Luís Veríssimo
O texto que se segue mostra o contributo da filosofia para o 
esclarecimento e solução de problemas reais — como, neste caso, os 
problemas associados à legislação sobre o casamento e a adopção por 
parte de casais de pessoas do mesmo sexo. Estes dois problemas podem ser
 formulados do seguinte modo: 
- Deve a lei permitir o casamento entre homossexuais? 
- Deve a lei permitir a adopção de crianças por parte de casais homossexuais que obedeçam às outras condições  
 estabelecidas na lei da adopção? 
Embora possamos discuti-los separadamente, existe uma relação, mais 
ou menos óbvia, entre eles: ambos procuram determinar se haverá, ou não,
 alguma justificação para que existam leis discriminatórias 
relativamente aos casais homossexuais ou leis que ofereçam cobertura 
legal para práticas discriminatórias relativamente aos mesmos.
Existe uma questão de fundo comum a toda esta polémica, que pode ser 
formulada do seguinte modo: haverá algo de errado na homossexualidade? O
 debate público em torno desta questão tem-se revelado pouco produtivo 
porque os seus intervenientes se limitam, muitas vezes, a inventariar os
 seus preconceitos e a tentar manipular a opinião pública com artifícios
 retóricos. É natural que tenhamos alguns preconceitos. 
A educação que 
tivemos, a cultura em que crescemos e a sociedade em que vivemos 
veiculam várias ideias acerca dos outros e do mundo que nos rodeia, 
ideias que aceitamos como verdadeiras, a maior parte das vezes, sem 
pensar muito no assunto. No entanto, por vezes acontece que essas ideias
 são postas em causa, por aqueles que nos rodeiam, por situações que 
enfrentamos, ou simplesmente porque gostamos de as submeter a uma 
avaliação cuidadosa e imparcial 
antes
 de continuar a dar-lhes assentimento. 
Nestas circunstâncias, somos, de 
certo modo, levados a avaliá-las criticamente. Avaliar criticamente uma 
ideia é pensar que razões temos para acreditar que é verdadeira e que 
razões ou argumentos podem existir que nos mostrem que é falsa. A 
filosofia é, como se costuma dizer, “o lugar crítico da razão” e, por 
isso, exercita as nossas competências de construção e avaliação de 
argumentos. 
Essas competências são particularmente úteis neste tipo de 
debates, uma vez que aquilo que está em causa é o facto existirem, ou 
não, argumentos que possam servir de suporte para a convicção de que há 
algo na homossexualidade que legitima certas formas de discriminação. 
A oposição ao casamento e à adopção por parte de casais homossexuais baseia-se sobretudo nos seguintes argumentos: 
- Argumentos baseados na ideia de que a homossexualidade é contranatura; 
- Argumentos baseados nas intenções da divindade criadora;
- Argumentos baseados nos perigos da homossexualidade para a preservação da espécie;
- Argumentos baseados nos modelos familiares socialmente estabelecidos; 
- Argumentos baseados no interesse superior da criança. 
Ao longo deste texto procurarei expor as fragilidades destas 
estratégias argumentativas, para concluir que, na ausência de razões 
melhores a favor deste tipo de discriminação, a lei deve permitir quer o
 casamento, quer a adopção por parte de casais homossexuais. 
Na sua 
obra Elementos de Filosofia Moral, o filósofo James Rachels discute alguns dos argumentos clássicos contra a homossexualidade; muito do trabalho que 
aqui se apresenta resulta da sua leitura.
O argumento contranatura
O argumento contranatura — como de resto quase todos os argumentos 
aqui discutidos (o único argumento que se centra exclusivamente na 
adopção é o argumento baseado no interesse superior da criança) — é 
utilizado simultaneamente contra o direito de os homossexuais casarem e 
contra o seu direito de adoptarem crianças. Para refutar o argumento 
contranatura não preciso de me concentrar na questão da 
homossexualidade. Basta-me 
mostrar
 que todos os argumentos contranatura se baseiam numa ideia em comum e, 
de seguida, mostrar que essa ideia é falsa. Os argumentos contranatura 
têm a seguinte estrutura comum (em que “X” representa algo que se 
pretende avaliar do ponto de vista moral):
Versão 1
Premissa 1: Se X é contrário à natureza, então X é errado.
Premissa 2: X é contrário à natureza.
Conclusão: X é errado.
 
