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domingo, 12 de novembro de 2017
Cortes no orçamento para a agricultura familiar.
A atual situação das políticas para a agricultura familiar coloca em risco uma trajetória e um pacto social que remonta ao principio dos anos 1990. Foto: Guilherme Santos/Sul21. |
A divulgação da proposta de lei orçamentária para o próximo ano ratificou o que muitos já sabiam: que a agricultura familiar não tem mais o mesmo espaço no atual pacto político nacional. Embora esta já fosse uma evidência decorrente da extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em 2016, ainda havia quem acreditasse que as políticas públicas de desenvolvimento rural poderiam ser reorganizadas e mantidas por outros órgãos, como o Ministério do Desenvolvimento Social ou a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Casa Civil, esta criada menos com a função de substituir o antigo ministério do que satisfazer a base aliada. Pois bem, os cortes no orçamento para 2018 não deixam dúvidas. A agricultura familiar foi um dos setores mais afetados.
A atual situação das políticas para a agricultura familiar coloca em risco uma trajetória e um pacto social que remonta ao principio dos anos 1990. Naquele momento, a agricultura familiar conquistou reconhecimento e legitimidade perante a sociedade. A capacidade deste segmento em produzir alimentos e absorver mão de obra, em um contexto de crise inflacionária e êxodo rural, tornou-se uma justificativa importante para a construção do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Hoje, por mais desigual que seja sua distribuição entre os próprios agricultores familiares e entre as regiões brasileiras (o sul ficando com mais da metade dos recursos, embora o nordeste detenha metade do total de estabelecimentos familiares), e apesar do fato de favorecer um modelo de especialização em commodities agrícolas, o crédito diferenciado cumpre uma função importante para a manutenção da agricultura familiar.
No entanto, como mobiliza principalmente recursos do sistema financeiro, o impacto do PRONAF nas contas públicas é menor do que geralmente se supõe (e que o governo divulga nos Planos Safra). O gasto do Estado para o próximo ano com a equalização da taxa de juros (diferença entre aquilo que o agricultor paga e a taxa que o banco ganha) deverá situar-se em torno de R$ 3 bilhões (se alcançar este valor). Em tese, este montante atenderia um público potencial de 4,3 milhões de agricultores familiares. Na prática, acompanhando a trajetória histórica, o número de estabelecimentos que acessam o crédito deve ficar em algo próximo a 700 mil. A grande maioria não acessa por razões diversas: burocracia, desconhecimento, risco de endividamento, ou mesmo porque não necessita.
Nos anos 2000, a sociedade começou a demandar mais da agricultura familiar, em particular uma resposta à pobreza, à fome e à desigualdade. À medida que se legitimava enquanto categoria social, a agricultura familiar também passou a revelar que sua conformação era muito heterogênea, abarcando um significativo contingente de agricultores pobres. E mesmo com as políticas diferenciadas de crédito, muitos destes agricultores continuavam com dificuldades para encontrar um lugar ao sol. Assim, diferentes grupos sociais desencadearam lutas específicas por reconhecimento e novas políticas de inclusão social e produtiva. Os casos mais conhecidos são aqueles dos assentados de reforma agrária e das comunidades quilombolas.
Neste momento ganharam expressão, por exemplo, as políticas de aquisição de alimentos da agricultura familiar, as quais visam assegurar segurança alimentar e nutricional para grupos sociais em situação de vulnerabilidade e/ou são direcionadas à alimentação escolar. Estas políticas se tornaram particularmente relevantes porque conseguiram conciliar o estimulo à produção agrícola com a inclusão produtiva (algo para o que as políticas de transferência de renda se mostraram mais limitadas). Além disso, elas revelaram uma capacidade inaudita para promover hábitos alimentares saudáveis e sustentáveis dentre os consumidores beneficiários. Assim, ao mesmo tempo em que os agricultores diversificaram a produção, criaram cooperativas e associações, e ampliaram a produção de alimentos orgânicos, os estudantes da rede pública, por exemplo, passaram a ter acesso à “comida de verdade”.
O fato é que, em um balanço destes vinte anos de políticas para a agricultura familiar, a primeira coisa que se destaca é o importante saldo em termos de fortalecimento deste segmento social, o que é fruto da ação do Estado, dos movimentos sociais, da academia e, sobretudo, dos próprios agricultores. Nenhum agricultor ou agricultora presente no primeiro Grito da Terra, em 1995, reivindicando atenção do governo, imaginava que o Brasil produziria neste período uma cesta com duas dezenas de programas de desenvolvimento rural.
