Por sugestão de Nilva de Souza, de fato um
texto que merece leitura e reflexão, especialmente para os pragmáticos
que sempre querem justificar o injustificável.
AOS QUE AINDA SABEM SONHAR.
09/06/2013 – 16:04.
O fundamental não é lutar pelo direito
de fumar maconha em paz na sala da sua casa.
O fundamental não é o
direito de andar vestida como uma vadia sem ser agredida por machos
boçais que acham que têm esse direito porque você está “disponível”.
O
fundamental não é garantir a opção de um aborto assistido para as
mulheres que foram vítimas de estupro ou que correm risco de vida.
O
fundamental não é impedir que a internação compulsória de usuários de
drogas se transforme em ferramenta de uma política de higienismo social e
eliminação estética do que enfeia a cidade.
O fundamental não é lutar
contra a venda da pena de morte e da redução da maioridade penal como
soluções finais para a violência.
O fundamental não é esculachar os
torturadores impunes da ditadura.
O fundamental não é garantir aos
indígenas remanescentes o direito à demarcação das suas reservas de
terras.
O fundamental não é o aumento de 20 centavos num transporte
público que fica a cada dia mais lotado e precário.
O fundamental é que estamos vivendo uma
brutal ofensiva do pensamento conservador, que coloca em risco muitas
décadas de conquistas civilizatórias da sociedade brasileira.
O fundamental é que sob o manto protetor
do “crescimento com redução das desigualdades” fermenta um modelo
social que reproduz – agora em escala socialmente ampliada – o que há de
pior na sociedade de consumo, individualista ao extremo, competitiva,
ostentatória e sem nenhum espaço para a solidariedade.
O fundamental é que a modesta redução da
nossa brutal desigualdade social ainda não veio acompanhada por uma
esperada redução da violência e da criminalidade, muito pelo contrário. E
não há projeto nacional de combate à violência que fuja do discurso
meramente repressivo ou da elegia à truculência policial.
O fundamental é que a democratização do
acesso ao ensino básico e à universidade por vezes deixam de ser um
instrumento de iluminação e arejamento dos indivíduos e da própria
sociedade, e são reduzidos a uma promessa de escada para a ascensão
social via títulos e diplomas, ao som de sertanejo universitário.
O fundamental é que os políticos e
grandes partidos antigamente ditos “libertários” e “de esquerda” hoje
abriram mão de disputar ideologicamente os corações e mentes dos jovens e
dos novos “incluídos sociais” e se contentam em garantir a fidelidade
dos seus votos nas urnas, a cada dois anos.
O fundamental é que os políticos e
grandes partidos antigamente ditos “sociais-democratas” já não tem nada a
oferecer à juventude além de um neo-udenismo moralista que flerta
desavergonhadamente com o autoritarismo e o fascismo mais desbragados.
O fundamental é que a promessa da militância verde e ecológica vai aos
poucos rendendo-se aos balcões de negócio da velha política partidária
ou ao marketing politicamente correto das grandes corporações.
O fundamental é que os sindicatos,
movimentos populares e organizações estudantis estão entregues a um
processo de burocratização, aparelhamento e defesa de interesses
paroquiais que os torna refratários a uma participação dinâmica,
entusiasmada e libertária.
O fundamental é que temos em São Paulo
um governo estadual que é francamente conservador e repressivo, ao lado
de um governo federal que é supostamente “progressista de coalizão”.
Mas
entre a causa da liberação da maconha e defesa da internação
compulsória, ambos escolhem a internação.
Entre as prostitutas e a
hipocrisia, ambos ficam com a hipocrisia.
Entre os índios e os
agronegócio, ambos aliam-se aos ruralistas.
Entre a velha imprensa
embolorada e a efervescência libertária da Internet, ambos namoram com a
velha mídia.
Entre o estado laico e os votos da bancada evangélica,
ambos contemporizam com o Malafaia.
Entre Jean Willys e Feliciano, ambos
ficam em cima do muro, calculando quem pode lhes render mais votos.
O fundamental é que o temor covarde em
expor à luz os crimes e julgar os aqueles agentes de estado que
torturaram e mataram durante da ditadura acabou conferindo legitimidade a
auto-anistia imposta pelos militares, muitos dos quais hoje se orgulham
publicamente dos seus crimes bárbaros – o que nos leva a crer que
voltarão a cometê-los se lhes for dada nova oportunidade.