A forma destes argumentos é válida. Pelo que se as suas premissas 
forem verdadeiras, estamos racionalmente obrigados a aceitar as suas 
conclusões. Resta saber se as suas premissas são, de facto, verdadeiras.
 Dado que sem saber exactamente o que é representado por “X” não podemos
 estabelecer se a premissa 2 é, ou não, verdadeira, devemos concentrar a
 nossa atenção na premissa 1. A premissa 1 estabelece que ser contrário à
 natureza é uma condição suficiente para que algo seja errado. Será isto
 verdadeiro? Para responder a esta questão é necessário esclarecer o que
 se entende por contrário à natureza.
A abordagem estatística
A abordagem estatística estabelece que “contrário à natureza” deve 
ser entendido como sinónimo de “normal”, sendo “normal” interpretado 
como aquilo que é estatisticamente comum entre os membros de uma 
determinada espécie. Neste sentido, um determinado comportamento é 
normal se é frequente, comum, praticado pela maioria dos membros de uma 
espécie. Deste modo, quando alguém afirma que X é contrário à natureza 
está a afirmar que X é pouco usual. Vejamos o que aconteceria ao nosso 
argumento fazendo as devidas adaptações:
Versão 2
Premissa 1: Se X é pouco usual, então X é errado.
Premissa 2: X é pouco usual.
Conclusão: X é errado.
 
Será que ser pouco usual é uma condição suficiente para 
que algo possa ser considerado errado? Considero que não, pois, se o 
fosse, a conclusão do argumento que se segue seria verdadeira:
Versão 3
Premissa 1: Se ser albino é pouco usual, então ser albino é errado.
Premissa 2: Ser albino é pouco usual.
Conclusão: Ser albino é errado.
 
A conclusão não é verdadeira e o problema está, mais uma
 vez, na primeira premissa. A verdade é que ser pouco usual não é uma 
condição suficiente para algo ser errado, porque há muitas coisas que 
embora sejam pouco usuais, nada têm de errado — ser albino é apenas um 
exemplo de uma delas. Ser, ou não, usual, nada nos diz sobre a correcção
 moral do que quer que seja. Afinal de contas, muitas qualidades humanas
 frequentemente apreciadas, como a honestidade e o altruísmo, são raras e
 não é por isso que se tornam menos desejáveis, para não falar de 
erradas.
A abordagem teleológica
A abordagem teleológica interpreta a expressão “contrário à natureza” como sinónimo de contrário à sua finalidade (em grego: téleios).
 Esta abordagem parte da ideia de que os vários órgãos do nosso corpo 
têm determinadas finalidades — os ouvidos servem para ouvir, os olhos 
para ver, o coração para bombear o sangue ao longo do nosso corpo, etc. —
 e afirma que todo o uso desses órgãos que vá para além dessa finalidade
 é ilegítimo. 
Assim, se os órgãos genitais servem para procriar, não 
devem ser utilizados com outra finalidade. Uma relação homossexual 
implica a utilização dos órgãos sexuais para fins não reprodutivos, 
logo, a homossexualidade não é legítima. É de salientar que, por esta 
ordem de ideias, também os relacionamentos heterossexuais que não 
tivessem como finalidade a reprodução seriam ilegítimos — como, por 
exemplo, os relacionamentos entre pessoas que, por qualquer motivo, não 
querem ou não podem ter filhos. A estrutura genérica deste tipo de 
argumento pode ser expressa do seguinte modo:
Versão 4
Premissa 1: Se X implica a utilização de órgãos do corpo para fins alheios à sua finalidade, então X é errado.
Premissa 2: X implica a utilização de órgãos do corpo para fins alheios à sua finalidade.
Conclusão: X é errado.
 
