sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Plantador de soja e condenado pela Justiça de Buriti por cometer crime ambiental.

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Pé de Pequi.

Vara Única da Comarca de Buriti/ma

PROCESSO Nº: 209-88.2014.8.10.0077 (2122014)

AÇÃO : CIVIL PÚBLICA


RÉUS: ESTADO DO MARANHÃOJORGE NELSON PRESSI, SLC EMPREENDIMENTOS E AGRICULTURA LTDA .

ADVOGADO: DR. RAIMUNDO ELCIO AGUIAR DE SOUSA OAB/MA 6.162 e DR. ALEXANDRE CESAR DEL GROSSI OAB/MS 9916-B

FINALIDADE : INTIMAÇÃO dos advogados DR. RAIMUNDO ELCIO AGUIAR DE SOUSA OAB/MA 6.162 e DR. ALEXANDRE CESAR DEL GROSSI OAB/MS 9916-B, para tomarem conhecimento do inteiro teor da Sentença dos autos supracitados.

Buriti/MA, 1 de agosto de 2018.

Tayllo Vieira Monteles
Secretário Judicial
Matric. 174029

Processo nº. 209-88.2014.8.10.0077 (2122014).

SENTENÇA

RELATÓRIO.

Trata-se de AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL ajuizada pelo MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO MARAHÃO contra o ESTADO DO MARANHÃO, JORGE NELSON PRESSI e SLC EMPREENDIMENTOS E AGRICULTURA LTDA.

Segundo a inicial, arrimada em procedimento administrativo instaurado no âmbito do MPF, "(...) o primeiro requerido obteve junto à autarquia federal já citada uma autorização de desmatamento para uso alternativo nº. 2100.5.2004.00203, datada de 22/12/2004, na qual foi autorizado o desmatamento da área de 957,390 há, sendo que a área total do imóvel, aferida pelo próprio IBAMA, foi de 981,098 há, vale dizer, foi autorizado o desmatamento do equivalente a 97% da área integral da Fazenda Travessão, desprezando-se quase que a integralidade da área destinada á reserva legal, sendo, aliás, estipulada no mesmo documento referenciado como sendo de 0,000 hectares, ou seja, nenhuma".

Consigna, ainda, que nos autos do Procedimento Administrativo nº. 006/04, a SEMA-MA, forneceu ao demandado Licença de Instalação nº. 100/2004, para projeto agropecuário com aproveitamento do material lenhoso para carvoejamento.

Conforme exposto na peça inaugural, o imóvel onde efetuado o desmatamento está matriculado no cartório de registro de imóveis da comarca de Buriti, sob nº. 46/2002, do Livro nº. B-11, e era coberto por vegetação nativa diversificada, com predominância típica dos cerrados.

Sustenta, após demonstrar a legitimidade ativa do MP, a imprescritibilidade do dano ambiental etc, que o desmatamento ilegalmente autorizado foi permeado de uma série de graves irregularidades, porque "o modus operandi constatado na supressão de vegetação da Fazenda Faveira contraria até mesmo a licença fornecida pelo IBAMA, uma vez que em seu item '3' observa que fica proibido o corte/exploração de aroeira e pequi, conforme portarias 83-N de 26/09/1991 e 113/1995".

Demonstra que a espécie pequi é protegida do corte pela Portaria IBAMA nº. 113/1995, conforme previsto no art. 16. Assevera que existe obrigação legal de manter a reserva legal e obrigação de recuperá-la.

Por fim, apresenta o laudo técnico nº. 10/2011, no qual são especificadas as áreas devastadas e a necessidade de um plano de recuperação.

Requer o MP, ao final, a condenação dos requeridos a restaurar integralmente, em prazo razoável, as condições primitivas de vegetação, solo e demais propriedades naturais, sob pena de multa, chegando-se, o mais próximo possível do status quo ante, sobretudo pela restauração da vegetação de pequis; restauração da reserva legal, em sua integralidade, com todas as espécies nativas que foram ilegalmente derrubadas; que os demandados apresentem, no prazo de noventa dias, projeto de recuperação da área degradada, visando recuperar os danos ambientais, o qual deverá ser apresentado à Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Naturais do Estado do Maranhão e a esse juízo, e executado no prazo de seis meses, sob pena de multa diária de R$ 5.000,00; indenização por danos ambientais pretéritos, consistente naquilo que foi perdido em termos ambientais, até que o meio se restaure ao estado anterior, a serem averiguados em perícia judicial, para que se faça a apuração econômica de toda a extensão dos danos e sua conversão em pecúnia.

Documentos que instruíram a inicial (fls. 02/179). 

A inicial encontra-se instruída com cópia integral do inquérito civil. 

Determinada a citação (fl. 183).

Contestação apresentada pelo requerido JORGE NELSON PRESSI (fls. 193/203). Sustenta que realizou o desmatamento com as licenças ambientais expedidas pelo IBAMA E SEMA, além de ter observado a reserva legal do imóvel. Quanto a este último aspecto, demonstrou que a reserva legal foi materializada na Fazenda São Tomé, no Município de Brejo, conforme comprovado nos autos. Relativamente à derrubada de pequis, negou a autoria.

Contestação apresentada pela SLC INVESTIMENTOS AGRÍCOLAS LTDA (fls. 229/251). Alegou inépcia, sustentou ilegitimidade passiva, falta de interesse processual, prescrição. No mérito, pugnou pela improcedência do pedido. Juntou documentos.

Contestação apresentada pelo Estado do Maranhão às fls. 393/404, com argüição de ilegitimidade e necessidade de chamamento ao feito do IBAMA.

Manifestação do MP pela improcedência das preliminares arguidas pela SLC INVESTIMENTOS AGRÍCOLAS, salvo a ilegitimidade, com consequente prosseguimento do feito (fls. 410/413).

Petição apresentada SLC INVESTIMENTOS AGRÍCOLAS (fls. 417/419).

Decisão de fls. 421 rejeitou o chamamento do IBAMA à lide, além das demais preliminares, determinando a exclusão da requerida SLC INVESTIMENTOS AGRÍCOLAS do feito.

Manifestação do MP pela ausência de provas a produzir (fl. 425).

Embargados de declaração apresentados pela SLC INVESTIMENTOS AGRÍCOLAS (fls. 427/429).

Manifestação do requerido JORGE NELSON PRESSI às fls. 433/435. Não requereu dilação probatória. Sustentou ocorrência de prescrição.

Ausência de pedido de produção de provas pelo Estado do Maranhão (fl. 443).
Manifestação do MP quanto aos embargos de declaração (fls. 448/450).
Decisão de fls. 451, com rejeição dos embargos de declaração.

É o relatório. Fundamento e decido.

FUNDAMENTAÇÃO.
Desnecessária a produção de outras provas, pois há nos autos elementos suficientes ao julgamento do feito, nos termos do artigo 355, inciso I, do Código de Processo Civil.

De plano, examino a preliminar de prescrição sustentada pelo réu JORGE NELSON PRESSI para rejeitá-la, tendo em vista que a imprescritibilidade de danos ambientais é consagrada pela doutrina e jurisprudência majoritárias. Segundo precedentes do STJ, pela natureza do bem jurídico envolvido, a reparação civil ambiental assume grande amplitude, com profundas implicações na espécie de responsabilidade do poluidor. Assim sendo, além de objetiva, na forma do art. 14 da Lei 6938/81, estaria sob o manto da imprescritibilidade, por se tratar de direito inerente à vida, de caráter fundamental e essencial à afirmação dos povos. Neste sentido, inclusive o Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.421.163-SP.
Rejeito, pois, a ocorrência de prescrição.

