Por Ceci Juruá, no
site Carta Maior.
Matérias copiada do Blog do Miro.
1-
A partir de 1998, foi desmontada a integração financeira entre Previdência e
Seguridade Social.
Ao longo dos governos
tucanos, na década de 1990 e seguinte, Executivo e Legislativo promoveram
medidas sucessivas de desmonte da Seguridade Social, através de Emendas
Constitucionais e de leis complementares.
A EC N. 20 introduziu
modificações na previdência social em dezembro de 1998, organizando-a sob a
forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória.
Determinou o valor máximo de R$ 1.200,00 para os benefícios do regime geral,
reajustável para fins de preservação do valor real.
Autorizou a constituição de
um fundo integrado por bens, direitos e ativos de qualquer natureza para, em
adição à receita própria arrecadada, garantir os recursos necessários ao
pagamento dos benefícios do Regime Geral.
A LRF - Lei de
Responsabilidade fiscal criou, em maio de 2000, o FUNDO DO REGIME GERAL DE
PREVIDÊNCIA SOCIAL (FRGPS), destinando-lhe apenas as contribuições de patrões e
de empregados calculadas sobre a folha de salários e outros rendimentos do
trabalho.
2-
Na sequência a Previdência Social foi fragmentada em ilhas e arquipélagos
previdenciários.
Uma primeira grande ilha
foi construída separando-se os assalariados do setor produtivo privado dos
servidores do setor público estatal através do Fundo do Regime Geral. Depois,
em novembro de 1998, a Lei 9.717 autorizou a formação de regimes próprios de
previdência social para os servidores públicos da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos municípios, dos militares dos Estados e do Distrito
Federal.
Em 2001, através de duas
Leis Complementares, de números 108 e 109, foi criada a previdência
complementar, também designada como previdência privada, da qual fazem parte os
fundos de pensão, imenso arquipélago formado por entidades fechadas e abertas.
3-
No Regime Geral de Previdência Social (RGPS), ao final de 2012 os beneficiários
representavam pouco mais de 20% da população ativa na economia brasileira.
O anuário de 2013 da
Previdência Social informou os percentuais de distribuição dos benefícios pagos
pelo RGPS: 35%, aposentadorias por idade; 19%, obtidas por tempo de
contribuição; 26%, pensões por morte; os restantes 20% eram decorrentes de
aposentadorias por invalidez e outros benefícios (salário-maternidade e
auxílios diversos).
Assim, em 2012 apenas 9,2 milhões de segurados eram aposentados
por idade, cerca de 5 milhões estavam aposentados por tempo de contribuição,
outros 7,3 milhões recebiam pensão por morte do cônjuge.
Cabe então observar que é
pequena a parcela de trabalhadores incluídos no RGPS como aposentados por idade
ou por tempo de contribuição, e os pensionistas. Apenas 21,5 milhões de uma
população ativa próxima dos 100 milhões naquele ano de 2012. Os “mais bem
pagos” haviam sido aposentados por tempo de contribuição, absorviam 30% da
despesa do RGPS e constituíam 19% da população beneficiária (mas sujeitos ao
teto fixado, R$ 4.663 no ano de 2015).
Pessoas maiores de 65
anos, com deficiência e/ou não passíveis de inclusão no Regime Geral, obtiveram
o chamado beneficio de prestação continuada, de caráter assistencial. É uma
população restrita, pouco superior a 4 milhões de pessoas.
4-
Com fonte única de financiamento das aposentadorias e pensões do setor privado
da economia, foi rompido o modelo universal de financiamento tripartite
inaugurado na Era Vargas e consolidado pelos regimes militares.
O modelo tripartite
consistia em obter recursos de três fontes: as contribuições do trabalhador,
deduzidas do próprio salário, as contribuições do patronato, calculadas sobre
os rendimentos pagos aos trabalhadores, e a parcela socializada, devida pelo
Governo e financiada por tributos.