Este argumento enfrenta vários problemas: 
- Parece pressupor um desígnio inteligente por detrás da 
constituição dos nossos corpos, desígnio esse que concebeu cada uma das 
suas partes com uma determinada finalidade. Uma vez que a teoria da 
evolução por selecção natural oferece uma alternativa pelo menos tão 
plausível para a nossa constituição, tal desígnio não pode ser 
simplesmente pressuposto. 
- É claro que os nossos órgãos, pelo menos a maioria, têm certas 
funções, mas não é claro que todos tenham uma, e só uma, finalidade. As 
mãos servem para agarrar e mexer, mas também para bater palmas, estalar 
os dedos, fazer sombras chinesas, etc.; qual é então a finalidade das 
mãos? Como saberemos ao certo qual é a finalidade de cada órgão do nosso
 corpo? 
- Mesmo que haja uma função principal associada a cada órgão do nosso
 corpo, não há razões para afirmar que todas as outras utilizações que 
se possam fazer desse órgão são erradas. Do facto de uma 
chave-de-parafusos ter sido concebida essencialmente para aparafusar e 
desaparafusar parafusos, não se segue que seria errado utilizá-la para 
recuperar um objecto que caiu por uma frincha estreita, por exemplo. 
Atentemos na seguinte versão do argumento para perceber melhor o que está aqui em causa:
Versão 5
Premissa 1: Se fazer sombras chinesas implica a utilização de órgãos 
do corpo para fins alheios à sua finalidade, então fazer sombras 
chinesas é errado.
Premissa 2: Fazer sombras chinesas implica a utilização de órgãos do corpo para fins alheios à sua finalidade.
Conclusão: Fazer sombras chinesas é errado.
 
Não estamos dispostos a admitir que fazer sombras 
chinesas é moralmente errado, como não estamos dispostos a admitir que 
muitas outras utilizações dos nossos órgãos são erradas. Mesmo que 
estejamos dispostos a admitir que há uma finalidade para cada órgão do 
nosso corpo, isso por si só não basta para que se considerem ilegítimas 
todas as outras utilizações que se queiram fazer deles. O facto de X 
implicar uma utilização de órgãos do corpo para fins alheios à sua 
finalidade não é uma condição suficiente para que X seja errado.
“Contrário àquilo que uma pessoa deveria ser”
Esta abordagem é a pior das três, porque é viciosamente circular. Se 
com a expressão “contrário à natureza” queremos dizer “contrário àquilo 
que uma pessoa deveria ser”, então o argumento contranatura é circular, 
pouco informativo e não oferece razão alguma para se condenar seja o que
 for. Limita-se a dizer que “se algo é errado, então é errado”. Vejamos 
de novo o argumento com as devidas traduções:
Versão 6
Premissa 1: Se X é contrário àquilo que uma pessoa deveria ser, então X é errado.
Premissa 2: X é contrário àquilo que uma pessoa deveria ser.
Conclusão: X é errado.
 