Foram três décadas investindo recursos financeiros, trabalho, tempo e conhecimento de diferentes atores sociais para criar este arranjo. Hoje, contudo, nem o mais pessimista dos analistas que acompanharam a construção e os impactos destas políticas parece acreditar no ritmo de desconstrução das mesmas.
Além da extinção do MDA, recursos direcionados para agricultura familiar foram reduzidos sob a justificativa do ajuste fiscal. Diversas políticas foram paralisadas, reformuladas ou colocadas em revisão. O caso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) tem sido um dos mais debatidos e publicizados. Em janeiro de 2017 estimava-se uma redução de cerca de 30% nos recursos deste programa em relação à execução do ano anterior (quando foram aplicados R$ 340 milhões). No entanto, em julho já se apontava que a redução atingiria 67%. Por sua vez, uma primeira versão do projeto de lei orçamentária apresentada pelo governo reduzia o orçamento para menos de R$ 4 milhões. As reações foram imediatas. Agricultores, associações, cooperativas, sindicatos e o próprio Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) exigiram a reconstituição do orçamento.
Inicialmente, o Ministério do Desenvolvimento Social, que historicamente sempre aportou a maior fatia dos recursos, destinava apenas 750 mil reais (para uma programa de âmbito nacional!). Para muitos, o valor soou como chacota. Na última versão do orçamento, contudo, o Ministério alocou 173 milhões, fazendo com que o orçamento geral do Programa subisse para 178 milhões. Há sindicados e cooperativas comemorando a vitória. A verdade, entretanto, é que o valor ainda é muito inferior àquele investido em 2016, o qual já era considerado muito aquém do necessário. Apenas à título comparativo, nos anos de maior operação, o PAA chegou a executar (o que é diferente de orçar) quase R$ 1 bilhão. Ademais, tendo em vista a demanda ainda não suprida pelo programa, antes do impeachment o CONSEA já demandava o aumento do orçamento para 2,5 bilhões.
Criado em 2003, no primeiro ano do Governo Lula, o PAA é internacionalmente reconhecido como uma das principais inovações em termos de políticas públicas para a agricultura familiar. Agências e organizações de cooperação para o desenvolvimento rural difundiram o modelo brasileiro alhures. O programa já foi adotado e adaptado por inúmeros países. Em suma, em virtude de programas como o PAA, o Brasil se tornou uma referência global na construção de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional. É importante que, daqui para frente, não se torne exemplo para processos de desconstrução das mesmas, ainda mais em um contexto em que o espectro da fome volta a rondar o mundo (com um aumento de 80 milhões para 180 milhões de pessoas de 2015 para 2016).
Mas não é apenas uma questão de fome. Agora unimos a fome com a vontade de comer. Na última década obesidade aumentou 60% no Brasil. Junto com isso aumentaram os índices de hipertensão, diabetes, câncer. Também aumento o consumo de alimentos industrializados. O que reduziu foi o consumo de feijão. Além disso, um fato interessante é que o Brasil passou a importar feijão da China e de outros países. Este é o tipo de problema para o qual o PAA pode ser uma das respostas mais efetivas, estimulando a produção deste gênero básico da dieta alimentar brasileira. Mas isto também demanda mudanças na lógica de outras políticas. É mais difícil o PAA estimular os agricultores familiares a plantar feijão (ou frutas, verduras e legumes) quando a taxa de juros, as garantias de comercialização e o sistema de assistência técnica para o plantio de soja ou milho são mais atraentes.
O fato é que, mesmo em tempos de ajuste fiscal, seria possível ter crédito público a juro zero para a produção de determinados gêneros alimentícios básicos – assim como para a produção orgânica e agroecológica. O efeito desta medida para as contas públicas seguramente geraria menos prejuízos do que financiar soja e milho de maneira altamente subsidiada, ainda mais considerando os efeitos que os alimentos industrializados derivados destas commodities possuem em termos de insegurança alimentar e nutricional (incluídos os custos de saúde pública para combater as doenças diretamente associadas à dieta alimentar).
Não há dúvidas de que investir no PAA e em programas similares, como a aquisição de alimentos da agricultura familiar para a alimentação escolar, é uma decisão política e administrativa muito mais lógica, do que as alternativas espúrias como a famigerada “ração” recentemente idealizada pelo prefeito de São Paulo. Basta saber quando o governo vai conceder a devida atenção a este tipo de programa e, efetivamente, recompor seu orçamento.
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GEPAD é um grupo de pesquisa sobre agricultura familiar e desenvolvimento rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
sábado, 11 de novembro de 2017
Porque é preciso ter a “Lei Cancellier”.