No mérito, necessário consignar as alterações trazidas pela Lei 12.651/12, em que pese anotar que a aplicação do princípio da vedação do retrocesso ambiental e do direito subjetivo difuso adquirido são teses que a despeito de sua forte fundamentação não tem força normativa que possa afastar o novo Código Florestal, pois se por um lado tem-se que o ambiente deve ser protegido, por outro é indispensável a sua exploração de forma condizente para a própria sobrevivência humana. As normas do novo diploma legal se atêm a esta realidade, não havendo, portanto, que se falar em inconstitucionalidade por tais alegações.

Ademais, em tese, a proteção ambiental foi compatibilizada com outros direitos fundamentais, como a propriedade, a livre iniciativa, determinando que o proprietário conserve a reserva legal e a área de preservação permanente sem que haja restrições excessivas no exercício do direito de propriedade, permitindo a continuidade das atividades desenvolvidas.

Sobre esse aspecto, aliás, vale ressaltar que, na via concentrada, pende de julgamento três Ações Diretas de Inconstitucionalidade com pedidos liminares (ADIs nºs. 4901, 4902 e 4903) ajuizadas pela Procuradoria Geral da República perante o Excelso Supremo Tribunal Federal, nas quais já são questionados dispositivos do novo Código Florestal brasileiro (Lei nº 12.651/2012) relacionados às áreas de preservação permanente, à redução da reserva legal e também à anistia para quem promove degradação ambiental.

Por conseguinte, as obrigações a serem exigidas do réu deverão seguir as diretrizes do novo Código Florestal (Lei nº 12.651/12), considerado de aplicação imediata pelos tribunais pátrios.

Neste sentido:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL– PRETENSÃO DE RECONHECIMENTO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE DISPOSITIVOS LEGAIS CONTIDOS NA LEI Nº 12.651/2012 – IMPERTINÊNCIA – REGRAS AUTOAPLICÁVEIS – AJUIZAMENTO DA AÇÃO SOB ALEGAÇÃO DE DANO AMBIENTAL EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE – DESCONSIDERAÇÃO À LUZ DO ART. 62 DO NOVO CÓDIGO FLORESTAL (LEI Nº 12.651/2012)– SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA CONFIRMADA POR SEUS FUNDAMENTOS – RECURSO NÃO PROVIDO.
I- Deve ser reconhecida a impertinência da alegação quanto à inconstitucionalidade de dispositivos do novo Código Florestal vigente (Lei nº 12.651/2012, com redação dada pela Lei nº 12.272/2012), tornando-se descabido, assim, o controle difuso pretendido.

II- Impertinente o pleito voltado à condenação do réu em reparar os danos ambientais ocasionados em área de preservação permanente, vez que o imóvel de sua propriedade, em verdade, não está situado em área ambientalmente protegida, pois a nova legislação ambiental – Lei nº 12.651/2012, com redação dada pela Lei nº 12.727/2012–, alterou os limites geográficos das áreas de preservação permanente localizadas no entorno de reservatórios artificiais de água, conforme determina o art. 62 da sobredita lei. Recurso não provido. (TJSP; Apelação 0026743-14.2013.8.26.0577; Relator (a): Paulo Ayrosa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente; Foro de São José dos Campos - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/02/2018; Data de Registro: 24/02/2018). RECURSO DE APELAÇÃO EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MEIO AMBIENTE. INSTITUIÇÃO E DEMARCAÇÃO DE RESERVA LEGAL.
1. INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI Nº 12.651/12. CÓDIGO FLORESTAL. As C. Câmaras Reservadas ao Meio Ambiente tem entendido pela constitucionalidade e determinado a aplicação do código.
2. COMPENSAÇÃO COM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. Possibilidade de compensação de área de preservação permanente – APP para instituição de reserva legal, hipótese expressamente prevista no Novo Código Florestal - Lei nº 12.651/12. Propriedade rural que não possuía área de reserva legal. 3. Sentença de parcial procedência mantida. Recurso desprovido. (TJSP; Apelação 1000912-66.2016.8.26.0083; Relator (a): Marcelo Berthe; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente; Foro de Aguaí - Vara Única; Data do Julgamento: 08/02/2018; Data de Registro: 20/02/2018).

Superada a questão, verifico ainda que a decisão saneadora foi omissa em relação ao pleito de ilegitimidade passiva apresentado pelo Estado do Maranhão na contestação, o que também não pode ser acolhido.

Isso porque, descabe excluir o Estado do Maranhão da lide, exatamente porque é de sua alçada acompanhar e fiscalizar o dano ambiental apurado nestes autos.

Em que pese legitimado, não há nexo causal imputável entre o dano causado pelo outro réu e a conduta do Estado do Maranhão, sendo que a responsabilização do entre público não pode ser presumida, ainda que o dano ambiental seja objetivamente auferido. Portanto, quanto à matéria de fundo, os pedidos são procedentes tão somente em relação ao réu JORGE NELSON PRESSI.

Como estampado no relatório desta sentença, o MPMA ajuizou a Ação Civil Pública Ambiental em decorrência dos fatos apurados em Inquérito Civil, que demonstram que o réu JORGE NELSON PRESSI é proprietário rural do imóvel Fazenda Travessão, Lote 129, zona rural desta Comarca.

A ação tem por objeto a reconstituição ambiental de área indevidamente explorada pelo requerido, com aquiescência do ESTADO DO MARANHÃO, bem como restauração da reserva legal, sobretudo com a restauração de pequis indevidamente suprimidos.

Quanto à obrigação de manter reserva legal, observo que o requerido JORGE NELSON PRESSI descumpriu a exigência, em que pese tenha sustentado o contrário, não tendo apresentado prova cabal de regularização da situação, nos termos do art. 66 do Código Florestal.

Realmente, a criação da Reserva legal tem o objetivo de garantir a preservação da biodiversidade local, conter o desmatamento e incentivar as recuperações principalmente nas propriedades que já se encontravam totalmente exploradas, com pequena diminuição da capacidade produtiva.

A inobservância da regra ambiental, por si só, já corresponde a uma lesão ao meio ambiente.

Registre-se e reitere-se que, com a promulgação do Código Florestal - Lei 12.651, em 25 de maio de 2012, com as alterações da Lei 12.727/12, a composição da lide deve se fazer com a aplicação da legislação nova, à vista do disposto no artigo 493 do Código de Processo Civil.

E ainda que menos rigorosa, a legislação atual não modifica a interpretação pretoriana a respeito do tema, embasada no pilar central do ordenamento específico, isto é, o art. 225 da Constituição Federal.

Prevista já no primeiro Código Florestal de 1934, a Reserva legalé obrigatória e a Lei 12.651/12, em seu artigo 12, determina que "Todo imóvel rural deve manter área com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva legal, sem prejuízo da aplicação das normas sobre as Áreas de Preservação Permanente, observados os seguintes percentuais mínimos em relação à área do imóvel", e o inciso II prevê 20% (vinte por cento) para situações como a presente.

Como se vê, a instituição da área de reserva legal também é exigência do novo Código Florestal, "que declara bens de interesse comum as florestas e demais formas de vegetação reconhecidas de utilidade para as terras que revestem, impõe limitações ao exercício do respectivo direito de propriedade (artigo 2º) e fixa como de reserva legal a área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, delimitada nos termos do artigo 12, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa" (artigo 3º, III).

Essa área de reserva legal, de pelo menos 20% (vinte por cento) da área total da propriedade (artigo 12, II), pode ser utilizada sob regime de manejo florestal sustentável (artigo 20), e sua localização deve ser aprovada pelo órgão ambiental estadual integrante do Sisnama ou instituição por ele habilitada, no caso a SEMA, vinculada ao Estado do Maranhão.