O que se pretende estabelecer é precisamente se X é, ou 
não, errado — que é o mesmo que dizer que o que se pretende saber é se X
 é, ou não, contrário àquilo que uma pessoa deveria ser. Uma vez que as 
premissas se limitam a repetir por outras palavras aquilo que pretendem 
provar, não oferecem qualquer tipo de justificação a favor da conclusão.
Deste modo, podemos concluir que, a menos que uma abordagem mais 
razoável de “contrário à natureza” possa ser apresentada, os argumentos 
contranatura estão condenados ao fracasso. Na minha opinião, uma 
abordagem da noção de “contrário à natureza” que seja simultaneamente 
plausível e útil para os propósitos deste tipo de argumento, é algo 
muito difícil de encontrar. Não é fácil traçar uma linha definida entre o
 que é pró-natura e contranatura, porque mesmo os comportamentos 
aparentemente mais distantes do mundo natural dependem crucialmente da 
natureza, dos antibióticos, aos automóveis, televisores, máquinas de 
lavar, etc. 
Se alguém estivesse disposto a admitir que o correcto seria 
voltar a um estado selvagem, então teria de admitir que o correcto seria
 “forçar a nossa natureza” e imitar os outros animais, prescindindo do 
conforto de roupas, automóveis, televisores, avanços médicos e 
tecnológicos, em suma do conforto da civilização, para viver sob a lei 
do mais forte num mundo selvagem e hostil. Não me parece que alguém 
esteja disposto a admitir isto. Logo, a ideia de correcção moral não se 
pode identificar com um retorno à natureza selvagem.
O objectivo dos argumentos contranatura é mostrar que uma determinada prática (a homossexualidade, a eutanásia, a fertilização in vitro,
 a clonagem, etc.) é errada, mas acaba sempre por não admitir que muitos
 outros comportamentos abrangidos pelo seu conceito de “contrário à 
natureza” também seriam considerados errados. Tal inconsistência mostra 
que quem recorre a este tipo de argumentos se baseia em preconceitos 
infundados e numa profunda falta de imparcialidade, uma vez que pretende
 abrir excepções convenientes para as práticas que aprova, mas usar o 
princípio para condenar as práticas a que se opõe. Se houver uma forma 
de mostrar que há algo de errado na homossexualidade, na eutanásia, na 
fertilização in vitro ou na clonagem, o caminho terá de ser outro.
O argumento da recomendação bíblica
Por um lado, a invocação de um argumento baseado nas intenções do 
criador num estado laico, representa uma violação da imparcialidade 
religiosa que a lei deve observar. A lei não deve tratar, 
injustificadamente, de forma privilegiada os interesses dos membros de 
um determinado grupo, simplesmente porque pertencem a esse grupo. Mesmo 
que seja verdade que, por motivos religiosos, muitas pessoas não comem 
carne de porco, isso não é boa razão para fazer uma lei que proíba que 
se coma carne de porco. 
Por outro lado, assumir que as intenções do criador, bem como as 
noções de certo e errado, podem ser facilmente encontradas na Bíblia, 
tem consequências difíceis de superar. O argumento é, mais ou menos, o 
seguinte:
Versão 1A (positiva)
Premissa 1: Se X é recomendado na Bíblia, X é correcto.
Premissa 2: X é recomendado na Bíblia.
Conclusão: X é correcto.
Versão 1B (negativa)
Premissa 1: Se X é condenado na Bíblia, X é errado.
Premissa 2: X é condenado na Bíblia.
Conclusão: X é errado.
 
No caso da homossexualidade aplica-se a estrutura da versão 1B (negativa), o que resultaria num argumento como este:
Versão 2
Premissa 1: Se a homossexualidade é condenada na Bíblia, a homossexualidade é errada.
Premissa 2: A homossexualidade é condenada na Bíblia.
Conclusão: A homossexualidade é errada.
 
