o PR e o PSOL. “É coisa paga, encomendada. Os
adversários se aproveitaram dos protestos nacionais e se uniram.”
O Partido dos Trabalhadores, segundo ele, havia estimulado
a maré de críticas. Com a queda de Cabral nas pesquisas, o senador
Lindbergh Farias, do PT, aproveitou o momento para impor sua candidatura
à sucessão, ainda quea aliança nacional entre os dois partidos se
esfacelasse no Estado. “Eu estou doido para que eles rompam conosco aqui
no Rio”, disse Picciani em tom de blague, referindo-se ao PT. “Porque
estou louco para apoiar o Eduardo Campos”, comentou, sarcástico, na
saída do restaurante.
Quando entrou no amplo gabinete no Palácio Guanabara,
Cabral leu em voz alta uma notícia estampada na tela do computador de
sua mesa. “Ixi... ‘Atirador de Washington ouvia a voz de Deus’... Ai,
meu Deus”, comentou. Ele se dirigiu a uma grande porta e, como um Luís
XIV em seu Versalhes particular, empurrou-a deixando os dois braços
estendidos na altura do peito. “Olha que bonito esse jardim.
Foi
restaurado por nós”, disse-me. Uma larga aleia de centenárias palmeiras
imperiais circundava um chafariz com a imagem de Netuno e esculturas de
crianças montadas em peixes num idílico cenário emoldurado por Mata
Atlântica nativa. “Vamos dar uma volta”, sugeriu.
Aos 50 anos, Cabral emagreceu, está bronzeado, mantém o
senso de humor aguçado e o indefectível sopro juvenil. Durante a
caminhada, ele enumerava as conquistas de seu governo, como havia feito
no seminário pouco antes. “Como se fala em improbidade e corrupção num
governo que ganhainvestment grade, que é premiado a toda hora
na gestão das finanças?”, indagou. Interrompi-o dizendo que seu problema
era o voo do Juquinha e o guardanapo na cabeça. “Eu não apareço em foto
nenhuma de guardanapo. Taí, ó. Essa é uma das tentativas de estigmatizar”, disse.
Quando as manifestações tomaram corpo nas ruas, Cabral
passou a rever medidas impopulares, como a demolição de um parque
aquático e uma escola, que desapareceriam com as obras da Copa e da
Olimpíada. Devolveu dinheiro de diárias de viagens privadas e derrubou
uma resolução que proibia bailes funk nas favelas pacificadas.
Também
sancionou uma lei que vetava mascarados em protestos de rua. No meio da
confusão, uma reportagem da Veja mostrou que helicópteros do
governo eram usados para levar o governador, sua mulher, seus filhos,
babás e até o cachorro da família, o Juquinha, para Mangaratiba. Cabral
respondeu às críticas dizendo não estar “fazendo nenhuma estripulia”.
Dias depois, pela segunda ocasião, valeu-se de um código de ética. Dessa
vez, decidiu disciplinar o uso de aeronaves no serviço público.
Durante nosso passeio pelos jardins do Guanabara, ele
argumentou que um governante pode e deve usar helicóptero por questões
de segurança. “Ainda mais nós que combatemos tanto a criminalidade”,
disse. Passarinhos piavam forte, ele olhou para o céu como se os
procurassee emendou: “E o Juquinha, pelo amor de Deus, é um cachorrinho
desse tamanhinho, e é do meu filho”, disse afinando a voz e juntando as
duas mãos espalmadas no ar. “Sempre foi voo de família, meus filhos
junto. Nunca foi só babá com cachorro. É segurança da minha família”,
emendou. Quando citei que até um cabeleireiro havia declarado ter voado
para atender a família em Mangaratiba, ele cerrou as sobrancelhas e me
olhou como se eu estivesse falando javanês. “Ah, isso foi uma vez que
ele pegou carona com alguém. Comigo, sei lá, o que é isso! Pelo amor de
Deus, não teve isso!”.
Um funcionário o parou para falar mal do secretário de
Educação. Quando ele se afastou, eu quis saber sobre as diárias
recebidas em viagens particulares, pelas quais ele recentemente
reembolsou o erário. “Isso foi um erro burocrático. Houve dois ou três
casos. A gente explica, mas o repórter vai lá e põe. Eu vou responder?
Eu vou brigar com repórter? Eu sou jornalista, pô!” Ele caminhava
lentamente e tinha um tom de voz firme, de quem não duvida por um
segundo do que está dizendo. “Tem essa estigmatização, isso reverbera em
nichos... Tem artista que não gosta de mim. Eu sou admirador do Caetano
Veloso, mas ele escreve contra minha administração. Vou desgostar dele,
que compõe aquelas músicas extraordinárias? Mais uma vez, é o que eu
digo: to-le-rân-cia.” Diante de uma frondosa árvore que nos dava uma
sombra refrescante, ele arriscou a hipótese de que talvez tivesse se
importado mais com gestão do que com política. “É verdade, eu curto
gestão.” Perguntei o que ele diria a quem aposta que ele está morto e
Pezão inviabilizado. “Nada!” Insisti. “Digo que eleição e mineração só
depois da apuração.”
