Crédito : André Giorgi |
Do
IG - "Eu vou virar mulher". Foi com essa afirmação meio fora do ritmo
que um estudante de composição na Universidade do Estado de São Paulo
(Unesp) informou aos colegas que começaria a tomar hormônios para
encontrar a sua identidade sexual. A garota que agora responde por
Beatriz entrou na faculdade ainda como um menino e fez a revelação à sua
turma no fim do primeiro semestre.
Com a ajuda das amigas, comprou
roupas femininas e maquiagem para, no primeiro dia de aula depois das
férias de julho, chegar à universidade já vestida como Beatriz. “O
pessoal perguntava se eu tinha dado uma de Laerte”, diz a jovem, se
referindo ao cartunista que se tornou adepto do cross dressing (prática
na qual alguém passa a se vestir com figurino do sexo oposto). Vamos
omitir o nome masculino de Beatriz, porque ele é uma das reminiscências
do passado que ela prefere não dividir com (mais) ninguém.
A
segunda surpresa referente à mudança de sexo de Beatriz é que, mesmo na
pele de uma mulher, ela segue interessada sexualmente em mulheres. “Eu
gosto e sempre gostei de MENINAS”, deixa claro Beatriz Calore, de 22
anos. Há apenas um ano fazendo o tratamento de mudança de sexo, a garota
é uma prova de que orientação e identificação sexual são coisas
completamente diferentes.
Desde cedo, a estudante soube que gostava de
mulheres, mas não se sentia confortável em um corpo masculino. “Quando
era adolescente, eu via um desenho japonês sobre um colégio de lésbicas e
achava aquilo o paraíso. Queria ser uma das meninas, se relacionando
com outras meninas”, explica, rindo, a jovem violonista.
Atualmente,
após passar por uma cirurgia plástica para feminilizar o rosto, Beatriz
quer encontrar o amor, como qualquer garota, mas, além do preconceito
generalizado contra gays, ela é uma nota destoante dentro da própria
população LGBTT. “Eu perguntava para as meninas no Leskut, o Orkut das
lésbicas, se elas sairiam com uma trans e a resposta era: ‘Eu não saio
com homens’”, explica Beatriz. “As pessoas veem o que era antes e não o
que é agora”. A seguir a entrevista que ela deu ao iGay .
iG: Como sua família lidou com a sua decisão?
Beatriz:
Eu sou quase orfã. Minha mãe faleceu há uns quatro anos e meu pai não
fala comigo. Eu sei onde ele mora, ele sabe da situação em que estou,
mas não quer me ver. A última vez que o vi foi no ano passado, quando
ainda não tinha contado que eu sou... eu. Quanto ao meu padrasto, que
era o marido de minha mãe, é difícil ficar com a família dele.
Algumas
pessoas se sentem incomodadas, acham que o convívio como uma trans pode
atrapalhar a criação do filho. Minha tia também demorou para aceitar.
Ela tinha muitos preconceitos baseados em noções erradas, achando que a
prostituição era a única opção. Mas ela viu que eu não vou largar os
meus estudos para me prostituir.
iG: Quando percebeu que tinha algo de diferente em você?
Beatriz:
Quando criança, eu era bem afeminada, mas até uns sete, oito anos, eu
não sacava nada. Depois, aprendi a me relacionar com os garotos e por um
bom tempo andei com eles. Porque eu gostava e gosto de meninas.
Meninas. Na adolescência, fui passando a perceber que as coisas não eram
muito bem assim, que eu me sentia diferente. Comecei a ter interesses
diferentes.
iG: Que tipo de interesses?
Beatriz: Pode
parecer muito ridículo, mas enquanto os meninos assistiam desenhos
japoneses de ação, eu tinha me interessado muito por um que era de
romance e era sobre um colégio em que só tinha meninas lésbicas. E me
apaixonei por aquilo, pensava: “Nossa, como eu queria ser uma dessas
meninas”. Não é que eu queria ser um menino dentro desse colégio, eu
queria ser uma das alunas, se relacionando com outras alunas. Achava
aquilo um paraíso (risos).
iG: Você conseguiu lidar bem com a situação?
Beatriz:
Mais ou menos. Comecei a me sentir mal por ser homem, passei a
desprezar os homens. Uma espécie de preconceito que se voltava contra
mim, de certa maneira. E em certo momento, percebi que gostaria
realmente de ser uma mulher. Antes disso, eu tinha muitos problemas com o
meu corpo, especialmente com as reações sexuais do corpo masculino, que
eu achava que não condiziam com a maneira que eu pensava sobre o amor, o
romance, as relações. Eu achava que era algo totalmente diferente,
impulsivo, que não tinha nada a ver comigo. Depois que eu comecei a
tomar hormônio, acabou.
iG: Quando tomou a decisão de mudar para o sexo com o qual você se identifica?
Beatriz: Comecei
a fazer tratamento psicológico com 17 anos, mas não por causa disso. Eu
falava sobre essas questões com a minha psicóloga da época, mas ela não
achava que eu era trans, achava que era alguma fantasia. Depois passei
por outros profissionais até encontrar uma especializada em sexologia,
que me diagnosticou transexual e escreveu um laudo sobre a minha
situação, me encaminhando para o SUS. No ano passado, consegui começar a
tomar hormônio. E, a partir do momento em que comecei o tratamento,
comecei a contar para as pessoas que sou transexual.
iG: Você estava no meio do primeiro ano de faculdade quando tomou a decisão. Como foi contar para os colegas?