A premissa 2 é claramente verdadeira; no Levítico 18:22 
lê-se: “Não podes deitar-te com homem como com mulher; é uma 
abominação.” Mas, apesar disso, o argumento fracassa por três razões:
- Pressupõe a existência de Deus; 
- Pressupõe que a Bíblia corresponde exactamente à palavra de Deus;
- Pressupõe que é razoável ou sequer possível seguir integralmente as proibições ou permissões presentes na Bíblia.
O terceiro aspecto é o mais danoso para o argumento original. Para 
ver porquê, assumamos a posição de quem aceita os dois primeiros 
pressupostos e vejamos as consequências implausíveis que decorrem da 
aceitação deste argumento, nomeadamente, da aceitação da premissa 1: Se X
 é condenado na Bíblia, X é errado. É isso que James Rachels procura 
fazer na seguinte passagem:
“O problema prático é que os textos sagrados, 
especialmente os mais antigos, dão-nos muito mais do que pedimos. Poucas
 pessoas terão realmente lido o Levítico, mas, os que o fizeram, 
verificaram que além de proibir a homossexualidade, fornece instruções 
pormenorizadas para tratar a lepra, requisitos detalhados sobre 
sacrifícios pelo fogo e procedimentos complexos para lidar com mulheres 
menstruadas. Há um número surpreendente de regras sobre as filhas de 
sacerdotes, inclusivamente a anotação de que se a filha de um sacerdote 
“se prostituir” deverá ser queimada viva (21:9). O Levítico proíbe a 
ingestão de gorduras (7:23), proíbe uma mulher de ir à missa até 42 dias
 depois de dar à luz (12:4-5) e proíbe ainda ver o nosso tio despido. 
Esta última circunstância é, por acaso, igualmente chamada uma 
abominação (18:14, 26). Diz também que a barba deve ter uma forma 
quadrada (19:27) e que devemos comprar escravos em estados vizinhos 
(25:44). Há muito mais, mas isto basta para ilustrar a ideia.
O problema é que não podemos concluir que a homossexualidade é uma 
abominação simplesmente porque isso é dito no Levítico, a menos que 
estejamos igualmente dispostos a concluir que as outras instruções são 
exigências morais; alguém que tentasse viver segundo todas estas regras 
no século XXI ficaria maluco. Poderíamos, é claro, conceder que as 
regras sobre a menstruação, e as outras, eram características de uma 
cultura antiga, e não são obrigatórias para nós hoje em dia. Isso seria 
sensato. Mas se dissermos isso, a porta fica aberta para dizer o mesmo 
sobre as regras contra a homossexualidade.” (Rachels 2003: 74)
 
O nosso argumento poderia assumir o seguinte aspecto:
Versão 3
Premissa 1: Se comprar escravos em estados vizinhos é recomendado na Bíblia, comprar escravos em estados vizinhos é correcto.
Premissa 2: Comprar escravos em estados vizinhos é recomendado na Bíblia.
Conclusão: Comprar escravos em estados vizinhos é correcto.
 
A conclusão deste argumento é simplesmente inaceitável, 
porque não existe uma forma imparcial de justificar a escravatura. A 
escravatura representa a opressão de um grupo por parte de outro e, 
portanto, tem em linha de conta apenas os interesses do grupo opressor, 
desprezando os interesses do grupo oprimido. O argumento da recomendação
 bíblica implica que esta conclusão é verdadeira; logo, é fácil ver que 
há algo de muito errado com o argumento. O facto de algo ser 
recomendado, ou condenado, na Bíblia não é uma condição suficiente para 
que seja, de facto, correcto, ou errado, respectivamente.
O argumento da preservação da espécie
O argumento da preservação da espécie tem pelo menos dois pressupostos fundamentais:
- Se permitirmos o casamento e a adopção por parte de casais homossexuais, em breve toda a gente será homossexual. 
- Se algo puser em risco a preservação da espécie humana, caso toda a gente o pratique, então é errado.
Ambos os pressupostos são falsos. O primeiro estabelece que permitir o
 casamento e a adopção por parte de casais homossexuais é uma condição 
suficiente para que todos se tornem homossexuais. Neste caso, a 
homossexualidade teria a capacidade de se expandir por toda a humanidade
 pelo simples facto de ser legalmente consentida. Trata-se de uma ideia 
falsa e para o comprovar basta imaginar o que pensariam os seus 
proponentes da ideia de que o facto de permitirmos o casamento e a 
adopção por parte de casais heterossexuais é uma condição suficiente 
para que todos sejam heterossexuais. 
Se esta ideia fosse verdadeira, e 
dado que o casamento heterossexual existe há séculos, seria de esperar 
que os homossexuais não existissem. Outros exemplos poderiam ser 
avançados para ilustrar a ideia de que não é pelo facto de permitirmos o
 casamento e a adopção a um determinado grupo ou classe que todos se 
tornarão membros desse grupo ou classe. 
O segundo pressuposto sustenta que “se algo puser em risco a 
preservação da espécie humana, caso toda agente o pratique, então é 
errado”. Assim, o argumento da preservação da espécie teria mais ou 
menos esta estrutura:
Versão 1
Premissa 1: Se X puser em risco a preservação da espécie humana, caso toda a gente o pratique, então X é errado.
Premissa 2: X poria em risco a preservação da espécie humana, caso toda a gente o praticasse.
Conclusão: X é errado.
 
