domingo, 25 de março de 2018

Mercado de água pode disparar preços mesmo sem privatização, alerta geólogo que batizou Aquífero Guarani.



Sistema Aquífero Guarani está presente em territórios do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai   | Foto: Reprodução/Wikimedia

Fernanda Canofre.
Um dos maiores reservatórios de água doce do planeta, o Aquífero Guarani, voltou às manchetes esse ano, depois que Michel Temer (MDB) se reuniu em um jantar, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, com executivos da Nestlé e da Coca-Cola.
Notícias de que o emedebista estaria negociando a privatização das águas brasileiras começaram a circular pelas redes.
Mas isso seria possível?
O Guarani foi batizado assim pelo geólogo uruguaio Danilo Anton, em homenagem aos povos indígenas que habitaram (e ainda resistem) na região abrangida por ele, no Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai. Em 1996, na época de sua descoberta, ele chegou a ser considerado o maior do mundo. Com o tempo, porém, estudos provaram que, ao invés de ser o “mar doce” que poderia abastecer a população brasileira por 2,5 mil anos, ainda há muito para se entender sobre as dimensões do sistema aquífero dentro de sua área.
Anton diz que para que a venda fosse possível, precisaria ser articulado com as leis dos quatro países. O que acha difícil que aconteça.
Porém, paralelo aos boatos sobre o Guarani, o Senado brasileiro abriu uma consulta pública para o projeto de lei 495, do senador cearense Tasso Jereissati (PSDB). Reeditando uma proposta de 1997, ele propõe alterar a Política Nacional de Recursos Hídricos e criação de mercados de água. O texto fala que a introdução dos mercados de água na lei 9433 é “medida necessária para promover alocação eficiente dos recursos hídricos em atividades que gerem mais emprego e renda, de modo a otimizar os benefícios socioambientais e econômicos”.
No site do Senado, mais de 60 mil pessoas já votaram contra a proposta. Menos de 600 são favoráveis. O secretário da Federação Nacional dos Urbanitários chegou a dizer que, na prática, a lei deixa claro que “quem tem dinheiro, compra e usa água. Quem não tem, vai passar por dificuldade”.
O Sul21 conversou com Anton sobre as ameaças que podem afetar o Sistema Aquífero Guarani:
Sul21: Como o senhor começou a estudar o Aquífero? O que o interessava então?
Danilo Anton: Comecei a estudar as formações gondwânica quando trabalhava no Instituto Geológico do Uruguai, no final de década de 1960. Trabalhei em formações arenosas quaternárias na Arábia Saudita por vários anos (geneticamente similares a formação Botucatu). Pude visitar perfurações profundas em São Paulo, no início da década de 1980. Trabalhando no IDRC do Canadá estive a cargo do programa Water and Environment (Água e Meio-Ambiente), focado em águas subterrâneas. Desenvolvi projetos hidrogeológicos na América Latina, incluindo Brasil (São Paulo, Recife), que me permitiram conhecer os aquíferos na maioria dos países latino-americanos. O aquífero Botucatu (em Tacuarembó, no Uruguai) requeria uma análise internacional, por isso, me propus a estudá-lo e tive financiamento do Centro Internacional para Desenvolvimento de Pesquisa (IDRC), onde trabalhava.
Sul21: És conhecido por ser o pesquisador que o batizou. Por que o nome “Guarani”?
Danilo: O aquífero ocupa aproximadamente o território onde se encontravam (e ainda se encontram) as comunidades guaranis dos quatro países (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai). Eu havia desenvolvido vários projetos com as comunidades guaranis da região, como parte das minhas funções como oficial do programa do IDRC.
Sul21: O que essa reserva significa hoje diante da forma que estamos utilizando recursos naturais?
Danilo: É uma reserva importante, que se utiliza amplamente nas zonas de afloramento para o abastecimento urbano e rural e para irrigação, tem ainda potencial termal nas zonas de maior profundidade.
Sul21: Essas águas são muito antigas, se diz que boa parte não poderia ser aproveitada. Como funciona de fato?
Danilo: Só se pode aproveitar os volumes renováveis (ou seja, apenas os caudais de recarga). Se se pretendesse bombeá-lo além do limite aumentariam os custos, a ponto de fazê-lo economicamente inviável.
Sul21: No Brasil, depois que Michel Temer participou de um jantar com o presidente da Nestlé, no Fórum Econômico Mundial, começaram a circular rumores de que ele estaria negociando a venda do sistema. É possível vender o aquífero?
Danilo: Não creio que seja possível, no marco das leis dos quatro países. Nas zonas onde o aquífero aflora, milhares de produtores já o utilizam, incluindo populações. Talvez poderiam fazer concessões de zonas termais. Não sei se a constituição do Brasil e dos estados permitem.
Sul21: Quais os riscos que esses sistemas correm, do ponto de vista econômico e de meio-ambiente?
Danilo: O principal risco é de contaminação nas zonas de recarga (afloramento). Outro risco pode ser o excesso de bombeamento (por exemplo, em Ribeirão Preto ou em Santana do Livramento).
Sul21: O senador Tasso Jereissati (PSDB) apresentou proposta para alterar a Política Nacional de Recursos Hídricos, “para introduzir os mercados de água como instrumento destinado a promover alocação mais eficiente dos recursos hídricos” e para criar “mercados de água”. Há riscos junto as políticas de proteção também? Como está isso no Uruguai?
Danilo: Os mercados de água são muito perigosos, porque os recursos hídricos são muito importantes, tanto para o abastecimento urbano, como para o rural e a produção agropecuária. Caudais, que hoje se obtêm com baixo custo, poderiam aumentar seus preços sem cair nas mãos de empresas privadas. Isso poderia ser muito prejudicial para muita gente que depende deles.

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