Assim que as fotos e os vídeos de Cabral, Cavendish e
amigos no exterior vieram a público, passou-se a especular sobre quem os
teria vazado. Correu na cidade a versão de que teria sido a sogra de
Cavendish, que teve duas filhas e dois netos mortos no acidente. Ou que a
própria família Magalhães Lins teria viabilizado a divulgação. “Não tem
nada de sogra do Cavendish”, disse o deputado Anthony Garotinho,
potencial candidato ao governo do Rio, em uma noite de agosto, no seu
gabinete na Câmara Federal, em Brasília.
De acordo com Garotinho, as fotos foram copiadas do
computador de Jordana Kfuri, mulher de Cavendish, por um amigo dela.
“Por coincidência, esse sujeito estudava na mesma faculdade de um
funcionário do meu programa de rádio, na Manchete”, contou. O rapaz, que
por dever de ofício tinha acesso aos arquivos, se dizia “indignado” com
o tratamento dado aos parentes das vítimas e responsabilizava Cabral e
Cavendish pelo acidente. “Aí, ele deu o arquivo para o meu funcionário,
que me trouxe o pen drive. Quando eu abri as fotos, eu não acreditei”, comentou.
A primeira leva foi divulgada no blog do deputado no auge
da CPI do Cachoeira, que investigava as ligações da Delta com o
contraventor Carlinhos Cachoeira. De acordo com a Comissão, Cavendish
era suspeito de utilizar sua construtora para repassar dinheiro, por
meio de laranjas, a pessoas ligadas ao esquema do bicheiro. Em troca,
ganhava prioridade nas obras estaduais. “Ali eu vazei para pressionar o
Congresso para convocar o Cabral para a CPI, mas a blindagem do governo
foi mais forte”, comentou Garotinho.
Foram convocados os governadores
Agnelo Queiroz, do PT do Distrito Federal, e o tucano Marconi Perillo,
de Goiás. Fora a amizade com Cavendish e os gordos contratos da empresa
com o governo, Cabral não havia sido citado em nenhum grampo da
investigação. Mas o deputado Cândido Vaccarezza, do PT, foi flagrado
mandando uma mensagem de texto tranquilizando Cabral. “Você é nosso e
nós somos teu”, escreveu.
“São 300 fotos, nós vazamos cinquenta. Tem muita ainda,
tem para todos os gostos e públicos”, continuou Garotinho com a voz
empostada de locutor de rádio. Eu quis saber se ele havia feito muitas
cópias do material. “Eu ando com isso no meu bolso, minha querida. Não
está em cofre, não tem cópia, eu não confio em ninguém”, disse,
afastando o corpo da mesa, deslizando a cadeira de rodinhas para trás.
Ele se abaixou e tirou um pen drive preto da pasta de mão, que estava no chão. “Tá tudo
aqui, ó. Tem foto com empreiteiros, com fornecedores do governo, gente
que não deveria estar junto, entende? São várias viagens.” Quando pedi
para que me mostrasse, ele deu uma risada sarcástica. “Todo mundo vai
ver tudo. Mas no momento certo”, afirmou, colocando o dispositivo no
bolso da camisa.
Garotinho comentou estar esquadrinhando os contratos da
banca de advocacia da mulher do governador. Ela é sócia majoritária do
escritório Coelho & Ancelmo, que tem como clientes o Metrô do Rio, a
Supervia e o Grupo Facility, com contratos de mais de 1,5 bilhão de
reais com o governo estadual. Antes de Cabral assumir o cargo, apenas 2%
do faturamento do escritório tinha origem em concessionárias e
prestadoras de serviço para o estado. Atualmente, são 60%.
Às dez da noite Garotinho continuava elétrico. “Vamos ver
os vídeos! Faz tempo que não vejo!”, sugeriu. Abriu o iPad e achou no
YouTube as gravações que haviam vazado. “Ai, esse é ótimo!”, comentou.
Na tela, via-se o grupo ao redor de uma mesa de um restaurante de hotel
sob o olhar aturdido de um garçom, que segurava um bolo. “Olha, agora
eles vão cantar ‘Com quem será’, olha o que o Cabral vai fazer!”, disse
com a animação de uma criança.
Os convivas entoaram a música e Cabral
levantou o braço como que para chamar a atenção para si na filmagem.
“Vai depender, vai depender...”, ouvia-se. Teatralmente, Garotinho se
levantou da cadeira e passou a imitar os gestos e cantar em uníssono com
o governador, que encarava a câmera. “Se o Serginho vai querer!”,
repetiu o deputado antes de explodir em uma gaitada. “Depois, eu que sou
provinciano, eu que sou da turma do chuvisco”, disse, ainda, em
gargalhada. “Esse Sérgio Cabral é o maior mico que o Rio de Janeiro já
teve.”