O fundamental é que vivemos numa
sociedade que (para usar dois termos anacrônicos) vai ficando cada vez
mais bunda-mole e careta. Assustadoramente careta na política, nos
costumes e nas liberdades individuais se comparada com os sonhos
libertários dos anos 1960, ou mesmo com as esperanças democráticas dos
anos 1980. Vivemos uma grande ofensiva do coxismo: conservador nas
ideias, conformado no dia-a-dia, revoltadinho no trânsito engarrafado e
no teclado do Facebook.
O fundamental é que nenhum grupo
político no poder ou fora dele tem hoje qualquer nível mínimo de
interlocução com uma parte enorme da molecada – seja nas universidades
ou nas periferias – que não se conforma com a falta de perspectivas
minimamente interessantes dentro dessa sociedade cada vez mais bundona,
careta e medíocre.
Os mesmos indignados que se esgoelam no
mundo virtual clamando que a juventude e os estudantes “se levantem”
contra o governo e a inação da sociedade, são os primeiros a pedir que a
tropa de choque baixe a borracha nos “vagabundos” quando eles fecham a
23 de Maio e atrapalham o deslocamento dos seus SUVs rumo à happy-hour
nos Jardins.
Acuados, os políticos “de esquerda” se
horrorizam com as cenas de sacos de lixo pegando fogo no meio da rua e
se apressam a condenar na TV os atos de “vandalismo”, pois morrem de
medo que essas fogueiras causem pavor em uma classe média cada vez mais
conservadora e isso possa lhes custar preciosos votos na próxima
eleição.
Enquanto isso a molecada, no seu
saudável inconformismo, vai para as ruas defender – FUNDAMENTALMENTE – o
seu direito de sonhar com um mundo diferente.
Um mundo onde o ensino,
os trens e os ônibus sejam de qualidade e gratuitos para quem deles
precisa.
Onde os cidadãos tenham autonomia de decidir sobre o que devem e
o que não devem fumar ou beber.
Onde os índios possam nos mostrar que
existem outros modos de vida possíveis nesse planeta, fora da lógica do
agribusiness e das safras recordes.
Onde crenças e religião sejam
assunto de foro íntimo, e não políticas de Estado.
Onde cada um possa
decidir livremente com quem prefere trepar, casar e compartilhar (ou
não) a criação dos filhos.
Onde o conceito de Democracia não se resuma à
obrigação de digitar meia dúzia de números nas urnas eletrônicas a cada
dois anos.
Sempre vai haver quem prefira como
modelo de estudante exemplar aquele sujeito valoroso que trabalha na
firma das 8 da manhã às 6 da tarde, pega sem reclamar o metrô lotado,
encara mais quatro horas de aulas meia-boca numa sala cheia de alunos
sonolentos em busca de um canudo de papel, volta para casa dos pais
tarde da noite para jantar, dormir e sonhar com um cargo de gerente e um
apartamento com varanda gourmet.
Não é meu caso. Não tenho nem sombra de
dúvida de que prefiro esses inconformados que atrapalham o trânsito e
jogam pedra na polícia. Ainda que eles nos pareçam filhinhos-de-papai,
ingênuos em seus sonhos, utópicos em suas propostas, politicamente
manobráveis em suas reivindicações, irresponsavelmente seduzidos pelos
provocadores de sempre.
Desde a Antiguidade, esses jovens
ingênuos e irresponsáveis são o sal da terra, a luz do sol que impede
que a humanidade apodreça no bolor da mediocridade, na inércia do
conformismo, na falta de sentido do consumismo ostentatório, nas
milenares pilantragens travestidas de iluminação espiritual.
Esses moleques que tomam as ruas e dão a
cara para bater incomodam porque quebram vidros, depredam ônibus e
paralisam o trânsito.
Mas incomodam muito mais porque nos obrigam a
olhar para dentro das nossas próprias vidas e, nessa hora, descobrimos
que desaprendemos a sonhar.
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Link Original desta Matéria: http://mariafro.com/2013/06/09/aos-que-ainda-sabem-sonhar/