Neste sentido, cito precedente recente do TJSP:
II- A instituição de 20% de área de reserva legal, exigência da então Lei nº 4.771/65, também é feita pela Lei nº 12.651/2012 que a revogou, mas agora com a instituição de novas regras, sendo, portanto, plenamente autorizado o cômputo da área de APP na reserva legal, desde que preenchidos os requisitos do art. 15 da aludida lei. Ademais, a área de reserva legal pode ser utilizada sob regime de manejo florestal sustentável, conforme preceitua o art. 20 da atual lei, sendo que sua localização deve ser aprovada pelo órgão ambiental competente e, quanto à regularização, esta poderá se dar na forma de recomposição, permissão de regeneração natural ou compensação (art. 66), atentando-se para os novos prazos concedidos para a recuperação e realização da reserva legal (arts. 29 e seguintes do Novo Código Florestal). (TJSP; Apelação 0003457-45.2014.8.26.0456; Relator (a): Paulo Ayrosa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente; Foro de Pirapozinho - 1ª Vara Judicial; Data do Julgamento: 22/02/2018; Data de Registro: 24/02/2018).

Assim, por ser uma obrigação propter rem, cabe ao proprietário cumprir a obrigação de averbar a reserva legaldo seu imóvel.

Note-se que a reserva legal possui caráter preventivo (objetivo de evitar possíveis danos ambientais), sendo certo que ela deve ser averbada à margem do registro do imóvel também nos casos em que não há evidência de degradação florestal.

Neste sentido é pacífica a jurisprudência do C. STJ, conforme se vê do seguinte julgado da lavra do Ministro Benedito Gonçalves, cuja ementa segue transcrita:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DANOAMBIENTAL. REPARAÇÃOINTEGRAL DOS DANOS. NATUREZA PROPTER REM. CUMULAÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER, DE NÃO FAZER E DE INDENIZAR. POSSIBILIDADE. 1. A jurisprudência do STJ está firmada no sentido de que a necessidade de reparaçãointegral da lesão causada ao meio ambiente permite a cumulação de obrigações de fazer, de não fazer e de indenizar, que têm natureza propter rem. Precedentes: REsp 1.178.294/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, j. 10/8/2010; REsp 1.115.555/MG, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, j. 15/2/2011; AgRg no REsp 1170532/MG, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, j. 24/8/2010; REsp 605.323/MG, Rel. para acórdão Ministro Teori Albino Zavascki, j. 18/8/2005, entre outros. 2. Agravo regimental não provido"(AgRg no REsp 1.254.935/SC, 1ª Turma, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, j. 20/03/2014, DJe 28/03/2014).

Quanto à ausência de reserva legal e aos danos causados, o laudo técnico nº. 10/2011 (fls. 139/141), elaborado unilateralmente por servidor da Procuradoria da República do Estado do Maranhãodemonstra integralmente a sua existência, além de relacionar as medidas necessárias para reparaçãoda área degradada.

Apesar de ter sido elaborado por uma das partes, trata-se de laudo elaborado por servidor público, com natureza de ato administrativo, sendo ônus do réu esvaziar a presunção de veracidade existente. Neste ponto, foi apresentado questionamento genérico em sede de contestação, que se revelou insuficiente, especialmente pela ausência de pedido de produção de prova por parte do requerido.

Portanto, configurado o dano, deve o proprietário restaurar a área degradada, conforme determina o Novo Código Florestal, nos seguintes termos:
Art. 17. A Reserva Legal deve ser conservada com cobertura de vegetação nativa pelo proprietário do imóvel rural, possuidor ou ocupante a qualquer título, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado.
§ 1 Admite-se a exploração econômica da Reserva Legal mediante manejo sustentável, previamente aprovado pelo órgão competente do Sisnama, de acordo com as modalidades previstas no art. 20.
§ 2 Para fins de manejo de Reserva Legal na pequena propriedade ou posse rural familiar, os órgãos integrantes do Sisnama deverão estabelecer procedimentos simplificados de elaboração, análise e aprovação de tais planos de manejo.
§ 3 É obrigatória a suspensão imediata das atividades em área de Reserva Legal desmatada irregularmente após 22 de julho de 2008.
§ 4 Sem prejuízo das sanções administrativas, cíveis e penais cabíveis, deverá ser iniciado, nas áreas de que trata o § 3 deste artigo, o processo de recomposição da Reserva Legal em até 2 (dois) anos contados a partir da data da publicação desta Lei, devendo tal processo ser concluído nos prazos estabelecidos pelo Programa de Regularização Ambiental - PRA, de que trata o art. 59.
Art. 18. A área de Reserva Legal deverá ser registrada no órgão ambiental competente por meio de inscrição no CAR de que trata o art. 29, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento, com as exceções previstas nesta Lei.
§ 1 A inscrição da Reserva Legal no CAR será feita mediante a apresentação de planta e memorial descritivo, contendo a indicação das coordenadas geográficas com pelo menos um ponto de amarração, conforme ato do Chefe do Poder Executivo.
§ 2 Na posse, a área de Reserva Legal é assegurada por termo de compromisso firmado pelo possuidor com o órgão competente do Sisnama, com força de título executivo extrajudicial, que explicite, no mínimo, a localização da área de Reserva Legal e as obrigações assumidas pelo possuidor por força do previsto nesta Lei.
§ 3 A transferência da posse implica a sub-rogação das obrigações assumidas no termo de compromisso de que trata o § 2 .
§ 4 O registro da Reserva Legal no CAR desobriga a averbação no Cartório de Registro de Imóveis, sendo que, no período entre a data da publicação desta Lei e o registro no CAR, o proprietário ou possuidor rural que desejar fazer a averbação terá direito à gratuidade deste ato.

Ademais, de acordo com o art. 3º, IV, da Lei 6.398/1981, entende-se como"poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental".

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que"O art. VII, da Lei nº 6.938/81 prevê expressamente o dever do poluidor ou predador de recuperar e/ou indenizar os danos causados, além de possibilitar o reconhecimento da responsabilidade, repise-se, objetiva, do poluidor em indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente ou aos terceiros afetados por sua atividade, como dito, independentemente da existência de culpa, consoante se infere do art. 14§ 1º, da citada lei"(REsp 578.797/RS, 1ª Turma, Rel. Ministro Luiz Fux, j. 05/08/2004, DJ 20/09/2004, p. 196).

Nessa linha também é o que preconiza a legislação constitucional e infraconstitucional, como se vê de uma leitura sistemática do art. 225§ 3º, da Constituição Federal com o art. VIII, da Lei 6.938/1981, que estabelece como princípio da Política Nacional do Meio Ambiente a"recuperação de áreas degradadas", e os arts. 4º, VI e VII e 14, § 1º, da mesma lei.

Por sua vez, o art. 4º dispõe que a Política Nacional do Meio Ambiente visará:" VI - à preservação e restauração dos recursos ambientais com vistas à sua utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida "; e" VII - à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados ".
No mesmo sentido, o art. 14 estabelece que:"Art. 14. Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores: § 1º. Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade".