Nos jardins do palácio, Cabral continuava a caminhada
peripatética. Falou-se sobre o sucesso do escritório de advocacia de sua
mulher. “Olha que interessante, eu estava refletindo outro dia:
normalmente os políticos são agredidos por botar a mulher na assistência
social. Há vinte anos, minha mulher tem esse escritório que...”
“Cresceu horrores no seu governo”, completei. Com um tom de voz sério,
ele retrucou que jamais pediu favores em nome dela: “Nunca me meti nos
assuntos do trabalho dela e não vai ser agora. É até covardia contra o
mérito dela e dos sócios.”
Comentei que havia quem apostasse que, se o helicóptero
não tivesse caído na Bahia, ele estaria firme no jogo sucessório. Cabral
lembrou que, antes dos protestos, ou seja, bem depois do helicóptero e
do guardanapo, a aprovação a seu governo era de 45%. “O Eduardo Paes foi
reeleito com 64% dos votos caminhando do meu lado. Nas eleições de
2012, estive em vários palanques.” De novo, minimizou o caso: “Nunca
escondi a minha amizade com o Cavendish, que é anterior ao governo e que
não tem nada a ver com o problema que ele teve no Centro-Oeste”,
defendeu-se.
Uma análise da revista inglesa The Economist atribuía
a queda vertiginosa na popularidade de Cabral a uma percepção na
fragilidade da política de enfrentamento da violência. O desaparecimento
do pedreiro Amarildo na Rocinha e a morte de nove pessoas no Complexo
da Maré, assassinadas por policiais, teriam contribuído para isso.
O celular de Cabral tocou. Era Dorita, chefe de gabinete,
dizendo que estava atrasado para a reunião. Foi quando ele se deu conta
de que segurava um livro de fotos do Palácio Guanabara desde o início do
passeio, como uma bolsa ou uma pasta. “Nem me toquei”, disse,
oferecendo-me o presente. Ele se despediu com dois beijinhos, mas antes
concluiu o raciocínio. “Nem todas as críticas foram equivocadas, é
preciso refletir sobre elas, mas as pessoas vão perceber que o governo
briga para descobrir onde está o Amarildo. Vão ouvir a empregada
doméstica que mora na Cidade de Deus contar que a vida dela melhorou
muito”, afirmou. “É um processo, há que se entender isso. Mas uma coisa
que eu não sou é soberbo. Isso não. Não tem cara mais humilde do que eu.
Quem me conhece sabe”, disse.
Era noite quando a primeira das oito barracas foi
desmontada. No começo de setembro, depois de 36 dias instalados no
Leblon, os manifestantes do Ocupa Cabral levantaram acampamento. À
imprensa, disseram que iriam se preparar para os atos de 7 de setembro.
“Começou a encher de mascarados no Ocupa, a coisa foi ficando com um tom
diferente do que era no começo. Depois veio a lei que proibia usar
máscara. Se os mascarados ficassem lá, a ordem era tirar todo mundo do
acampamento... Então, eles saíram antes”, disse-me dias depois, por
telefone, André Cintra, irmão de Bruno Ruivo, que – como todos os outros
manifestantes com que conversei – estava incomunicável. “O meu irmão
diz que eles só estão de férias, não estão desmobilizados. Que isso está
longe de terminar, mas o estrago no Cabral já está feito”, completou.
Dias depois, no escritório de Jorge Picciani na Barra da
Tijuca, um grupo da base governista comemorava a desocupação na porta de
Cabral. Um deputado estadual apostava numa possível bonança, falava mal
dos candidatos à sucessão e se mostrava confiante na eleição de Pezão.
“Nós temos a máquina, temos gente, dinheiro e sabemos fazer campanha”,
comentou, pedindo anonimato porque almejava um cargo público. De cabeça,
passou a cantar os números de uma pesquisa do partido, que colocava na
liderança da disputa o ministro da Pesca, Marcelo Crivella, do Partido
Republicano Brasileiro, seguido por Lindbergh Farias, com 17%,
Garotinho, com 13%, e Pezão com 10% das intenções de votos.
Segundo ele, a ira contra Cabral não havia atingido o
vice. Pezão, ele disse, tinha “o passado limpo”. “Ele não tem calo, tem
calinho, não pega nada”, comentou. O “calinho” era a desapropriação da
casa de uma parente – feita quando Pezão foi governador interino –,
vendida ao estado em regime de urgência por um valor muito superior ao
do mercado.
O plano era Cabral deixar o cargo em dezembro para que
Pezão se beneficiasse o quanto antes das inaugurações previstas para o
ano que vem. Segundo Picciani, o governador melhoraria nas pesquisas e
sua saída antecipada não teria ar de fuga. “O Pezão tira os cinco
principais secretários, põe gente dele, cria uma marca própria. Vai
continuar com o Beltrame [secretário de Segurança Pública], que
é um sucesso”, disse. A ideia também era acomodar Cabral em um
ministério, já que uma candidatura ao Senado poderia ser arriscada. As
negociações estavam adiantadas com o Palácio do Planalto. De Brasília,
veio a sugestão de abrigá-lo na pasta do Turismo. Ele não gostou. Achou
que se tratava de uma piada.
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