domingo, 12 de janeiro de 2014

Desopilando - "Uma carta para Ana Clara". Texto JM Cunha Santos.

Sei que ainda vão mentir para ti, Ana Clara. Vão dizer que a culpa é só dos bandidos e nem um pouco da irracionalidade oficial; dessa disputa doentia por dinheiro e poder.
Nem um pouco dessa formação de grupamentos humanos que se ofendem e se defendem de armas nas mãos. Mesmo tu estando nos céus, onde residem todas as crianças, vão tentar te convencer de que o que te tirou do mundo não foram a ganância e a falta de amor.
Vão querer te convencer, Ana Clara, que os adultos são mais racionais que as crianças; vão querer que acredites que mesmo nos matando em guerras fratricidas desde que o mundo é mundo, mesmo jogando bombas em mulheres e crianças e disparando balas perdidas em corpos frágeis e tênues como o teu, estamos do lado de Deus e temos muita fé.
Porque, afinal, somos nós, os adultos, que ensinamos as crianças a rezar. Não dirão que nós, os adultos, ao contrário das crianças, mentimos até para Deus. Mas eu me oponho para diante de ti assumir a minha culpa, a minha máxima culpa.
Eu também faço parte dos adultos que construíram essas cidades infernais e colocaram crianças dentro delas e, se não sei fazer crianças chorar, faço parte da multidão que não socorre todas as crianças que choram. Mas não ouça essas mentiras.
A loucura humana está no luxo, na perversão dos sentidos, nos prazeres incontroláveis que os adultos não param de exigir. Eles não vão te contar quem fabrica e vende armas para os bandidos. Mas eu te conto.
São adultos muito sérios e muito bem vestidos. Eles não vão dizer-te que existe a tortura e a tortura oficial. Eles não vão permitir que saibas que assim como existem facções criminosas, essas que te mataram, existem facções policiais e facções políticas e que em todas elas há gente disposta a matar.
Diante ti eu assumo a culpa de ser um adulto, e adultos, Ana Clara, não entendem nada de Deus, nem de amor. Se entendessem, tu e todas as crianças que já morreram de bala perdida, todas as que explodiram em guerras por poder e por dinheiro teriam o direito de crescer.


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