Foto - Brasil 247. |
Jornalista Fernando Brito, do Tijolaço, destaca o que ele considerou um "belíssimo e sensível trabalho" dos repórteres Monica Weinberg e Thiago Prado, da Veja, sobre a suicídio do reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier; "A morte do reitor Luiz Cancellier não foi, até agora, tão bem descrita, nem a brutalidade que o levou ao suicídio tão bem narrada. O dia em que, finalmente, este país tiver uma lei que puna o abuso de autoridade, que ela seja conhecida como Lei Cancellier, como a Maria da Penha deu nome à da violência contra a mulher", defende Brito
10 DE NOVEMBRO DE 2017.
Por Fernando Brito, do Tijolaço.
É mais que um belíssimo e sensível trabalho dos repórteres Monica Weinberg e Thiago Prado, da Veja. É um libelo acusatório contra as monstruosidades que estão sendo feitas, em nome da moral e da Justiça, humilhando pessoas, prendendo-as antes de serem ouvias, violando suas intimidades até físicas.
A morte do reitor Luiz Cancellier não foi, até agora, tão bem descrita, nem a brutalidade que o levou ao suicídio tão bem narrada. O dia em que, finalmente, este país tiver uma lei que puna o abuso de autoridade, que ela seja conhecida como Lei Cancellier, como a Maria da Penha deu nome à da violência contra a mulher.
Monica Weinberg e Thiago Prado, na Veja.
Na noite do domingo 1º de outubro, um antigo cliente do Macarronada Italiana, de onde se avista a deslumbrante Baía Norte de Florianópolis, entrou no restaurante à procura de Zé. O garçom José de Andrade, de 63 anos, irrompeu no salão e aproximou-se para registrar em seu bloquinho o pedido de sempre do freguês de quase quatro décadas: talharim à bolonhesa.
— Não, Zé, hoje só vim te ver e tomar um café contigo.
O garçom percebeu um timbre diferente e retrucou:
— Te conheço, Cau. Você está bem?
Dali, Cau foi ao Shopping Beiramar, uma caixa de concreto de sete andares, subiu até o último piso e andou em torno das escadas rolantes mirando lá embaixo, como quem calcula o território. Caminhou duas, três, cinco vezes ao todo. E decidiu ir ao cinema. Assistiu a Feito na América, o mais recente filme de Tom Cruise, e voltou para casa. No dia seguinte, na última manhã de sua vida, Cau deixou seu apartamento, no bairro de Trindade, e pegou um táxi. No meio do caminho, talvez à espera de que o shopping abrisse as portas, às 10 horas, encerrou a corrida na Praça dos Namorados, onde costumava levar o filho quando pequeno. Sentou-se num banco. Uma conhecida o cumprimentou, ele perguntou as horas. Eram 9h20. Quando o shopping abriu, Cau não demorou a chegar.
Cruzou com um estudante universitário, a quem saudou protocolarmente, e tomou o elevador até o 7º andar. As câmeras de segurança do shopping captaram o momento em que Cau, sem nenhuma hesitação, se postou na escada rolante, colocou as mãos no corrimão de borracha, em seguida subiu ali com os dois pés — e jogou-se no vão da escada, projetando-se no precipício. Despencou de uma altura de 37 metros, a uma velocidade de 97 quilômetros por hora. Seu corpo bateu no chão como se tivesse 458 quilos. Ele morreu na hora, às 10h38 de 2 de outubro de 2017.
O suicídio de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, aos 59 anos, o Cau, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi o desfecho trágico de dezoito dias dramáticos. Sua vida começou a desabar na manhã de 14 de setembro, quando agentes da Polícia Federal deflagraram a Operação Ouvidos Moucos, com o objetivo de apurar desvios de verbas para cursos de ensino a distância na UFSC. Às 6h30 daquela quinta-feira, o reitor ouviu tocar a campainha de seu apartamento e, enrolado em uma toalha de banho, abriu a porta para três agentes da PF, que subiram sem se fazer anunciar pelo porteiro do edifício. Os agentes traziam dois mandados — um de prisão temporária e o outro de busca e apreensão. Recolheram o tablet e o celular do reitor e conduziram-no à sede da Polícia Federal em Florianópolis, dentro de uma viatura.
Atônito, sem entender o que estava acontecendo, o reitor só se lembrou de chamar um advogado quando estava prestes a começar seu depoimento, às 8h30. Durante as cinco horas em que foi arguido, passou duas sem saber por que estava à beira da prisão. Ainda respondia a perguntas sobre os meandros operacionais do ensino a distância, com o estômago embrulhado pelo jejum matinal e pelo tormento das circunstâncias, quando a delegada Érika Mialik Marena, ex-coordenadora da força-tarefa da Lava-Jato, à frente agora da Ouvidos Moucos, adentrou o local. Apressada para iniciar a coletiva de imprensa que começaria logo mais, Érika finalmente esclareceu ao interrogado o motivo de tudo aquilo: “O senhor não está sendo investigado pelos desvios, mas por obstrução das apurações”. E correu para comandar o microfone na sala ao lado.