Neste sentido, cito precedentes do TJSP:
RECURSO DE APELAÇÃO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – INSTITUIÇÃO DE ÁREA DE RESERVA LEGAL CUMULADA COM OBRIGAÇÕES CONSISTENTES EM RECOMPOSIÇÃO AMBIENTAL DA RESPECTIVA ÁREA RESERVADA. (...) 
1. As partes apelaram da r. sentença pela qual o D. Magistrado em ação civil pública julgou parcialmente procedentes os pedidos da ação ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, para condenar os requeridos, proprietários do imóvel rural denominado 'Fazenda Santa Clara', com cadastro no INCRA n. 635.197.579.661-1, matrícula n. 11.199, do 1º Cartório de Registro de Imóveis de São José dos Campos, a instituir reserva legal de 20% da área do imóvel objeto dos autos, com realização de todas as medidas devidas, apresentação de projeto, demarcação, inscrição no CAR e recomposição da cobertura vegetal, sob pena de multa diária de dez mil reais (limitada ao valor de cem mil reais), cumulativa para cada item descumprido e destinada ao Fundo Municipal do Meio Ambiente ou ao Fundo Estadual de Reparação de Interesses Difusos Lesados, no caso de inexistência do primeiro.
2. Admissível é o cômputo na área de reserva legal das áreas de preservação permanente do imóvel. Aplicabilidade do art. 15 do novo Código Florestal. Jurisprudência pacífica deste E. Tribunal.
3. Art. 17 da Lei n. 12.651/12 dispõe que compete ao proprietário da área a conservação da reserva com cobertura de vegetação nativa, vicejando, portanto, a pretensão ministerial de condenar os requeridos à obrigação de regenerar e de recompor a cobertura vegetal original, pois devidamente demonstrado nos autos a omissão dos acionados em tomar as medidas necessárias para a delimitação da área de reserva florestal legal, de acordo com a legislação em vigor. Mantença, in totum, da r. sentença. Recursos desprovidos. (TJSP; Apelação 0006609-97.2012.8.26.0577; Relator (a): Nogueira Diefenthaler; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente; Foro de São José dos Campos - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 14/12/2017; Data de Registro: 16/01/2018).

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Supressão de vegetação e construção em área de preservação permanente protetora de curso d'água e de nascente. Procedência dos pedidos. Cerceamento de defesa não evidenciado. Aplicação correta do art. 330, inc. I, do Código de Processo Civil. Impossibilidade jurídica do pedido afastada. Mérito. Intervenção ilícita demonstrada pelo conjunto probatório. Proteção das faixas de preservação permanente, situadas em zonas rurais ou urbanas, nos termos do art.  da Lei n. 12.651/2012. Responsabilidade ambiental de natureza objetiva (art. 14§ 1º, da Lei n. 6.938/1981) e propter rem (art. 2º, § 2º, da aludida Lei Florestal). Função ecológica e obrigatoriedade indiscutíveis (...)" (Apelação 0007690-31.2010.8.26.0099, 2ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente, Rel. Des. Paulo Alcides, j. 05/06/2014).

Em suma, independentemente das dimensões do imóvel rural, permanece a obrigação do réu de reparar os danos e recompor a área de reserva legal.

Com relação à obrigatoriedade de se registrar a reserva legal perante o Cartório de registro de Imóveis, antes da implementação do Cadastro Ambiental Rural, pelo Decreto Federal nº 8.235, de 05 de maio de 2014, a jurisprudência majoritária entendia permanecer a obrigação de averbação da área de reserva legal junto à matrícula do imóvel, porque, a exigência legal anterior já devida ter sido cumprida.

Noutros termos, o registro da reserva legal já tinha que constar da matrícula do imóvel, caracterizando estado de mora de quem não o fizera, em face da lei anterior, e mesmo que a Lei nº 12.651/2012 tenha instituído nova obrigação e novo formato de registro, isto não eliminava o cumprimento da lei anterior. Todavia, com a criação do CAR e o estabelecimento de procedimentos a serem adotados para a inscrição, registro, análise e demonstração das informações ambientais sobre os imóveis rurais, pela Instrução Normativa nº 2 do Ministério do Meio Ambiente, de 06 de maio de 2014, deve-se afastar a obrigação da averbação, conforme dispõe o art. 18, § 4º, do Novo Código Florestal.

Assim sendo, o réu JORGE NELSON PRESSI não deve mais proceder à averbação na matrícula do imóvel, mas sim à inscrição do imóvel junto ao CAR, nos termos do art. 29§ 3º, da Lei 12.651/2012, que dispõe que "a inscrição no CAR será obrigatória para todas as propriedades e posses rurais, devendo ser requerida no prazo de 1 (um) ano contado da sua implantação, prorrogável, uma única vez, por igual período por ato do Chefe do Poder Executivo".

Sobre o tema, colaciono recente precedente da jurisprudência:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESERVA LEGAL E APP. As obrigações quanto à reserva florestal legal e área de preservação permanente tem respaldo no artigo 7º, §§ e artigo 12, inciso II, da Lei nº 12.651/2012. Obrigação propter rem. Responsabilidade objetiva. A inscrição do imóvel no CAR é providência meramente declaratória e não comprova a adequação ambiental. Cabível a total aplicação da Lei nº 12.651/2012, não configurada inconstitucionalidade. Permitida a aplicação do artigo 15 do Código Florestal sempre que presentes os requisitos. O prazo e a forma de recomposição serão definidos pela autoridade ambiental. Inviável a incidência dos prazos da Lei Estadual 15.684/2015, não comprovada a formalização e homologação de Termo de Compromisso do PRA. A inscrição do imóvel no CAR afasta a necessidade de registro da reserva legal no cartório de registro de imóveis. Mantida a multa diária de mil reais. DÁ-SE PARCIAL PROVIMENTO aos apelos."(Apelação nº 0005778-98.2009.8.26.0627, Relator (a): Ruy Alberto Leme Cavalheiro; Comarca: Teodoro Sampaio; Órgão julgador: 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente; Data do julgamento: 23/03/2017; Data de registro: 29/03/2017).

No tocante à forma de recomposição, devem ser observadas as recomendações expressamente consignadas no laudo técnico de fls. 139/141.

Da mesma forma, necessária a recomposição da espécie pequi, cuja inexistência na área do imóvel objeto dos autos revela sua supressão indevida.

3. DISPOSITIVO.
Ante o exposto, ACOLHO EM PARTE os pedidos contidos na petição inicial para:

a) rejeitar a preliminar de prescrição;

b) julgar improcedente o pedido em face do ESTADO DO MARANHÃO, nos termos do art. 487I, do CPC ;

c) condenar JORGE NELSON PRESSI ao cumprimento das disposições seguintes:

i) Promover a instituição, medição, descrição e demarcação da reserva florestal legal no percentual de, no mínimo, 20% (vinte por cento) da área da Fazenda Travessão, a ser aprovada pela autoridade ambiental competente, entre as mais aptas a cumprir sua função ecológica, excluídas do percentual as área de preservação permanente;

ii) Ao cumprimento da obrigação de reconstituir a área desmatada irregularmente, com cortes de espécies protegidas, especialmente pequis, devendo ser iniciada a execução de projeto de recuperação de área degradada no prazo de 60 dias e comprovado nestes autos o cumprimento no prazo de 08 meses;

iii) Fixo o prazo de cento e vinte (120) dias para que o réu apresente ao órgão ambiental competente projeto de demarcação da área de reserva legal, e de sessenta (60) dias para comprovação da respectiva inscrição do imóvel junto ao CAR, nos termos do artigo 29§ 3º da Lei 12.651/2012;

iv) condeno o réu ao pagamento de indenização por danos ambientais pretéritos, até que haja recuperação do meio ambiente degradado, cujo valor será liquidado por arbitramento, nos termos do CPC.

Para a eventualidade do inadimplemento das obrigações impostas, fixo, para cada dia de atraso no cumprimento das prestações, multa diária de R$ 1.000,00 (mil reais), limitada a R$200.000,00 (duzentos mil reais), corrigida no momento do pagamento, devendo ser recolhida ao Fundo Estadual de Reparação dos Interesses Difusos e Coletivos.

Condeno, ainda, o réu ao pagamento das custas e despesas processuais, ficando isento de honorários advocatícios, por ser o Ministério Público o autor da ação.

Publique-se. Intimem-se. Cumpra-se.