Descomprometido assim de
financiar pensões e aposentadorias de trabalhadores do setor privado, o Governo
pôde ir ampliando a dívida pública e comprometer-se com o tal de “superávit
primário” a partir do final de 1998, modelo que recebeu o aval do FMI-Fundo
Monetário Internacional.
Logo, a base da cálculo das contribuições mensais ao
INSS passaram a ser da competência do Mercado, local de troca de uma certa
quantidade de trabalho por remuneração monetária. Em consequência, a
arrecadação do Regime Geral de Previdência Social passou a depender das
oscilações, e dos humores, do deus Mercado!
Logicamente o Regime Geral
passaria a operar com déficits em tempos de recessão, desemprego e arrocho
salarial. Abriu-se ao mesmo tempo a oportunidade – política – para nova onda de
privatizações, pois a LRF determinara que os déficits do FRGPS deveriam ser
cobertos por alienação de bens, direitos e outros ativos (do Estado)!
Não fosse isso o bastante,
dois meses antes da LRF, dita Lei de Responsabilidade Fiscal, o Governo fez
aprovar Emenda Constitucional desvinculando 20% das receitas da União,
incluídas as contribuições sociais, de suas finalidades constitucionais. Surgia
ali a DRU, vista então como recurso provisório para aliviar o caixa do Tesouro.
No atual Governo já foi aprovada dupla ampliação da DRU: não mais 20 mas 30%
das receitas tributárias da União, e sua extensão às esferas regionais, Estados
e Municipios.
5.
Nas sendas e picadas abertas pelos poderes Legislativo e Executivo, os senhores
do Mercado puderam dispor sobre os recursos destinados ao Regime Geral de
Previdência Social.
Não foram apenas a DRU e
os fundos que a antecederam que desviaram recursos de contribuições sociais
para a dívida pública. Houve também desonerações fiscais, que reduziram as
contribuições calculadas sobre a folha de salários, utilizando como argumento a
crise econômica mundial/local e a necessidade de reduzir os custos empresariais
para defender o nível de emprego.
Houve também o SIMPLES, o
SIMPLES FEDERAL, o SIMPLES NACIONAL, o SUPER SIMPLES, denominações que
sinalizam um regime tributário diferenciado para empresas individuais, micros e
pequenas empresas. Sua ocorrência vem de 1996, e desde então há ampliações
sucessivas do universo empresarial beneficiado.
No governo Lula, foi a Lei
Complementar 123/2006 que deu os últimos retoques ao Super Simples, autorizando
recolher mensalmente, através de documento único, vários impostos (IRPJ, IPI,
ICMS e ISS) e contribuições sociais (CSLL, COFINS, PIS, e INSS). Esta lei sendo
complementar e, portanto, reguladora de cláusula constitucional, significou
desviar recursos do Sistema de Seguridade Social, recursos que deveriam ser
apropriados como receita do Ministério de Previdência e Assistência Social
passaram a ser recolhidos para o Ministério da Fazenda.
Consolidava-se assim a
imagem amplamente vendida pela mídia comercial para a opinião pública, de
existência de um déficit gigantesco na Seguridade Social. O debate sobre
Seguridade e Previdência assemelha-se desde então a uma “Torre de Babel”.
Acabou o diálogo, cada um passando a defender a tese que lhe era conveniente.
6.
O debate sobre o déficit previdenciário é inócuo e irrelevante, frente às
inconstitucionalidades do processo de desmonte da Previdência Social.
É irrelevante porque trata
de um Sistema de Seguridade Social já destruído, de uma Previdência Social dispersa
em ilhas e arquipélagos. Inócuo porque desconhece o caminho percorrido pelos
recursos destinados à Seguridade e à Previdência Social através de decisões
quase monocráticas, e certamente oligárquicas, de deputados e de senadores.
Em
um Parlamento que desde 1997 passara a receber generosas contribuições dos
senhores de um Mercado em franca desnacionalização.
É difícil entender a
ausência de reflexão sobre as inconstitucionalidades passíveis de verificação
ao longo do período. Seu desfecho foi o golpe parlamentar de agosto de 2016,
como resultado do acúmulo de forças dos poderes Legislativo e Judiciário
durante três décadas.