Desde cedo, já voava nas redes sociais a notícia de que a Polícia Federal deflagrara uma operação de combate a uma roubalheira milionária na UFSC. A página oficial da PF no Facebook, seguida por 2,6 milhões de pessoas, destacava a Ouvidos Moucos: “Combate de desvio de mais de 80 milhões de reais de recursos para a educação a distância”. Ainda acrescentava duas hashtags para celebrar a ação: “#euconfionapf” e “#issoaquiépf”. A euforia não encontrava eco nos fatos.
Na coletiva, a delegada Érika explicou que, na realidade, não havia desvio de 80 milhões de reais. O valor referia-se ao total dos repasses do governo federal ao programa de ensino a distância da UFSC ao longo de uma década, de 2005 e 2015, mas não soube dizer de quanto era, afinal, o montante do desvio. Como a PF não se deu ao trabalho — até hoje — de corrigir a cifra na sua página do Facebook, os 80 milhões colaram na biografia do reitor. Em seu velório, uma aluna socou o caixão e bradou: “Cadê os 80 milhões?”.
Encerrado seu depoimento, o reitor deveria ficar retido na sede da PF, mas, como a carceragem havia sido desativada, foi para a Penitenciária de Florianópolis, um complexo de quatro pavilhões construído em 1930. Acorrentaram seus pés, algemaram suas mãos e, posto nu, ele foi submetido a revista íntima. Um dos agentes ironizou: “Viu, gente, também prendemos professores!”. Cancellier vestiu o uniforme laranja, foi fichado e passou a noite em claro. Seus dois colegas de cela, presos na mesma operação, choravam copiosamente.
Cancellier estava mudo, como que em transe, e cada vez mais sobressaltado com os rigores do cárcere. Ficou trinta horas na cela na ala de segurança máxima. Teve sintomas de taquicardia: suava muito e a pressão disparou para 17 por 8. Seu cardiologista foi autorizado a examiná-lo, trazendo os remédios que ele havia deixado em casa (desde dezembro, quando implantou dois stents, Cau tomava oito medicamentos).
Quando deixou a cela, Cancellier era um homem marcado a ferro pela humilhação da prisão. Sua família o recebeu em clima de festa e alívio. Os irmãos, Julio e Acioli, tinham comprado de tudo um pouco no Macarronada Italiana para um jantar regado a vinho branco Canciller, rótulo argentino escolhido pela similaridade com o nome de origem italiana da família. Também ali estava o filho do reitor, Mikhail, de 30 anos, doutor em direito como o pai, com quem ele mantinha um laço inquebrantável. Mas, entre piadas e risos, Cancellier exibia um semblante sem expressão. “Ele estava chocado. Revivia aquelas cenas o tempo todo”, lembra o irmão Julio, jornalista de 51 anos. Mais que tudo, o reitor estava sendo esmagado pelo peso da proibição de pisar na universidade até o final das investigações. A decisão fora tomada junto com o mandado de prisão e, para o reitor, soou como uma punição cruel.
Depois de ter visto seu nome nas manchetes do noticiário na internet e na TV, Cancellier deu boa-noite a todos e recolheu-se. Não era um homem aliviado pelo fim do martírio da prisão nem reconfortado pelo reencontro com a liberdade. Deixou o jantar como um derrotado. Um dos convivas, o desembargador Lédio Rosa de Andrade, de 58 anos, amigo da infância pobre passada em Tubarão, a 130 quilômetros de Florianópolis, percebeu o peso que o reitor carregava. “Ele entendeu que o episódio deixaria uma marca incontornável em sua biografia”, diz Andrade, colega de colégio de Cancellier.
A UFSC era uma extensão da casa do reitor. Seu apartamento, de três cômodos, onde viveu dezenove anos, dois deles casado e o restante na companhia do filho, fica a 230 passos do câmpus. Nos fins de semana, o reitor fazia uma ronda informal, bem à vontade em seu moletom. Na UFSC, ele teve, para os padrões acadêmicos, uma carreira meteórica. Em apenas dezoito anos, concluiu o curso de direito, fez mestrado, fez doutorado em direito administrativo, virou diretor do Centro de Ciências Jurídicas e, numa eleição acirrada, elegeu-se reitor — cargo que ocuparia por dezesseis meses. Na eleição, a paciência para tecer alianças foi arma decisiva em um jogo embaralhado. “Ele não era um orador brilhante, mas era um articulador que conseguia trazer para o mesmo lado gente de todos os espectros ideológicos”, define o amigo Nelson Wedekin, de 73 anos, ex-senador pelo PMDB local.