O problema deste argumento está na premissa 1. Há coisas
 que poriam em risco a preservação da espécie humana, caso toda a gente 
as praticasse, mas não são erradas — justamente porque são praticadas 
apenas por alguns. De resto, vejamos o que resultaria da aplicação do 
argumento ao celibato:
Versão 2
Premissa 1: Se o celibato puser em risco a preservação da espécie 
humana, caso toda a gente o pratique, então o celibato é errado.
Premissa 2: O celibato poria em risco a preservação da espécie humana, caso toda a gente o praticasse.
Conclusão: O celibato é errado.
 
Se todos fôssemos celibatários, a espécie humana 
acabaria por se extinguir; mas isso não significa que o celibato deva 
ser considerado errado ou proibido. Se todos fôssemos carpinteiros, se 
todos fôssemos biólogos, se todos fôssemos arquitectos… há muitas coisas
 que se todos fizéssemos, teriam consequências muito perigosas para a 
sobrevivência da espécie, mas nem por isso devem ser proibidas. Isto 
porque a probabilidade de todos nos tornarmos arquitectos, mesmo que o 
casamento e a adopção por parte de casais de arquitectos sejam 
permitidos, é tão baixa que não é relevante.
O argumento do modelo familiar socialmente estabelecido
Os argumentos baseados nos modelos socialmente estabelecidos têm a seguinte estrutura:
Versão 1A (positiva) 
Premissa 1: Se X está de acordo com o socialmente estabelecido, então X é correcto.
Premissa 2: X está de acordo com o socialmente estabelecido.
Conclusão: X é correcto.
Versão 1B (negativa)  
Premissa 1: Se X não está de acordo com o socialmente estabelecido, então X é errado.
Premissa 2: X não está de acordo com o socialmente estabelecido.
Conclusão: X é errado.
 
Note-se, em primeiro lugar, que a estrutura destes 
argumentos é semelhante à dos argumentos que se baseavam na autoridade 
da Bíblia; tal como neste último caso, também aqui o que quer que a 
sociedade aprove é correcto, o que quer que a sociedade reprove é 
errado. Seja o extermínio de judeus, ou a discriminação racial, desde 
que a sociedade o aprove, o acto em questão será considerado correcto. 
Esta perspectiva tem vindo a ser conhecida como relativismo cultural
 e é alvo de sérias objecções. O seu principal erro é que pretende 
extrair daquilo que as pessoas pensam acerca de um determinado assunto 
uma conclusão acerca de como as coisas, de facto, são. Compare-se o 
argumento anterior com o seguinte:
Versão 2 
Premissa 1: Se o heliocentrismo não está de acordo com o socialmente estabelecido, então o heliocentrismo é errado.
Premissa 2: O heliocentrismo não está de acordo com o socialmente estabelecido.
Conclusão: O heliocentrismo é errado.
 
