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Foto - Projeto de Lei nº 4.373/16 |
Por Vanessa Morais Kiss,
advogada e agente de Pastoral Carcerária.
Tramita na Câmara dos
Deputados o Projeto de Lei nº 4.373/16, que cria a Lei de Responsabilidade
Político-Criminal, apresentado pelo deputado federal Wadih Damous (PT/RJ),
que prevê que toda proposta legislativa que crie novos crimes, aumente as
penas previstas para os já existentes ou torne mais rigorosa sua execução
deverá ser submetida a um estudo prévio de seus impactos sociais e
orçamentários, contendo dados estatísticos e projeções de custos.
Segundo a justificativa
apresentada, o projeto surge num contexto de profusão de propostas de leis
penais e processuais penais que, sem quaisquer investigações empíricas ou
estudos técnicos prévios, acabam sendo votadas por parlamentares que
desconhecem a dimensão das suas consequências concretas.
Consequência disso,
segundo o texto, é a constatação de que “após a redemocratização, o Brasil
criminalizou mais que o dobro em praticamente metade do tempo, em
comparação com o período da ditadura militar”, o que, além de evidenciar
a inversão lógica no uso do Direito Penal, que deveria ocorrer apenas como
último recurso, põe em cheque a própria efetivação do regime democrático.
O debate sobre a
responsabilização pelas consequências do punitivismo irracional, que
motiva o projeto, faz-se essencial em tempos de caos carcerário já
declarado pelo Supremo Tribunal Federal que, no julgamento da ADPF nº 347,
em 2015, reconheceu o estado de coisas inconstitucional existente no
sistema prisional brasileiro, caracterizado por um quadro de violação
generalizada e sistêmica de direitos fundamentais.
Todavia, ao mesmo tempo em
que a mais alta instância judiciária do país reconhece a
situação insustentável produzida pela onda punitiva, somos confrontados a
todo momento com iniciativas legislativas da mais grave irresponsabilidade
política na área penal, cuja ilustração máxima, atualmente, são as
chamadas “10 medidas” articuladas pelo Ministério Público Federal que, a
pretexto de combater a corrupção, atacam sem o menor
constrangimento direitos e garantias tão fundamentais como o habeas corpus,
instrumento por excelência de defesa da liberdade.
Não se trata, contudo, de
um problema novo. Em artigo citado na exposição de motivos do projeto,
Salo de Carvalho aponta como problema patológico das reformas penais no Brasil
a absoluta ausência de estudo de prévio dos seus efeitos, sobretudo no
caso de normas penais que direta ou indiretamente ampliam hipóteses de
incriminação. Assim, partindo da premissa de que a opção político-criminal
pelo recrudescimento da repressão penal deve implicar deveres e
responsabilidades para o gestor público, propõe a adoção de um estudo prévio
que vincule o projeto à investigação de suas consequências para a
administração da Justiça Criminal e à existência de dotação orçamentária
que o contemple (CARVALHO, Salo de. Em defesa da lei de responsabilidade
político-criminal. Boletim IBCCrim, São Paulo, ano 16, n. 193, p. 8-9,
dez. 2008).
Nessa perspectiva, o PL nº
4.373/16 condiciona as propostas legislativas penais a um estudo prévio de
impacto que deve abranger as dimensões social e orçamentária. Do ponto de
vista social, deverão ser avaliados o número de novos processos submetidos
a julgamento, a quantidade de novas vagas necessárias nos estabelecimentos
penais e as implicações da criminalização e dos aumentos de pena na vida
coletiva. No caso de proposta que trate de aumento de pena ou restrição
para progressão de regime, a análise de impacto social pode ser suprida
pela indicação de medidas alternativas compensatórias que impliquem redução
de pena ou ampliação de benefícios de progressão em outro delito de igual
de natureza.
Sob o ângulo orçamentário,
propõe-se a investigação dos custos estimados da criação de novas vagas em
estabelecimentos penais e da demanda acrescida para o poder
Judiciário, análise que poderá ser suprida pela indicação das fontes de
recursos a serem empregadas para custear as medidas propostas.
O Projeto prevê ainda a
instituição, no âmbito da Câmara dos Deputados, de um Conselho de Análise
composto por representantes do Poder Judiciário, da Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB), do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), que, com base nos estudos apresentados,
emitirá parecer a ser anexado à proposição legislativa, a fim de informar
os debates e deliberações.
Em suma, busca-se, com o
PL nº 4.373/16, “fornecer elementos e qualificar as discussões quando do
tratamento desses projetos de lei e, quem sabe, trazer de volta a racionalidade
no debate sobre o direito e o processo penal”, de modo a conter os males
de seu uso desmedido.
O Projeto já recebeu
parecer favorável do relator, o Deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), e desde
agosto aguarda apreciação pela Comissão de Trabalho, Administração e
Serviço Público e, em seguida, pela Comissão de Constituição e Justiça e
de Cidadania.
Em nota de apoio ao
Projeto, a Rede de Justiça Criminal destacou que o Estado brasileiro, em matéria
de segurança pública e justiça criminal, tem historicamente agido de forma
reativa e emergencial, sem um planejamento adequado embasado em dados
consistentes e sem mecanismos que possibilitem a revisão das práticas
correntes diante da constatação de falhas e abusos.
Nesse sentido,
submeter a política criminal às mesmas diretrizes que impulsionaram a
legislação sobre responsabilidade fiscal – planejamento, transparência,
controle e responsabilização – contribuiria para a superação do atual
estado de persistência no erro de um sistema em que se perpetuam práticas
institucionais discriminatórias e ineficientes.
É fundamental levar em
consideração, também, o componente de responsabilidade do Poder Judiciário
nessa seara. Embora seja de conhecimento geral a incompatibilidade entre
as condições das prisões brasileiras e a perspectiva ressocializadora
idealista presente na Lei de Execução Penal, opera-se na prática como se
ela correspondesse à realidade, resultando na produção em série de decisões
que contribuem para agravar o quadro atual de violação sistemática de
direitos. Nesse contexto, a discussão sobre a responsabilidade
político-criminal surge como um possível caminho para o regate da
racionalidade no debate legislativo e, ao mesmo tempo, como um meio de
redução de danos com o potencial de provocar fissuras na cultura do
aprisionamento, até que transformações maiores sejam possíveis.
Nas palavras de Salo de
Carvalho: “O estado atual dos cárceres diz da forma como a sociedade
brasileira resolveu historicamente suas questões sociais, étnicas, culturais,
ou seja, pela via da exclusão, da neutralização, da anulação, da
alteridade. (…) Neste quadro, a imposição de critérios de responsabilidade
e de responsabilização do legislador quando de sua adesão ao projeto
punitivista pode minimizar os impactos do embevecimento com a cultura do
encarceramento em massa” (CARVALHO, Salo de. Em defesa da lei de
responsabilidade político-criminal. Boletim IBCCrim, São Paulo, ano 16, n.
193, p. 8-9, dez. 2008).
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