Desde a juventude, a rotina universitária era a bússola da vida de Cancellier. Em 1977, aos 19 anos, época em que fazia política estudantil com o cabelo desgrenhado e bolsa de couro a tiracolo, ele se encantou com a universidade. “Não quero nunca sair daqui”, confessou ao amigo Osvaldir Ramos, hoje presidente do Conselho Estadual de Educação em Santa Catarina. Acabou forçado a sair, no regime militar, em decorrência de sua militância no Partido Comunista Brasileiro, o antigo Partidão, e da chamada novembrada: em 30 de novembro de 1979, o presidente João Figueiredo, o último ditador do ciclo militar, baixou em Florianópolis, bateu boca com estudantes na rua e o episódio terminou em pancadaria e prisões. Cancellier teve de desaparecer da faculdade de direito.
Ressurgiu cinco meses depois trabalhando em um jornal e acabou tornando-se assessor de políticos, inclusive de Wedekin, função que o levou a se mudar para Brasília. Só voltou à UFSC em 2000, aos 42 anos, para cumprir uma fulminante trajetória acadêmica — e ser de novo expelido da universidade, agora em plena democracia e na condição de reitor, num banimento que lhe pesou como uma suprema humilhação. No muro da universidade, um anônimo grafitou: “Fora Cancellier”.
“A humilhação é a bomba nuclear das emoções”, afirma a psicóloga alemã Evelin Lindner, uma autoridade mundial num ramo da psicologia que estuda o peso da vexação em sociedade e sua relação com atos de violência — como o terrorismo e o suicídio, que, não por acaso, andam juntos. Se a culpa é uma dor que vem de dentro, a humilhação é como uma dor que vem de fora, imposta pelo olhar alheio.
É sentida como uma falência em público. Sai cortando fundo no orgulho, na honra, na dignidade, e tende a ficar marcada como uma cicatriz. Escreve o psiquiatra Neel Burton, professor em Oxford e autor do livro Heaven and Hell: The Psychology of the Emotions (Céu e Inferno: a Psicologia das Emoções): “As pessoas que foram humilhadas carregam a marca da humilhação, são lembradas pela humilhação. Em um sentido muito real, elas se tornam a própria humilhação que sofreram”.
Os estudos científicos sugerem que, quando estão em jogo elementos que constituem a razão de ser de uma pessoa, como princípios, posição ou status, o peso da vergonha pode até desfigurar a identidade pessoal e tornar-se insuportável. “Em alguns casos, ser submetido a uma situação vexaminosa gera condutas irracionais e pode desencadear uma resposta violenta, como o suicídio”, diz o professor Helio Deliberador, do departamento de psicologia social da PUC de São Paulo.
O filho mais velho de Bernard Madoff, um dos nomes mais cintilantes de Wall Street, suicidou-se depois da descoberta de que seu pai era, na verdade, um farsante que aplicara golpes bilionários. Jacintha Saldanha, enfermeira em um hospital onde a duquesa Kate esteve internada em 2012, caiu no trote de radialistas australianos que se fizeram passar pela rainha da Inglaterra, facilitou o acesso a dados sobre o estado de saúde da duquesa e foi publicamente achincalhada. Matou-se aos 46 anos. Como escreveu Albert Camus em Mito de Sísifo: Ensaio sobre o Absurdo: “Matar-se, em certo sentido, é confessar que se é ultrapassado pela vida e que não a compreendemos”.
Nos dias que se seguiram à sua soltura, Cancellier começou a ser ultrapassado pela vida. “Passou a alternar momentos em que achava que ficaria tudo bem com outros em que mergulhava no desânimo”, diz o ex-senador Wedekin. Em 16 de setembro, dois dias depois da prisão, seu irmão Acioli levou-o para falar com advogados. Ao entrar e sair do táxi, Cancellier tremia, com medo de ser reconhecido na rua e hostilizado. Com o celular confiscado pela PF, quase não atendia o telefone fixo de casa. Não ligava a TV e, ao irmão Julio, disse que cometera “suicídio digital”, pois retirara fotos do Facebook e parara de navegar nas redes sociais. Ensimesmou-se a tal ponto que os irmãos decidiram levá-lo a uma psiquiatra, a primeira vez na vida que buscava ajuda dessa natureza.