Durante séculos acreditou-se erradamente que a Terra 
estava no centro do sistema solar; nesse contexto, a premissa 2 seria 
verdadeira, pelo que se aceitássemos a premissa 1, teríamos de aceitar a
 conclusão do argumento. Mas o facto de o heliocentrismo não estar de 
acordo com o socialmente estabelecido não é uma condição suficiente para
 que este esteja errado; como se veio a demonstrar mais tarde, era a 
sociedade da altura que precisava de rever as suas convicções acerca de 
astronomia, e não os poucos que se recusavam a aceitar uma ideia apenas 
porque esta gozava de um amplo apoio social.
O leitor pode dizer que o exemplo apresentado fala de astronomia, 
quando o que está aqui em causa é a correcção moral de determinadas 
práticas humanas. Mas exemplos desse domínio também podem ser 
apresentados a esse propósito. Em 1955, Martin Luther King, um 
importante reformista social norte-americano, opôs-se à discriminatória 
lei dos transportes, que obrigava os cidadãos negros a ceder o seu lugar
 aos brancos nos transportes públicos. A lei em causa era infundada, 
pois assentava em pressupostos errados acerca das diferenças raciais, 
mas era aceite pela maior parte dos norte-americanos; Martin Luther King
 chegou a estar preso por se opor a esta e a outras formas de 
discriminação racial, muito difundidas na sociedade da época. O 
argumento subjacente, neste caso, teria a seguinte configuração: 
Versão 3
Premissa 1: Se a discriminação racial nos transportes está de acordo 
com o socialmente estabelecido, então a discriminação racial nos 
transportes é correcta.
Premissa 2: A discriminação racial nos transportes está de acordo com o socialmente estabelecido.
Conclusão: A discriminação racial nos transportes é correcta.
 
A conclusão é falsa, tal como veio a reconhecer a 
sociedade norte-americana que acabou por tornar ilegal a discriminação 
racial nos transportes públicos. Martin Luther King não se limitou a 
constatar passivamente o que era socialmente aprovado, mas ao invés, 
perguntou-se que razões haveria para que a sociedade continuasse a 
aprovar aquilo que aprovava. Ao perceber que não havia uma boa 
justificação para tais práticas discriminatórias, opôs-se-lhes 
publicamente, procurando deste modo estimular o espírito crítico dos 
norte-americanos e promover o progresso social. 
Do mesmo modo, não é 
legítimo combater a homossexualidade com base no modelo familiar 
socialmente estabelecido. Se não se encontrar boas razões para 
fundamentar semelhantes práticas discriminatórias, a sociedade pode e 
deve incluir novos modelos familiares — diferentes, por certo, mas 
igualmente legítimos. 
O argumento baseado no interesse superior da criança
O argumento baseado no interesse superior da criança apela ao ponto 1
 do Artigo 3 da Convenção sobre os Direitos da Criança da Unicef:
“Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por 
instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, 
autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente
 em conta o interesse superior da criança.”
 
No entanto, depois de termos estabelecido que os argumentos contra a 
homossexualidade fracassaram na sua tentativa de mostrar que há algo de 
errado com a homossexualidade. Não percebo de que forma se pode 
justificar que é do interesse superior da criança permanecer numa 
instituição, em vez de poder pertencer a uma família que seja capaz de 
satisfazer as suas necessidades materiais e afectivas. 
A resposta que 
encontro nas discussões informais acerca deste assunto é invariavelmente
 a mesma: mesmo que nada haja de errado na homossexualidade, a sociedade
 ainda não está preparada para lidar com este tipo de paternidade e, por
 isso, a criança será alvo de olhares depreciativos e de chacota, que 
acabarão por se reflectir de forma negativa no seu desenvolvimento. Eis a
 forma do argumento:
Versão 1
Premissa 1: Se X pode fazer com que crianças sejam alvo de chacota, o
 que acabará por se reflectir de forma negativa no seu desenvolvimento, 
então X deve ser proibido.
Premissa 2: X pode fazer com que crianças sejam alvo de chacota, o que 
acabará por se reflectir de forma negativa no seu desenvolvimento.
Conclusão: X deve ser proibido.
 