Como exemplo não único,
porém o maior, destaca-se a vigência até nossos dias, do artigo 167 da
Constituição da República.
Artigo 167. São vedados:
XI – a utilização dos
recursos provenientes das contribuições sociais de que trata o art.195, I.a, e
II, para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do
regime geral de previdência social de que trata o art. 201.
Consultando o portal do
Planalto, verificamos que a vedação estabelecida no artigo 167 refere-se a: i)
contribuições do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma
da lei, incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho
pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço,
mesmo sem vínculo empregatício; ii) contribuições do trabalhador e dos demais
segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria
e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o
artigo 201.
No caput do artigo 201
pode-se ler: a previdência social será organizada sob a forma de regime geral,
de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem
o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a ...
(seguem-se vários incisos e parágrafos sobre condições de filiação ao Regime
Geral e a qualificação dos benefícios distribuído).
Fica a pergunta: São
compatíveis as cláusulas constitucionais ainda vigentes com as medidas até
agora tomadas desviando recursos do INSS para o Ministério da Fazenda, sendo
estes recursos provenientes das contribuições sociais de patrões e empregados
sobre folha de salários e demais rendimentos do trabalho?
7.
O desmonte da Previdência Social pode implicar a desagregação do Estado e da
própria Nação, o Brasil!
Há poucos estudos sobre a
relação entre a formação da Previdência Social brasileira e a construção da
Nação e do Estado no Brasil. Mas eles existem, foram redigidos nas Academias e
Universidades de nosso país, foram lidos e analisados até a década de 1990.
A Previdência Social foi o
suporte institucional da construção nacional, representou o elo central de
coesão entre os diferentes espaços sociais graças ao modelo tripartite de
financiamento solidário, transferiu poder financeiro das multinacionais para os
sindicatos de trabalhadores, alimentou o setor empresarial com recursos
destinados à formação técnica de trabalhadores.
Produto da mente brilhante
do maior estadista do Brasil, e de sua equipe formada por pessoas de ideologias
distintas mas unidas pelo amor à Pátria, a Previdência Social não foi destruída
pelos governos militares, ao contrário – foi ampliada! Em seguida reunida a um
sistema mais amplo de Seguridade Social, escrito com bravura por todos que
lutaram pela volta da democracia plena e por eleições diretas.
São estas
Seguridade e Previdência Social, capítulo nobre da Constituição Cidadã de 1988,
primeira Carta e Pacto Social rascunhados democraticamente, nas ruas, por
movimentos sociais que reuniram trabalhadores e classes médias, que vêm sendo
destruídas sistematicamente no Poder Legislativo sem qualquer reação pública
dos nobres integrantes do Poder Judiciário.
Se não houver interrupção
desta trajetória perversa, serão multiplicados os déficits reais e imaginários
tanto na Seguridade quanto nas ilhas e arquipélagos da Previdência Social. Este
parece ser um dos objetivos da PEC 241, de limitação por 20 anos do gasto
público social. A ela deverá seguir-se outra PEC, de Reforma da Previdência, já
anunciada.
Poderá haver então a
guerra de todos contra cada um, e de cada um contra todos. Na luta humana e
desumana pela sobrevivência material. Estarão assim recompensados os esforços
das Altas Finanças Internacionais visando a mercantilização total e a
fragmentação da sociedade brasileira e do espaço territorial que nos abriga.
É este o futuro que
sonhamos?
* Teses construídas com
base em estudo realizado sobre O desafio da Previdência Social. Rio de Janeiro,
outubro de 2016.
** Ceci Juruá é economista
e doutora em políticas públicas, tendo sido professora universitária na área de
Finanças Públicas, conselheira do CORECON-RJ por dois triênios e
vice-presidente da Federação Nacional dos Economistas. Atualmente é membro do
Conselho Consultivo da CNTU.
Postado por Altamiro
Borges. E republicado por Xico Barros.
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