Beatriz: Durante
as férias, eu contei para os meus colegas de classe e para algumas
pessoas de outros cursos. As minhas amigas, então, me ajudaram a comprar
roupa e me ensinaram a me maquiar. No primeiro dia de aula, todo mundo
comentou e o pessoal ficava perguntando se eu tinha dado uma de Laerte.
Mas, em geral, eles entenderam bem.
iG: E como os seus amigos de infância estão lidando com a sua transição?
Beatriz: Eles
ainda têm problema para me chamar de Beatriz e me dar beijo no rosto.
Preferem apertar a minha mão e me chamar pelo que eu era. Não se
tornaram pessoas agressivas, não me tratam de maneira diferente, nem pro
bem e nem para o mal.
iG: Seus pais desconfiavam que você é trans?
Beatriz: Não.
Eu não lembro de já ter falado alguma coisa para minha mãe que desse
indícios, mas ela achou que eu era gay. Ela chegou a me perguntar
diretamente e disse que, se eu fosse homossexual, ela não teria problema
nenhum e me apoiaria. Eu disse que não era, porque eu gosto de mulher. E
é verdade. Agora, eu sou uma mulher gay, mas não no sentido que ela
estava pensando na época.
iG: Você percebe que mesmo os gays demoram a entender a sua orientação sexual?
Beatriz: Totalmente.
Eu fiz uma conta no Leskut, o Orkut de lésbicas, e tudo bem.
Disfarçava, não falava que sou trans. Daí uma menina perguntou, no chat
geral, se eu era T. Todo mundo reagiu de maneira muito estranha.
Algumas
pessoas disseram que tudo bem, mas outras acharam engraçado, estranho.
Eu já tinha perguntado em outro momento se elas sairiam com uma menina
transexual e a reposta foi: “Não, eu não saio com homem”. As pessoas
veem o que eu era antes e não o que sou agora.
iG: Você pensa em fazer cirurgia de mudança de sexo?
Beatriz: Eu
quero tirar o pênis porque para mim ele não serve para nada (risos). É
uma coisa muito inútil, de que não vou sentir absolutamente nenhuma
falta. Mas algumas pessoas resolvem fazer cirurgia, outras não. Não é
porque quer manter o pênis que ela vai deixar de ser, de pensar e de se
vestir como mulher.
iG: No que o pênis te atrapalha?
Beatriz: Estou
há 9 meses sem manifestar nada. Tipo: “Por favor, saia daí, que eu
preciso viver a minha vida sexual de uma maneira normal”. As pessoas que
querem sair com trans que não é operada quase sempre é por causa da
ideia da mulher com um pênis. Então é uma coisa fetichista.
iG: Você já teve algum relacionamento anterior?
Beatriz: Não.
Já tive um rolo uma vez, quando ainda não tinha começado o meu
tratamento, com uma travesti. Eu não tenho problema em sair com uma
menina trans. Eu a vejo apenas como uma garota. Nem lembro o que
aconteceu depois. Acho que não deu certo, né? (risos).
iG: Que outra mudança física você espera?
Beatriz: Estou
procurando uma fonoaudióloga que me ajude na transição de voz porque eu
quero poder cantar. Se for profissionalmente, melhor. É mais uma opção
para mim como musicista. Não me identifico mais com o violão, que é o
instrumento que eu toco. E o canto é super versátil, posso fazer
qualquer tipo de música. Me interesso muito pela voz em geral, até
porque ela está ligada com a minha transição.
iG: Você sonha em se casar?
Beatriz: Eu
penso a respeito. Já pensei que teria filhos, queria poder engravidar,
se fosse possível. Mas, por enquanto, é fora da realidade. Estão fazendo
testes na Rússia de transplante de útero, mas não sei se é com
transexuais ou apenas com mulheres. De qualquer forma, também penso em
adotar.
iG: Você quer ser ativista?
Beatriz: Não
tenho estilo de ativista. Se posso falar alguma coisa, falo. Acho legal
poder dividir minha experiência, mas não sou o tipo de pessoa que vai
em passeata, que milita mesmo. Me importo com a causa, me importo quando
vejo um pastor Marco Feliciano lá na Comissão de Direitos Humanos.
Tem
coisas que me preocupam e algumas que não são tão relacionadas a mim.
Por exemplo, em alguns movimentos transfeministas, enfatizam muito a
quebra da separação de gêneros, o que eu acho muito positivo, mas não me
encaixo nessa questão. Não me vejo como uma pessoa que está no meio dos
dois sexos, me vejo como mulher mesmo. Eu sou mulher e é isso aí.
iG: Como você escolheu o nome Beatriz?
Beatriz: O
primeiro critério foi que eu não queria um nome que tivesse
correspondente masculino. Não existe Beatriz masculino. Então sobraram
algumas opções e eu escolhi o mais bonito. Eu ainda não tenho RG com
esse nome, mas consegui fazer o bilhete único como Bia, com uma foto
minha. Eu fico mostrando para todo mundo (risos).