Pior que o naufrágio do comandante Schettino.
São José dos Campos é conhecida por sua fábrica de aviões, não por
seus navios. A cidade nem tem mar. Mas foi lá que se viu esta semana
(22/jan) um dos piores naufrágios da história judiciária do Brasil.
Foi
lá que a “justiça” afundou e pôs a pique mais um tanto de sua já pouca
credibilidade. Numa condução pior do que a do comandante Schettino, o
Judiciário e o Executivo pisotearam direitos de milhares de cidadãos.
Com a costumeira firmeza que a Justiça brasileira (não) age contra os
seus próprios abusos – os desvios de conduta apontados pelo CNJ só são a
ponta desse iceberg –, vimos uma ordem judicial ser cumprida com rigor.
Normalmente, quando um colarinho branco se vê nas barras dos tribunais,
logo aparece alguma teoria extraterrestre para limpar “sua barra”,
permitindo que siga em águas calmas. Em geral, valem os salamaleques
para a cobertura e os chicotes na favela.
O naufrágio do Pinheirinho horrorizou o País. As pessoas desalojadas
pelo Judiciário paulista, mediante uso de força policial
militar, ficaram a deriva em meio aos petardos, sem saber o que ocorria.
Depois viram-se como náufragos em terra “firme”, privados de suas
moradas, da proteção de seus tetos humildes e do pouco conforto que
aquelas cabines-choupanas lhes propiciavam para navegar nos mares
bravios de suas vidas atribuladas.
Todos sabiam da disputa judicial sobre o terreno. Mas ninguém ali
esperava um maremoto. Os dois poderes não “entraram de gaiatos no
navio”; comandaram o naufrágio e escreveram uma página tenebrosa
da “justiça” brasileira. Neste caso não teve “katchanga” nem jeitinho.
Não houve desculpologia nem cafuné processual, teorias tão comuns no
dia-a-dia forense. Valeu o “Cumpra-se”, com armas e tratores, que
cruzaram as ruas do Pinheirinhos como torpedos e destroyers.
Num domingo de aparente calmaria, a maré da injustiça virou, cuspiu
na cara desses dois mil brasileiros e os lançou no sentimento abissal da
perda do teto, da expulsão de seus lares. Roubaram-lhes a dignidade em
poucas horas, conquanto a União, o Estado e o Município tenham
tido anos, anos, anos, anos, anos, para resolver o grave problema social
que se anunciava, diante da inevitável (?) desocupação para
reintegração de posse.
Não sou desses que demonizam o “especulador” Naji Nahas, por estar do
outro lado dessa convulsão. Se a área realmente lhe pertencia, seria
justo privá-lo dela e ponto final? Não creio. O problema não está,
portanto, em saber se o terreno era de Nahas ou da massa falida de sua
empresa. A propriedade deve mesmo ser protegida, mediante reintegração
(quando possível) ou por justa indenização, para fins sociais.
A questão
é: por que a área não foi desapropriada pelo governo a tempo para o
assentamento daquelas famílias? Por que a Justiça paulista não
providenciou junto ao Executivo, antes da desocupação, locais condignos
para a relocação dos moradores? Por que o Estado e a Prefeitura não
forneceram meios materiais (aluguel social ou a construção de casas
populares) para aquela população antes da retirada? Por quê? A resposta é
simples. Porque aquelas pessoas não importam. São pobres e marginais.
Não entram na cartografia do poder. Não frequentam rivieras nem marinas.
Suas canoas e jangadas singram esgotos a céu aberto, poças insalubres e
fossas infectas.

Tudo foi um festival de desacertos. Entraram todos “numa barca
furada”. E não se mediu o tamanho da tempestade.
Publicamente, dizem que
estavam seguros de suas decisões. Em suas casas, não sei o que dizem..
O Judiciário estadual determinou o cumprimento imediato da ordem de
reintegração parapreservar o “prestígio e a autoridade” do Tribunal.
Mas se lixou para a decisão liminar do TRF da 3ª Região em sentido
contrário e mandou para o lixo a dignidade daqueles jurisdicionados.
Muitos abordaram o tema nas redes sociais como se tudo fosse uma disputa
de poder entre a Justiça estadual e a Justiça federal. Outros
apegaram-se a tecnicalidades de competência ou falta dela. No meio dessa
briga titânica do mar com o rochedo, ficaram os cidadãos desassistidos e
espremidos, também sem voz nem expressão. A vaidade rugiu no horizonte e
direitos ruíram aos seus pés.
O presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo é o homem da lei que
autorizou a Polícia Militar a tolher qualquer oposição à reintegração
de posse, ainda que vinda de força policial federal. Sua decisão é
alarmante: “Autorizo, para tanto, requisição ao Comando da Polícia
Militar do Estado, para o imediato cumprimento da ordem da 6ª Vara Cível
de São José dos Campos, repelindo-se qualquer óbice que venha a surgir
no curso da execução, inclusive a oposição de corporação policial
federal, somente passível de utilização quando de intervenção federal
decretada nos termos do art. 36 da Constituição Federal e mediante
requisição do Supremo Tribunal Federal, o que inexiste”. Quase o
prenúncio de um duelo.