Buriti, 20 de julho de 2018.

Juiz de Direito.


quinta-feira, 11 de outubro de 2018

STJ: municípios não podem utilizar verba do Fundef para pagar advogados.

Arte reproduz uma lousa escolar tradicional, onde está escrito o chamamento "Juntos pela Educação"
Imagem: Secom/PGR

Decisão aconteceu nesta quarta-feira e atende a posicionamento do Ministério Público Federal.

Por sete votos a um, os ministros da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiram que municípios não podem utilizar dinheiro do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) para pagar honorários advocatícios. 

Segundo entendimento do STJ, a verba deve ser utilizada exclusivamente na educação. O acórdão foi proferido na análise do Recurso Especial n. 1703697/PE e atende a posicionamento do Ministério Público Federal (MPF). Desde o ano passado, o MPF defende que os cerca de R$ 90 bilhões em precatórios devidos pela União a municípios brasileiros a título de repasse a menor do Fundef sejam utilizados apenas na educação.

O acórdão do STJ deve orientar a Justiça na análise de casos semelhantes. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, lembra que a educação é direto fundamental garantido pela Constituição. “Para financiar educação de qualidade para todos, os recursos públicos destinados à área precisam ser integralmente aplicados apenas no ensino”, diz ela, completando que o próprio MPF pode executar a decisão judicial que determina o pagamento dos precatórios aos municípios, sem a necessidade de contratação de advogados. 

Para a subprocuradora-geral da República Elizeta Ramos, coordenadora da Câmara de Direitos Sociais e Fiscalização de Atos Administrativos em Geral (1CCR) do MPF, “a correta aplicação desses valores pode revolucionar o ensino no país“. Já a subprocuradora-geral da República Maria Caetana, que também atuou no tema, em conjunto com diversos subprocuradores-gerais e com apoio do Tribunal de Contas da União, diz que “a vitoriosa é a educação brasileira. Agora vamos fiscalizar o envio deste dinheiro aos municípios e sua aplicação integral nas escolas”.

#JuntospelaEducação – Desde o ano passado, o MPF desenvolve, por meio da 1CCR, a ação coordenada #JuntospelaEducação. O objetivo é articular esforços com órgãos como MPs Estaduais e TCU para evitar que o dinheiro do Fundef seja utilizado para pagar honorários advocatícios. A ação coordenada já resultou em 500 recomendações expedidas e 25 Termos de Ajustamento de Conduta firmados. Em reunião realizada em Brasília com a presença da PGR e dos chefes de todos os MPs Estaduais em agosto deste ano, houve assinatura de memorando de entendimento em que os Ministérios Públicos definiram como prioridade a atuação conjunta para garantir a aplicação correta da verba da educação.

Histórico – Em 1999, o MPF em São Paulo propôs ação contra a União após ter constatado que os repasses financeiros que foram efetuados pelo antigo Fundef eram inferiores ao efetivamente devido. O caso, que transitou em julgado em 2015, foi concluído com decisão que condenou a União a pagar as diferenças de complementação do Fundef aos municípios. Os valores deveriam ter sido repassados pela União entre 1998 e 2006 – quando o Fundef foi substituído pelo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica).

Segundo estimativa do MPF, as cifras chegam a R$ 90 bilhões em precatórios, que devem ser pagos a mais de 3.800 municípios. Muitas dessas prefeituras contrataram advogados para executar a decisão. Os escritórios cobravam em média de 20% a 30% do valor da causa em honorários. Mas, segundo o MPF, “a utilização [da verba do Fundo] fora da destinação legal implica a imediata necessidade de recomposição do erário, ensejando a responsabilidade do gestor que deu causa ao desvio”. O entendimento tem respaldo de recente decisão do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal de Contas da União (TCU).

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quarta-feira, 10 de outubro de 2018

‘Sou resultado do movimento de luta’, diz 1ª indígena eleita deputada no Brasil.

Joênia Wapichana assume como deputada federal por Roraima em 2019. Foto: Joênia Wapichana/Direitos Reservados/Agência Brasil.
Publicado em: outubro 10, 2018
Alex Rodrigues. Da Agência Brasil.
Os 8.491 eleitores que votaram na candidata a deputada federal por Roraima Joênia Batista de Carvalho elegeram a primeira mulher indígena para a Câmara dos Deputados, desde que esta foi criada, em 1824 – ano em que a primeira Constituição brasileira foi promulgada, sem qualquer menção à existência e aos direitos dos índios brasileiros. Há 31 anos, desde que o cacique xavante Mário Juruna deixou o Congresso Nacional, em 1987, um índio não era eleito deputado federal.
Aos 43 anos, Joênia Wapichana é pioneira da causa indígena e milita desde 1997, quando se tornou a primeira mulher índia a se formar em Direito, na Universidade Federal de Roraima. Em 2008, tornou-se a primeira indígena a falar no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), defendendo a legalidade da homologação dos limites contínuos da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Após isso, viajou para os Estados Unidos, onde fez mestrado na Universidade do Arizona.
“Sou o resultado de sonhos e de investimentos de outras lideranças indígenas que planejaram ver a nós, indígenas, conquistar diversos espaços. Do movimento indígena que luta para conquistar espaços”, disse Joênia à Agência Brasil, nesta quarta-feira (11). “Nada para nós foi fácil. Nem alcançar o reconhecimento de nossa terra; nem eu me formar na faculdade de Direito; nem fazer uma defesa no STF e, muito menos, assumir este espaço tão importante e necessário no Congresso. Se sou uma pioneira, é graças aos povos indígenas, ao nosso movimento e aos esforços de cada povo e pessoa que acreditou nisso.”
Ao lutar pela demarcação das terras indígenas e pelo desenvolvimento sustentável destas reservas, Joênia decidiu disputar uma cadeira na Câmara dos Deputados ao constatar a necessidade dos povos indígenas se fazerem representados no Congresso. Filiou-se à Rede Sustentabilidade e fez campanha com pouco mais de R$ 170 mil: do Fundo Partidário, recebeu R$ 150 mil; os outros cerca de R$ 22 mil vieram de apoiadores “índios e, principalmente, não-indígenas” que contribuíram por meio de um site de financiamento coletivo. Ao conceder esta entrevista, por telefone, Joênia estava às voltas com a burocracia da prestação de contas ao Tribunal Regional Eleitoral de Roraima (TRE-RR).
Candidaturas indígenas
A vitória da advogada foi fruto de um movimento em prol do lançamento de candidaturas indígenas comprometidas com propostas de políticas públicas capazes de assegurar os direitos dos índios, como o direito à terra, à gestão sustentável de seus territórios, à saúde, à diferença entre outros. A proposta foi apresentada durante plenária do Acampamento Terra Livre 2018, no fim de abril, em Brasília.
“As candidaturas não são pela busca do prestígio e sim para conseguir igualdade de oportunidades, para decidir sobre as vidas indígenas, para discutir e decidir o que é melhor para o povo”, disse, na ocasião, Sônia Bone Guajajara, que foi candidata à vice-presidência da República pelo PSOL. Após a eleição de Joênia, a Fundação Nacional do Índio (Funai) divulgou uma reportagem em que afirma que o resultado representa uma conquista não só “para os povos originários, mas para todas as mulheres do Brasil”. A representante indígena é uma das 77 mulheres eleitas para a Câmara dos Deputados – número que representa apenas 15% do total de 513 deputados federais com assento no Congresso.
“Estou muito feliz e ciente da responsabilidade. Neste cenário político, é necessário e importante os povos indígenas estarem representados no Congresso Nacional”, afirmou a futura deputada, prometendo atuar para além da defesa dos interesses indígenas. 
“Vou levantar a bandeira dos povos indígenas, mas também a defesa dos direitos coletivos no sentido mais amplo; dos direitos sociais, como educação, saúde, segurança, meio ambiente e cultura”, acrescentou Joênia, destacando a importância de os parlamentares fiscalizarem a aplicação dos recursos públicos pelo Poder Executivo como forma de combate à corrupção e a má-utilização das verbas disponíveis. 
Propostas
Entre os projetos que pretende encampar tão logo assuma, em fevereiro de 2019, Joênia cita o Estatuto dos Povos Indígenas, “engavetado há vários anos”, e propostas que tragam melhorias para as comunidades indígenas, com ênfase em políticas públicas que promovam a autonomia feminina e a sustentabilidade das atividades tradicionais. “Muitas mulheres são as únicas responsáveis por suas famílias. É preciso empoderá-las por meio de políticas públicas que as incluam em projetos de gestão do território indígena e dos recursos naturais disponíveis. Hoje, por exemplo, há poucos programas de incentivo à agricultura indígena, atividade da qual as mulheres indígenas participam diretamente.”
Ao afirmar que recebeu muitos votos de não-índios, a advogada também cita a importância de uma solução que garanta o abastecimento energético para Roraima – único estado não interligado ao sistema nacional e que depende da energia fornecida pela Venezuela – e a reforma política.
“Não vai ser fácil nosso trabalho. Vivemos um momento crítico, em que garantias constitucionais estão em risco. Não só para os povos indígenas, cujo direito de terem suas terras demarcadas e protegidas é descumprido, mas para os direitos sociais em geral. Há uma forte tentativa de emplacar retrocessos e isso afeta a todos os cidadãos”, critica a advogada, ao se posicionar contrariamente ao teto para os investimentos públicos por 20 anos, que condiciona o aumento das despesas do Governo Federal à inflação.
Para a deputada, o fim dos conflitos por terras entre índios e não-índios só será alcançado com a demarcação das áreas reivindicadas cujos estudos antropológicos comprovarem se tratar de terras tradicionais indígenas. “Tem que concluir todos os levantamentos fundiários pendentes; fazer com que as partes compreendam a importância disso; indenizar quem tiver direito a ser indenizado e reafirmar os procedimentos legais demarcatórios, já que coloca-los em dúvida só aumenta a insegurança jurídica, tanto para as comunidades indígenas, como para as comunidades não-indígenas. A demora da conclusão destes processos é o que gera violência”, concluiu Joênia.