A consulta com a médica Amanda Rufino ocorreu em 19 de setembro, cinco dias depois da prisão. Ele saiu de lá com o diagnóstico de “sintomas de stress pós-traumático desencadeados por impactante fator estressor no âmbito profissional” e um quadro de “intensa sensação de angústia, de opressão no peito e taquicardia”. A psiquiatra prescreveu um ansiolítico e um antidepressivo, ambos em doses moderadas. Cancellier tomou obedientemente os remédios e voltou à médica em 29 de setembro, a três dias do suicídio. Ao final da segunda consulta, a psiquiatra comentou com um dos irmãos do reitor que a situação parecia sob controle. “O quadro está evoluindo bem”, disse. A João dos Passos, procurador-geral do estado, o reitor deu uma pista do que sentia: “Vou te confidenciar, João. Meu estado é de pós-catástrofe, como se eu fosse o sobrevivente de uma queda de avião. Não consigo me situar, raciocinar direito”. O amigo Lédio Andrade, com quem o reitor jogava xadrez, descreve um Cancellier irreconhecível: “Seu raciocínio ficou lento e os olhos fixavam o infinito. Não parecia o Cau”.
Em situações normais, o reitor tinha entusiasmadas conversas sobre Shakespeare, Freud e o cristianismo, temas que despertavam sua curiosidade intelectual. Agora, nada parecia atrair seu interesse. O irmão Acioli, engenheiro que mora em São José dos Campos, tentando tirá-lo da clausura de si mesmo, alugou um Fiat Uno e provocou: “Agora você vai me mostrar essa ilha”. Era sempre o irmão ao volante, pois Cancellier, apesar de ter carteira de motorista, só dirigia moto. Nesses passeios, o reitor até relaxava, mas logo voltava a cerrar-se em casa.
Em Foz do Iguaçu, sua ex-mulher, Cristiana Jacquenin, de 48 anos, externou seu temor aos mais chegados: “Tenho medo do que ele possa fazer. Ele não vai aguentar ficar longe da universidade, é a vida dele”. Crica, como Cancelllier a chamava, foi uma paixão fulminante — em dois meses, eles subiram ao altar, ele com 28 anos, ela com 18. Conheceram-se no jornal O Estado (que já não existe) e, apesar da separação, mantiveram um elo até o fim. Ela afirma: “Aquela humilhação toda atingiu o Cau. Era como se alguém acertasse com uma bazuca uma escultura de pecinhas bem encaixadas que nunca mais se rearranjariam”.
A Polícia Federal pediu a prisão de Cancellier e outras seis pessoas da UFSC com base em um relatório de 126 páginas. Nele, o reitor é acusado de tentar obstruir as investigações da universidade sobre os desvios de dinheiro com base em apenas dois depoimentos. Em um deles, Taisa Dias, coordenadora do curso de administração, contou à polícia que, certo dia, levou ao reitor suspeitas de uso indevido de verbas no curso que coordena.
Cancellier, segundo ela, perguntou se aquilo não seria um “problema de gestão” e, em seguida, lhe disse o seguinte: “Guarda essa pastinha”. Taisa entendeu que, com essa frase, o reitor estava querendo enterrar as investigações. A Polícia Federal, por sua vez, considerou a interpretação de Taisa como uma suspeita suficientemente clara de que Cancellier queria embolar a apuração. A defesa do reitor admite a conversa com Taisa, mas afirma que, ao dizer “guarda essa pastinha”, ele queria lhe pedir apenas cautela nas apurações e nas acusações. Ao reitor, nada foi perguntado sobre suas intenções, antes de ele ser preso.
O outro depoimento foi prestado pelo corregedor da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, um senhor calvo de olhos claros que nunca altera o tom de voz e fez fama de investigador obsessivo no câmpus da universidade. Em novembro do ano passado, o centro acadêmico da faculdade de engenharia postou no Facebook um texto que dizia que a universidade mantinha uma lógica desigual, punitiva para alunos e benevolente para professores. Hickel do Prado debruçou-se sobre a questão.
Queria entender o que era aquela lógica desigual. Convocou nada menos do que uma centena de estudantes para depor. A apuração se encerrou sem nada concluir, mas ajudou a sublinhar sua fúria investigativa. Aos que lhe censuram o ímpeto de xerife, Hickel do Prado rebate com segurança pétrea: “Quem faz tudo certo não tem por que ter medo de nada”. (Na terça-feira 7, o corregedor pediu licença médica de dois meses da universidade.)