Algo semelhante a isto aconteceu há 100 anos em Salvador. Por
desobediência a uma ordem sua, o então juiz federal da Bahia, Paulo
Fontes, mandou o Exército atacar a Polícia Militar baiana, que sitiava o
prédio do Legislativo estadual, numa crise de governabilidade. O
general Sotero de Menezes ordenou que o Forte do Mar abrisse fogo contra
a capital baiana e pôs em chamas o Palácio do Governo, a Biblioteca
Pública e o Teatro São João. Pelo menos, em janeiro de 1912, o comando
militar avisou a população civil para que desocupasse o centro da cidade
horas antes do lançamento dos obuses. Foi o “Bombardeio a Salvador”,
grave evento que opôs o senador Ruy Barbosa ao ministro J. J. Seabra.
“Comemorei” a data, o 10 de janeiro de 1912, com um post neste blog (“O Verão de 1912”).
O episódio de São Paulo mostra que as ações dos nossos
governantes continuam iguais depois de um século. Um
desembargador encorajar uma força armada contra outra, desta vez a
Polícia Militar contra a Federal, é algo de um risco tremendo! Jogar de
uma só vez milhares de pessoas na sarjeta na maior cidade brasileira não
dá para compreender nem tolerar.
Felizmente, em São Paulo, os palácios permaneceram intactos (ufa…) e
não houve combate entre corporações “legalistas”, mas chegou-se perto de
um massacre. Na verdade, houve um massacre aos direitos fundamentais
daquela gente do Pinheirinho. Moradia, dignidade da pessoa humana,
direito à propriedade, direito à integridade física, tudo foi rasgado a
bala por policiais e riscado com canetas judiciais. A PM, com seu poder
reforçado pela presidência do TJ/SP, atirou balas de borracha a esmo e
lançou bombas de efeito (i)moral contra jovens, crianças, bebês, velhos,
doentes, deficientes, toda a gente.
O prestígio da Justiça, que se quis preservar, agora está em águas
mais profundas do que as que engoliram o centenário Titanic. O estrago
no costado do Judiciário é mais extenso do que o rombo do Costa
Concordia. A vergonha de todos nós, do Judiciário, do Ministério Público
e da Polícia, deveria ser maior que a do incauto Schettino. Não espanta
que a resistência ao CNJ e às ações de “faxina ética” promovidas pela
ministra Eliana Calmon tenham vindo justamente da maior Corte estadual
do País, a de São Paulo, e que também lá tenha ocorrido esse rigor
excessivo e essa insensibilidade contra tantas pessoas humildes.
A visão das cenas do que realmente se passou no Pinheirinho não
produzem outros sentimentos senão os de horror e da mais profunda
indignação. O que fizeram com essas crianças, com esses idosos, com
esses doentes, com esses homens e mulheres de bem?! Inacreditável!
Essa grave e vergonhosa violação de direitos fundamentais precisa ser
reparada. Se não o for mediante uma intervenção federal (art. 34,
inciso VI ou VII, alínea `b`, da CF) ou num incidente de deslocamento de
competência (art. 109, V-A, da CF), que o seja perante a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, numa ação de responsabilização
internacional do País. Por menos do que isso, o Brasil já foi condenado
pela Corte da Organização dos Estados Americanos, em São José, na Costa
Rica. Veja aqui (“Mais uma batalha do Araguaia“).
Pode ser que nada disso ocorra. O Brasil é um paraíso de impunidades.
Porém, o mínimo que se espera é que sejam imediatamente
implantados programas sociais para atendimento daqueles milhares de
brasileiros. Um trabalho que deve ser acompanhado pelo Ministério
Público e pela Defensoria Pública e pelas comissões de direitos humanos
da OAB e da Assembleia Legislativa. Esses órgãos tardaram a agir e,
quando o fizeram, a tropa de choque já atropelara direitos dos artigos
5º e 6º da Constituição. O MPF, que acompanhava o problema por meio de
um inquérito civil, propôs uma ação civil pública (aqui), mas a competência federal foi rechaçada.
Por ora, o rescaldo para todo o sistema judicial é lamentável.
Primeiro, no plano geral, a Justiça perdeu o rumo. Depois, tantos que
são os escândalos e tamanha que é a morosidade, essa nau começou a fazer
água. Veio o inevitável afogamento da crença dos cidadãos de que algo
de bom pode vir de nós, profissionais do Direito. No fim, afundamos até
essa região pelágica em que se acha agora toda a Justiça do País. Não há
farol, tampouco bússola. Sequer há como voltar a bordo.
Também não
há embarcações seguras. Tampouco há terra a vista. Nem temos bons
comandantes. Hora de recolher o periscópio e emergir.
Assim talvez enxerguemos alguma coisa. A Justiça não devia ser cega. Mas
ainda é.
*VLADIMIR ARAS é mestre em Direito Público pela UFPE,
professor assistente de Processo Penal da Ufba e membro do Ministério
Público Federal.
Fonte:http://www.viomundo.com.br/politica/vladimir-aras-pior-que-o-naufragio-do- comandante-schettino.html