A elite brasileira suicida-se, por Ruben Bauer Naveira.


Nós vamos, um dia, amadurecer como povo e realizar nossa potencialidade. 
E vamos então varrer a canalha” (Darcy Ribeiro)
Essa frase curta, “a elite brasileira suicida-se”, contém dois erros.

Primeiro: jamais houve elite neste país. O que temos aqui não passa de uma classe dominante que, por preguiça intelectual, volta e meia é chamada de elite – conceito que, em qualquer país, diz respeito a um extrato social que avoca para si a responsabilidade de traçar o destino da sua nação e fazê-lo cumprir. Nunca houve nada assim no Brasil, lugar em que os horizontes da classe dominante não passam da acumulação predatória e do consumo ostentatório.

Segundo: no curto prazo, a classe dominante não corre risco de morte. Não há então nenhum suicídio iminente. Será, porém, no médio-longo prazo, que a classe dominante brasileira acabará por perceber, da pior maneira possível, que terá sido a sua própria natureza que lhe terá conduzido a seu fim.

Darcy Ribeiro sonhou com um povo que, por tomada de consciência, completava o seu processo de formação. O que ele não podia imaginar era que tal salto seria induzido de forma tão paradoxal, pela inconsequência da própria classe dominante. Mesmo que ainda demore muitos anos, o ponto-de-não-retorno foi ultrapassado, é então questão de tempo.

Antes de mais nada, nenhum país vive sem instituições, e as nossas se inviabilizam a olhos vistos. Instituições que, historicamente, foram construídas segundo os interesses da classe dominante: Charles Darwin, em sua estada no Brasil em 1832, registrou, repugnado, que “não importa a monta das acusações que possam pesar contra um homem de posses, é certo que em pouco tempo ele estará livre”.

Para que servem as instituições?

Ao menos a título formal, instituições existem para servir à sociedade e para edificar o futuro da nação. Como foi dito, no Brasil isso jamais aconteceu (como poderia, se não temos elite?) mas, pelo menos, ainda se guardavam as aparências. Agora, esfrega-se na cara da sociedade que as instituições existem tão somente para servir a si próprias.

Nossas instituições funcionam normalmente. Elas cumprem seus ritos e protocolos, executam seus orçamentos, nelas se tomam decisões e se definem políticas públicas. Mas, perante a sociedade, instituições vivem de veracidade ou, ao menos, de verossimilhança. Instituições até podem servir a si próprias enquanto fingem que servem ao bem comum, mas não podem simplesmente se cansar de fingir e estampar perante a sociedade uma realidade que ela preferiria não conhecer. Desencanto é sem volta.

As instituições brasileiras têm funcionalidade, o que elas não têm é sentido.

Para que se cumpra a antevisão de Darcy, o mais difícil já aconteceu. Graças à insegurança, cegueira, afobamento, inconsequência e ganância sem freios da classe dominante (mais uma vez passando recibo de não ser merecedora de ser vista como elite), o conjunto da sociedade vai se dando conta que essas instituições são imprestáveis, e terão que ser transmutadas.

Falta ainda algo já não tão difícil, na medida em que depende de nós: a unificação da sociedade em torno de um projeto para essa transmutação.

Ora, o atributo número um para tal projeto será sua qualidade de, justamente, unificar a sociedade. Terá que ser este o ponto de partida para a concepção do projeto.

O propósito deste artigo é apresentar três propostas concretas nesse sentido, respectivamente formuladas em torno dos conceitos de Constituinte dos Cidadãos, de Grupos de Diálogo e de Democracia Direta, as quais serão descritas ao final do texto.

A paixão não-correspondida da classe média pela classe dominante
Previsivelmente, a classe dominante lança mão do expediente clássico de dividir para governar. Por via da manipulação, ela atiçou preconceitos latentes da dita classe média, com duplo propósito: jogá-la contra as classes desfavorecidas e contra quem governasse em favor destas; e alinhá-la aos seus interesses, ainda que contrários aos dela própria.

(Nota: este processo se encontra descrito em profundidade no recente livro de Jessé de Souza, A Radiografia do Golpe: Entenda como e porque você foi enganado. Para uma introdução ao argumento de Jessé, ver https://www.facebook.com/souza.jesse225/posts/ 10203070013027649).

Muito simplificadamente, a classe média, desde sempre inconformada com os privilégios dos “de cima” (em especial o privilégio de fazer leis para serem cumpridas por todos, menos eles próprios), privilégios que ela condena da boca para fora mas que intimamente inveja e anseia para si, ficou ainda mais desconfortável a partir do momento em que os “de baixo” passaram também a contar com acesso, por mínimo que fosse, à Terra Prometida (leia-se, aos recursos do Estado). “Todo mundo mama, menos eu!”, foi como ela sentiu.

A classe média é hoje, possivelmente, a mais numerosa no país:

- a classe E são os miseráveis;

- a classe D são os pobres;

- a classe C é a classe média baixa;

- a classe B é a classe “média-média”;

- a classe A é a classe média alta.

Nenhuma dessas é classe dominante.

