Deputados ligados à bancada religiosa articulam aumentar o alcance
da proposta que permite ao Congresso anular decisões do Judiciário.
Parlamentares querem a prerrogativa de impedir a aprovação de temas
controversos, como o casamento homossexual.
KARLA CORREIA.
Ainda
sob a ressaca da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que
descriminalizou o aborto de anencéfalos, a bancada evangélica na Câmara
dos Deputados se articula para aumentar o alcance de uma proposta de
emenda à Constituição (PEC) aprovada pela Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ) da Casa que autoriza o Congresso a sustar atos normativos
do Judiciário "que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da
delegação legislativa".
Os evangélicos veem na PEC a oportunidade de dar
ao Legislativo a capacidade de anular decisões do Judiciário que, em
sua interpretação, tenham invadido a prerrogativa de legislar. Além da
autorização do aborto de fetos com malformação, por trás desse interesse
estão na mira da bancada posicionamentos como o que reconheceu as
uniões estáveis para casais do mesmo sexo.
"Não consigo entender por
que o Judiciário tem que ter mais poder do que os demais Poderes. O
Supremo não é infalível, ele pode errar e nós devemos estar atentos para
corrigir esses erros", argumenta o presidente da Frente Parlamentar
Evangélica, deputado João Campos (PSDB-GO). Na página que a frente
mantém na internet, a contrariedade em relação ao aborto e à união de
casais homossexuais são temas frequentes. O texto mais recente,
publicado em 25 de abril, reproduz discurso de Campos em plenário que
trata justamente da PEC.
A disposição dos evangélicos se alimenta
também de um considerável desconforto do Legislativo em relação a
decisões do Supremo que se adiantaram ao posicionamento do Congresso —
caso, por exemplo, das regras de fidelidade partidária. Não à toa, a CCJ
aprovou por unanimidade o relatório sobre a admissibilidade da PEC,
situação relativamente rara na comissão. "O Judiciário tem legislado com
frequência e isso não pode acontecer, é algo que fere o equilíbrio
entre os Poderes", observa o autor da proposta, deputado Nazareno
Fonteles (PT-PI).
Hoje, a Constituição dá ao Congresso o poder de
sustar atos normativos do Executivo que são considerados fora de sua
atribuição normativa. O texto da Carta, contudo, não prevê a mesma
possibilidade em relação ao Judiciário. É esse o objetivo da PEC. Na
avaliação de Fonteles, essa "lacuna" criaria uma situação de
desigualdade na relação entre os Poderes.
"O que o Supremo tem feito é
interpretar a Constituição contra a própria Constituição. Se o STF
legisla, ele fere a cláusula pétrea que impõe a separação entre os
Poderes e, sem dúvida, coloca em risco o Legislativo", acrescenta
Fonteles.
O relator da matéria, o deputado Nelson Marchezan Júnior
(PSDB-RS), discorda da possibilidade de o Congresso interferir em
decisões da Justiça. "Existem posições inadequadas defendendo que o
parlamento possa simplesmente suspender decisões judiciais. Isso não
está escrito na PEC, não cabe na Constituição Federal", argumenta
Marchezan.
Para o relator, qualquer alteração no texto feita nesse
sentido poderá ser contestada judicialmente. "A emenda terá vícios
graves se aprovada nesse formato", diz o deputado. "Não se pode tirar do
Judiciário a capacidade de julgar."
Revanchismo - O presidente
da Academia Brasileira de Direito Constitucional, Flávio Pansieri, vê na
iniciativa do Congresso um "movimento revanchista. "É o Legislativo se
afirmando como fonte normativa do direito brasileiro em razão de
decisões do Judiciário que se anteciparam ao Congresso", avalia
Pensieri. "A democracia se constrói dessa forma. É natural que o Poder
que se sente inferiorizado tenha uma reação", diz.
Apesar disso, a
proposta que tramita no Congresso não é de todo incorreta, na visão do
constitucionalista. Ele entende que a possibilidade de o Legislativo
sustar decisões do Judiciário que impuserem novas restrições do direito
ou criarem novas obrigações não afrontaria o princípio de separação dos
Poderes. Seria o caso, por exemplo, da norma de fidelidade partidária,
que criou obrigações de políticos com seus partidos ao abrir a
possibilidade da perda do mandato a quem trocar de legenda, com poucas
exceções.
"Agora, nas demais hipóteses, quando o Supremo age como um
garantidor de direitos fundamentais, como no caso dos anencéfalos ou da
união homoafetiva, não me parece viável o Legislativo interferir",
observa Pansieri. "Não há espaço para isso no nosso Estado
constitucional."
"O que o Supremo tem feito é interpretar a
Constituição contra a própria Constituição. Se o STF legisla, ele fere a
cláusula pétrea que impõe a separação entre os Poderes e, sem dúvida,
coloca em risco o Legislativo"
Nazareno Fonteles, deputado do PT-PI, autor da proposta. "Existem
posições inadequadas defendendo que o parlamento possa simplesmente
suspender decisões judiciais. Isso não está escrito na PEC, não cabe na
Constituição. A emenda terá vícios graves se aprovada nesse formato".
Nelson Marchezan Júnior, deputado do PSDB-RS, relator da PEC."Quando
o Supremo age como um garantidor de direitos fundamentais, como no caso
dos anencéfalos ou da união homoafetiva, não me parece viável o
Legislativo interferir. Não há espaço para isso no nosso Estado
constitucional".
Flávio Pansieri, presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional.
Memória - Julgamentos polêmicos:
Duas
importantes decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no
período de um ano contrariaram a Igreja Católica e entidades
evangélicas. O aborto de fetos anencéfalos e a união civil entre
homossexuais eram temas considerados tabus pelo Congresso, que, embora
tenha projetos sobre esses assuntos, se omitiu ao não aprofundar o
debate acerca dessas propostas.
Em maio do ano passado, a Suprema
Corte autorizou por unanimidade a união homoafetiva, garantindo
benefícios previdenciários e patrimoniais aos casais gays, que também
passaram a ter direito a herança quando comprovada a união estável. O
entendimento foi firmado pelo Supremo durante a análise de uma ação
proposta pelo governo do Rio de Janeiro, que alegava que o não
reconhecimento da união homoafetiva contrariava os princípios da
igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana.
Em outro
julgamento histórico, o STF decidiu, por oito votos a dois, no último 12
de abril, que as gestantes podem interromper a gravidez de anencéfalos
sem que isso seja considerado crime. Os ministros fixaram, porém, a
necessidade de laudos médicos que comprovem a malformação cerebral do
feto. Até então, o aborto só era autorizado no país em duas situações:
em caso de risco à vida da grávida e quando a mulher é vítima de
estupro.
FONTE: http://www.exercito.gov.br/web/imprensa/resenha