Em seu depoimento, Hickel do Prado fez cinco acusações ao reitor. Disse que ele lhe recomendou que instalasse uma sindicância, em vez de abrir um processo administrativo, e tentou subordiná-lo a uma secretaria ligada à reitoria. (A defesa do reitor confirma as duas providências, mas diz que eram uma tentativa de evitar os conhecidos excessos do corregedor, e não de sabotar a investigação.) Também afirmou que ele cortou sua remuneração numa “tentativa de constrangê-lo”. (A defesa do reitor afirma que houve uma ampla reforma na UFSC com cortes na remuneração de vários cargos comissionados, e não uma medida exclusiva contra o corregedor.) Ainda acusou o reitor de tê-lo chamado para uma conversa reservada na qual lhe pediu que não apurasse as suspeitas. (A defesa do reitor nega que a conversa tenha existido.) E, por fim, disse que ele lhe pediu para ter acesso formal às investigações depois de ter visitado a Capes, órgão federal que financia o sistema de pós-graduação no Brasil, que havia acabado de cortar as verbas para o programa de educação a distância da UFSC. (A defesa do reitor confirma que ele pediu acesso às investigações exatamente para saber as razões que levaram a Capes a cortar as verbas.)
A polícia não ouviu as explicações do reitor, antes de pedir sua prisão. Ainda que os dois depoimentos se limitassem a acusá-lo de tentar obstruir as investigações, a polícia incluiu o nome do reitor em uma lista de doze pessoas suspeitas de terem tido “efetiva participação na implementação, controle e benefício do esquema criminoso”. Não há no inquérito nenhum indício ou acusação de que o reitor fosse membro do “esquema criminoso”, nem mesmo a descrição do que poderia vir a ser esse “esquema criminoso”. VEJA perguntou à Polícia Federal por que Cancellier foi apontado como integrante da quadrilha, mas a PF preferiu não responder.
No final do relatório, na página 123, estão as cinco razões para prender o reitor. O texto afirma que ele:
“Criou a Secretaria de Educação a Distância para estar acima do já existente Núcleo Universidade Aberta, vinculando-a diretamente à reitoria.” (O inquérito não traz nenhuma prova de que a criação da secretaria tenha relação com desvios de verba.)
“Nomeou no âmbito do EaD (educação a distância) os professores do grupo que mantiveram a política de desvios e direcionamento nos pagamentos das bolsas do EaD.” (O reitor, ao assumir o cargo, fez mais de cinquenta nomeações. No âmbito do EaD, fez apenas três, e outros três professores que já integravam o grupo antes mesmo de sua gestão foram mantidos.)
“Procurou obstaculizar as tentativas internas sobre as irregularidades na gestão de recursos do EaD.” (O inquérito, neste caso, baseia-se no depoimento da coordenadora Taisa Dias e do corregedor Hickel do Prado.)
“Pressionou para a saída da professora Taisa Dias do cargo de coordenadora do EaD do curso de administração.” (É uma afirmação gratuita. O inquérito não informa de onde saiu essa suspeita nem aponta nenhum elemento que lhe dê consistência.)
“Recebeu bolsa do EaD via Capes e via Fapeu.” (O inquérito também não informa de onde saiu essa suspeita, nem mesmo se existiu alguma irregularidade na concessão das bolsas.)
A juíza Janaína Cassol, da 1ª Vara Federal de Florianópolis, analisou o pedido da PF em 25 de agosto e concedeu as prisões. Sobre o reitor e os outros seis acusados, ela escreveu: “Essas pessoas podem efetivamente interferir na coleta das provas, combinar versões e, mais do que já fizeram, intimidar os docentes vitimados pelo grupo criminoso”. Em 12 de setembro, a juíza pediu licença por problemas de saúde e foi substituída por Marjorie Freiberger. Dois dias depois, em 14 de setembro, a polícia lançou a Operação Ouvidos Moucos e prendeu o reitor e os outros seis.
No dia seguinte às prisões, a juíza Marjorie Freiberger, sem que houvesse recurso da defesa do reitor e dos outros seis, resolveu revogar a decisão de sua colega e suspendeu as prisões. Ao contrário da antecessora, a juíza Marjorie não conseguiu ver motivo para tê-los levado para a penitenciária. Escreveu ela: “No presente caso, a delegada da Polícia Federal (refere-se a Érika Marena) não apresentou fatos específicos dos quais se possa defluir a existência de ameaça à investigação e futuras inquirições”. Mandou libertar todo mundo. Até hoje, a advogada do reitor, Nívea Cademartori, não entende por que seu cliente foi preso sem que tivesse a chance de se explicar. “Bastaria que a PF intimasse o reitor para depor, o que seria imediatamente atendido. Há uma banalização das prisões temporárias no país.”