A classe A não são os ricos. O IBGE denomina “família de classe A” àquela cuja renda familiar seja acima de vinte salários mínimos, quase dezenove mil reais. Consideremos arbitrariamente o dobro disso: uns quarenta mil reais. Por acaso uma família com renda mensal de 40 mil reais possui helicóptero (não precisa ser jatinho)? Possui lancha esportiva (não precisa ser iate) com, claro, atracadouro próprio? Possui carro esportivo importado (um só, não precisa ser uma coleção)? Possui propriedades no exterior? Possui conta bancária no exterior com saldo equivalente a mais de um milhão de reais?

A classificação do IBGE busca, propositadamente, ocultar os ricos, diluindo-os na classe média alta.

Os ricos formam aquela que poderia ser chamada a classe AA. Arbitrariamente, estipulemos que a classe AA seja aquela cuja renda familiar esteja acima de cem mil reais. Isso são menos que 0,1% – zero vírgula um por cento – da população. E esses menos de 0,1% possuem praticamente metade de toda a riqueza nacional: eis a classe dominante.

Já a classe média, composta pelo conjunto das classes A, B e C, é numericamente tão expressiva quanto as classes desfavorecidas (as classes D e E).

De forma direta: sem a classe média, será impensável qualquer projeto para que a sociedade avoque para si as instituições e sua reconcepção.

Ocorre que a classe média não se vê como classe dominada. 

Primeiro, porque ela almeja ascender à classe dominante (como se o poder no Brasil não fosse regido pela lei maior da concentração), e ademais porque ela sempre se prestou a instrumento da classe dominante para a dominação mais ostensiva das classes desfavorecidas. Ela, dominadora dos que lhe estão abaixo, pode não se ver como dominada pelos que lhe estão acima, mas é. Guardadas as devidas proporções, a mesma desconsideração pelas pessoas – a mesma ausência de cidadania – está tanto na opressão exercida contra os “de baixo” pela instituição Polícia Militar nas periferias e favelas quanto naquela exercida contra a classe média por instituições como DETRAN, Receita, INSS, na fiscalização aos pequenos comerciantes etc.

Isso pode até não ser percebido assim. Porém, tudo o que agora se encontra em curso será um trauma e tanto para a classe média:

- a estagnação econômica do país derrubará os níveis de consumo das famílias, prejudicando sobremaneira os micro e pequenos empreendedores;

- o congelamento dos gastos públicos (PEC 55/241) terá impacto não somente sobre a saúde e educação públicas (de que a classe média tenta prescindir), mas degradará também a qualidade dos serviços públicos em áreas que lhe são caras, como mobilidade urbana e segurança;

- a reforma previdenciária desqualificará os melhores empregos (que são os da classe média), pela postergação da aposentadoria;

- a reforma trabalhista (com o virtual fim da CLT) será catastrófica para as classes desfavorecidas. Isso virá reduzir custos para os micro e pequenos empreendedores, contudo reduzirá também o poder geral de compra da população – afora que causará um crescimento da criminalidade;

- a entrega do pré-sal aos estrangeiros prejudicará o desenvolvimento do país, comprometendo a qualidade de vida das próximas gerações.

Já a classe dominante só terá a ganhar com tudo isso:

- o domínio cada vez mais direto sobre as instituições lhe permite fazer valer ao máximo os seus interesses;

- ela vive do rentismo (coisas como emprego, salário ou aposentadoria não lhe dizem respeito), de futuro glorioso agora que o gasto público foi resguardado para o pagamento dos juros da dívida pública;

- será a grande beneficiária da redução geral dos custos do trabalho (mesmo que certos segmentos industriais ainda dependam do mercado consumidor interno);

- seus laços com o Brasil limitam-se à extração de riqueza, a qual ela desfruta no exterior; ela pode assim se manter alheia à degradação das condições de vida no país.

Em adição a tudo isso, virá uma reforma tributária ainda obscura, mas de que não cabe duvidar que aliviará a carga tributária da classe dominante e pesará a mão sobre todas as demais.

A janela de oportunidade do choque de realidade.

Encontra-se assim em curso um processo que empurra a classe média para um choque de realidade, um abalo na sua visão de mundo histórica, pela qual a riqueza é o prêmio dos mais fortes, um lugar ao sol que se conquista na marra, na base do cada um por si (“farinha pouca, meu pirão primeiro”, que no Brasil pode ser lido como “Estado pouco, meu privilégio primeiro”). Visão de mundo que toma por fato natural da vida a dominação dos de baixo pelos de cima, bem como a decorrência disso, a desigualdade.

Aos dominados cabe resignar-se a essa sua condição natural. O pior dos crimes que um dominado pode cometer é afrontar seus dominadores: um escravo que enfrentasse o feitor ou capataz era torturado com os mais atrozes suplícios, e sublevações como as da Cabanagem e de Canudos foram “pacificadas” por genocídio. 

Hoje, das violências que os dominados cometam entre si a sociedade se exime com menosprezo, mas, para a menor violência cometida por um dos “de baixo” contra um dos “de cima”, cadeia não basta: a sociedade considera natural, e até bom, que a cadeia violente, desumanize e brutalize o infeliz mais e mais a cada dia, afinal bandido bom é bandido morto (o que, obviamente, não se aplica quando acontece de o criminoso ser um dos “de cima”). 

Em uma palavra: medo.

Desde 1500, somos uma sociedade em que cada um que se vire para conquistar, e defender, aquilo que for capaz de juntar. Isso não nos constitui como sociedade, no sentido pleno desse termo. Isso instila um sentimento permanente de medo de perder aquilo que se conseguiu juntar. Daí o ódio atávico à esquerda – inclusive por parte dos ex-pobres recém-ascendidos. 

Não importa que governos da esquerda tenham promovido a prosperidade e que o governo que derrubou a esquerda traga a ruína, atenuar a desigualdade seria desmanchar a ordem natural das coisas, inocular caos no mundo. A classe média tende a ver o miserável que recebe Bolsa-família e o pobre que tem acesso a Prouni, Pronatec, Minha Casa Minha Vida como gente que vai querer sempre mais (afinal, não somos todos assim?) e, como nunca houve riqueza bastante para todos (afinal, não foi sempre assim?), ela correria o risco de acabar ficando sem a dela.

Foi para afastar esse “perigo” que a classe média ocupou as ruas vestida de amarelo (não por acaso, a cor que na bandeira simboliza riqueza) e bateu suas panelas na varanda, sem se aperceber que era usada pela classe dominante para, no momento seguinte, ser traída e descartada. Essa, a paga pela sua adesão: foi por ter na classe dominante o seu ideal de vida (“a burguesia quer ficar rica”, cantava o poeta Cazuza) que a classe média sempre tomou ameaças existenciais à classe dominante como ameaças a si própria.

Oxalá esses brasileiros enxerguem que não têm a menor chance de faturar o bônus de “chegar lá” passando a fazer parte do menos de 0,1%, afinal, é matematicamente insano que 50% ou mais [da metade] da população desejem isso. Ficam sem o bônus, mas com o ônus de conviver numa sociedade envenenada, vida afora, em nome dessa sua fantasia. Muito mais gratificante será vivermos todos numa sociedade saudável, alicerçada em instituições verdadeiramente cidadãs (a começar por uma educação e uma justiça que mereçam esses nomes).

O Brasil há de acordar dessa bad trip que já se arrasta por mais de quinhentos anos. Para que possa finalmente sair dela, o que se abre a partir de agora é uma janela de oportunidade inédita na História: esse brutal choque de realidade.

Ter as suas crenças confrontadas pela realidade dos fatos é um processo penoso e doloroso para quem quer que seja. Quanto mais penoso e doloroso venha a ser sentido, mais a ele se reage pela reafirmação da crença disfuncional e pela negação da realidade dos fatos.

A classe média tenderá assim a uma maior segmentação, aqueles mais reflexivos poderão dar conta de reciclar essa mentalidade histórica enquanto que aqueles mais irreflexivos se agarrarão mais e mais às suas “verdades” de sempre (em especial a de que nada deve mudar), facilitando assim sua manipulação pela classe dominante.