Se aceitarmos este argumento, estamos sujeitos a um 
número indefinidamente grande de proibições disparatadas, pois 
praticamente tudo pode servir de pretexto para que se faça troça de 
alguém. Compare-se este argumento com o seguinte:
Versão 2
Premissa 1: Se o uso de jeans por parte de mulheres pode fazer
 com que crianças sejam alvo de chacota, o que acabará por se reflectir 
de forma negativa no seu desenvolvimento, então o uso de jeans por parte de mulheres deve ser proibido.
Premissa 2: O uso de jeans por parte de mulheres pode fazer com 
que crianças sejam alvo de chacota, o que acabará por se reflectir de 
forma negativa no seu desenvolvimento.
Conclusão: O uso de jeans por parte de mulheres deve ser proibido.
 
É possível que o facto de a mãe de alguém usar jeans já tenha servido para fazer pouco dessa pessoa; contudo, daqui não se segue que devemos proibir as mulheres de usar jeans.
 O facto de algo poder conduzir à chacota não é uma razão suficiente 
para ser proibido (pense-se no que aconteceria à liberdade de 
expressão). O que é verdadeiramente importante é preparar as crianças e 
os jovens para pensarem criticamente sobre os insultos e provocações que
 lhes são dirigidos; deste modo, poderão constatar que, em certas 
situações, não há qualquer fundamento para tais atitudes, que devem 
assim ser desvalorizadas.
Afinal de contas, há algum tempo, a sociedade 
não estava preparada para o fim da escravatura, para o voto das 
mulheres, para o emprego feminino, para o divórcio, etc., e como tal, 
todas estas ideias podiam ser ridicularizadas em muitos sectores da 
sociedade; mas daqui não se segue que todas estas coisas deviam ter sido
 proibidas. O facto é que havia boas razões para levar a cabo essas 
reformas, mesmo que isso implicasse que algumas pessoas iriam levar mais
 tempo a aceitá-las e, como tal, ridicularizassem aqueles que defendiam 
estas ideias. Aliás, qualquer reforma social implica importantes ajustes
 em vários sectores da sociedade. O conformismo impede o progresso 
social e não é uma solução viável. 
O que temos de fazer é pensar se há 
boas razões para se fazer essa reforma, ou não. Em caso afirmativo, 
resta encontrar as melhores formas de a efectivar, esclarecendo a 
opinião pública acerca dessas razões. Julgo que isso poderia ser o 
suficiente para minimizar os possíveis danos para o desenvolvimento da 
criança de crescer numa família pouco convencional. 
Mesmo que a 
sociedade demorasse tempo a admitir o seu erro, uma educação crítica 
acabaria por resultar na consciência de que mesmo que a maioria ainda 
não o tenha reconhecido, a razão está do lado daqueles que nada vêem de 
errado no facto de se ser adoptado por uma família homossexual. Julgo 
que aqui seria prudente adoptar uma postura semelhante àquela que 
Fernando Pessoa expressa quando afirma: “Tenho prazer em ser vencido 
quando quem me vence é a razão, seja quem for o seu procurador”.  
Conclusão
Tanto quanto me foi possível analisar, não há boas razões para 
considerar que há algo de errado com a homossexualidade, nem boas razões
 para que existam leis discriminatórias relativamente aos casais 
homossexuais ou leis que ofereçam cobertura legal para práticas 
discriminatórias relativamente aos mesmos. 
Nesta matéria, como em muitas
 outras, é importante que a discussão se apoie numa reflexão cuidadosa e
 honesta e não em opiniões infundadas. A filosofia caracteriza-se 
justamente por uma atitude crítica, o que implica uma avaliação rigorosa
 e imparcial dos argumentos e razões que podem ser apresentados a favor e
 contra uma determinada ideia; por isso, pode ser uma ferramenta muito 
útil no esclarecimento e solução deste tipo de disputas.
Bibliografia
- Madeira, P. 2006. Homossexuais: casamento e adopção. 
 Crítica, 8 de Setembro.
- Rachels, J. 2003. A Questão da Homossexualidade. In Elementos de Filosofia Moral. Trad. F. J. A. Gonçalves. 
 Lisboa: Gradiva, 2004.
FONTE: http://criticanarede.com/homossexualidade.html