Sem o apoio da classe média, a classe dominante será como que uma cabeça sem corpo. Seus braços, suas pernas, são os segmentos da classe média que se dispõem a servi-la. Sem estes, a classe dominante não passa de um gigante de pés de barro.

Por isso se pode dizer que a “elite” (aspas) brasileira comete suicídio: não bastasse estampar a iniquidade dessas instituições que ela, historicamente, impôs ao país, a classe dominante, ao predar a classe média, bota a perder os alicerces que (também historicamente) lhe dão sustentação.

Caminha o Brasil para uma ditadura fascista?

De uma democracia precária, mas minimamente funcional, o Brasil passou a uma democracia de fachada, uma farsa que só perdurará enquanto se mostrar minimamente útil à classe dominante – que aliás jamais teve qualquer vocação democrática; na célebre frase de Sérgio Buarque de Holanda, “a democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios”. Uma pseudodemocracia em estado de “guerra institucional”, com cada instituição agindo como se fosse a única, se permitindo ir contra as demais em prol da sua agenda individual em lugar de compor com elas um todo funcional, aporta mais custos que benefícios, pelo que não terá vida longa.

Em futuro próximo é assim provável uma ditadura como um regime abertamente fascista, e não necessariamente pela via de algum golpe militar à la 1964, posto terem os aparatos policial e judicial se acumpliciado numa simbiose essencialmente antidemocrática: as PMs estaduais há muito desempenham o papel repressor que no passado coube às forças armadas.

Entretanto, uma ditadura fascista tampouco teria vida longa, pois ela dependeria do grau de adesão que conseguisse angariar na classe média, o que não teria sustentação no tempo. Paradoxalmente, a opressão de uma ditadura acabaria por ser mais percebida pela classe média do que pelas classes desfavorecidas, que há muito já padecem, cotidianamente, da repressão pelo Estado.

A ditadura fascista, caso de fato advenha, será uma fase a mais a ser superada. A chave para que ela dure menos (ou nem chegue a ocorrer) reside na construção de uma alternativa para a classe média: um projeto para que o conjunto da sociedade assuma a tarefa de transmutação das instituições.

Forma, em vez de conteúdo.

Foi dito que o atributo primordial de tal projeto é ser unificador da sociedade. Ocorre que nenhum conteúdo político pode ser unificador. Qualquer unificação somente poderá se dar na forma política.

Forma, em vez de conteúdo. Água e azeite, conteúdos diferentes, não se misturam. Isso não impede que, numa receita culinária (forma), participem ingredientes como a água e o azeite (conteúdos), reunidos no propósito mais abrangente da preparação de uma comida.

Ademais, os valores da classe média brasileira estão em geral longe de ser valores de esquerda. Com o que sonha um típico brasileiro da classe C? Com um emprego assalariado digno, respaldado por um sindicato forte (visão da esquerda)? Ou com um mínimo negócio próprio, ainda que na economia informal, que no futuro possa ser passado a um filho (visão pequeno-burguesa)? Por que deveria uma visão ser mais legítima que a outra?

Imperioso e urgente é conceber uma forma de participação política capaz de acolher distintos (e mesmo antagônicos) conteúdos políticos, em prol de um propósito maior que seja unificador de tais conteúdos: levar a sociedade a assumir nossas instituições, para transmutá-las em instituições verdadeiramente cidadãs.

A travessia se fará, de um modo ou de outro. É o destino, como anteviu Darcy. Quanto mais unificada esteja a sociedade menor o custo, em sangue e em dor.

O termo “coxinha” (que neste texto estará sempre grafado entre aspas) tem origem num apelido da periferia paulistana aos soldados da polícia militar (em geral oriundos dessa mesma periferia), para ironizar o fato de que, não obstante todo o poder e opressão que são capazes de exercer, recebem baixos salários, não passando assim de iguais na servidão e na exploração pela classe dominante – pelo que não contam com alternativa melhor do que alimentar-se de frituras de balcão de botequim.

Assim, “coxinha” é aquele que se deixa usar, em nome de interesses no fundo contrários aos seus próprios. Trata-se obviamente de um termo pejorativo, que subentende uma superioridade moral por parte daquele que o usa. Já dizia Carl Gustav Jung que não se pode ajudar ninguém a mudar fazendo-o sentir-se mal. Os “coxinhas” precisam ser resgatados da órbita dos fascistas (que parecem muitos apenas porque fazem muito barulho), não deixados no mesmo saco que estes.

Ficarão de fora a priori da forma política unificadora a ser instaurada apenas aqueles conteúdos políticos que sejam exclusivistas a ponto de negar o direito à existência dos que deles divirjam: ao recusar qualquer projeto da natureza unificadora, eles próprios se autoexcluirão. Trata-se, claro, do fascismo, algo que no fundo não passa de sociopatia, como bem o descreveu Norberto Bobbio: “o fascista fala o tempo todo em corrupção. Ele acusa, insulta e agride, como se fosse puro e honesto. Mas o fascista é apenas um criminoso comum, um sociopata que faz carreira na política. No poder, essa direita não hesita em torturar, estuprar e roubar sua carteira, sua liberdade e seus direitos. Mais do que a corrupção, o fascista pratica a maldade”.

Uma nova utopia para o Brasil (três guias para sairmos do caos).

Milton Santos dizia que “a força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando conseguem identificar apenas o que os separa e não o que os une”. Há que encorajar os brasileiros, historicamente separados, à identificação daquilo que os una.

Três formas políticas de unificação, para um projeto de refazimento das instituições pela sociedade, encontram-se propostas no livro Uma Nova Utopia para o Brasil: Três guias para sairmos do caos (que pode ser livremente baixado no site www.brasilutopia.com.br):

– Uma Constituinte dos Cidadãos (não dos políticos!), inspirada na constituinte havida na Islândia em 2010-11, para o dia em que sejam retomadas as jornadas de junho de 2013, de modo a que seja a bandeira em comum que nos faltou naquela ocasião;

– Os assim chamados Grupos de Diálogo: uma metodologia a ser praticada localmente por todo o país, para, em um esforço de investigação e elucidação das raízes (que são de fundo cultural) dos conflitos sociais, encarar de frente a miséria da mentalidade brasileira; e

– A implantação da Democracia Direta como um espaço aberto a todos que queiram praticá-la, por meio de um partido político “cavalo de Tróia” que venha a romper com o monopólio do sistema político-partidário.

Muita energia vem sendo dispersada na busca de alguma solução mais imediata, como eleições diretas. Ora, de que servirão eleições diretas, se a classe dominante fará moldar a legislação eleitoral de modo a que vença o seu candidato (sem contar artimanhas como parlamentarismo)? Mesmo em um cenário otimista, em que venha a ganhar algum candidato pró-restauração da democracia, como conseguiria ele ou ela governar, se o chamado presidencialismo de coalização foi liquidado, e se instituições como o judiciário, o ministério público e a polícia estão fora de qualquer controle exterior a elas próprias, e obcecadas em impor ao país as suas agendas?

Não é mais factível uma saída institucional, posto que as instituições já se encontram pervertidas a um ponto irrecuperável. Já passa da hora de substituir essa visão de curto prazo, das soluções superficiais, por uma visão de processo histórico a médio-longo prazo.

A um povo desprovido de elite resta somente o caminho de fazer-se elite de si próprio – como nos indicou Darcy Ribeiro.

Ruben Bauer Naveira é brasileiro e não desiste do seu país; CV Lattes http://lattes.cnpq.br/5119162978665550.

Matéria publicada originalmente em 08.02.2017.