Em seus últimos dias, Cancellier chegou a dar sinais de que não abandonaria o ringue. Em artigo publicado no jornal O Globo em 28 de setembro, quatro dias antes do suicídio, saiu em defesa própria e dos demais professores presos: “A humilhação e o vexame a que fomos submetidos há uma semana não têm precedentes na história da instituição”. O reitor também tentou recorrer da proibição de pisar no câmpus. Alegou que, como orientava teses de mestrado e doutorado, não podia deixar os alunos à deriva. A resposta da Justiça veio no sábado 30 de setembro, dois dias antes do suicídio: Cancellier estava autorizado a entrar na UFSC por três horas em um único dia. A decisão o devastou. “Como pode?”, perguntava. “Se demorar um minuto a mais, serei preso?”
A humilhação a conta-gotas ajudou a reforçar o quadro de stress pós-traumático do reitor, como a psiquiatria define a reação descontrolada do cérebro diante de um evento que está além de sua capacidade de absorção. “É como se o sistema de defesa do organismo entrasse em pane”, compara o psiquiatra Marcelo Fleck, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Maria Oquendo, uma porto-riquenha baixinha que se tornou um gigante da psiquiatria americana e autoridade mundial em suicídio, diz que é dificílimo evitar a morte de vítimas desse tipo de stress. Elas nunca falam em suicídio, embora pensem no assunto constantemente. Um trauma como o que consumiu o reitor vira motivo de obsessão — mas, de acordo com as estatísticas, raramente conduz ao atentado à própria vida.
O reitor foi um dos raros casos. Na véspera de seu suicídio, sabe-se hoje, já estava tudo calculado. Ele recusou o convite dos irmãos para assistir a uma partida de futebol em que o clube de coração da família, o Hercílio Luz, tinha chance de voltar à elite catarinense. Preferiu sair com o filho Mikhail. Almoçaram, ele quis ver se estava tudo em ordem em sua casa, mas recusou-se a ficar para uma sessão de filmes na TV. “Preciso descansar”, despistou. Em vez de descansar, foi ao shopping em que morreria, assistiu a um filme e levou consigo a chave do apartamento, de modo a forçar seu irmão Acioli a dormir em outro lugar. Queria ficar sozinho na última noite. As cinzas de cigarro espalhadas pelo apartamento mostram que fumou ferozmente, quebrando a abstinência imposta pelo cardiologista. Escreveu quatro bilhetes. Um para o filho, outro para os irmãos, um terceiro para um amigo e o quarto carregou no próprio bolso. É o único cujo conteúdo é conhecido. “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!”, diz o bilhete, com a ênfase dos três pontos de exclamação. No dos irmãos, referiu-se à imensidão do amor pelos dois, mas disse que a dor que o dilacerava era maior que tudo. Deixou bilhetes e documentos separados em uma pequena caixa no escritório de casa, encontrada por Mikhail. O filho disse: “O pai cumpriu a missão aqui”.
Até hoje, sabe-se apenas que o “esquema criminoso” durou principalmente de 2005 a 2015, quando Cancellier nem estava na reitoria. A Capes, que investigou o assunto, diz que o “esquema criminoso” era uma coleção de pequenas falcatruas de servidores escroques, sem a dimensão que se divulgou. O coordenador do programa do ensino a distância da Capes, Carlos Lenuzza, não revela detalhes da investigação, mas adianta: “Os valores dos desvios são muito distantes daquilo que se falou”. Até agora, um mês depois do suicídio do reitor, ninguém foi acusado formalmente de nada, e a polícia não chegou ao valor real que foi desviado. Ao ver a notícia do suicídio na TV, Zé, o garçom, desabou. Nem sabia que o amigo de toda a vida era reitor.
sexta-feira, 10 de novembro de 2017
Mato Grosso. Explosão e fuga no presídio da mata grande em Rondonópolis.
foto - marretaurgente.com |
Um grupo de 32 presos da fugiram da Penitenciária Major Eldo de Sá Corrêa, conhecida como Mata Grande por volta da 1h desta sexta-feira (10). Um muro da unidade prisional foi explodido no raio 3. Os fugitivos contaram com a ajuda de outros comparsas de fora do presidio.
Os explosivos foram colocados junto ao muro e detonados. Em meio à fumaça, o grupo de detentos escapou da prisão.
De acordo com as primeiras informações houve troca de tiros entre comparsas e agentes prisionais.
A quadrilha que dava cobertura na fuga estava fortemente armado, usando inclusive fuzis, na troca de tiros, os detentos conseguiram escapar.
Até o momento apenas 5, dos 32 detentos que fugiram, foram recapturados.
As remessas de armas ilícitas aos terroristas sírios enviado pelos EUA e aliados incluindo Israel e Arábia Saudita.
As recentes revelações de Edward Snowden, ex-apontador da agência de segurança nacional sobre o papel da Arábia Saudita na guerra em curso na Síria, levantaram novas questões sobre o papel dos sauditas e outros no armar as várias facções terroristas na Síria.
De acordo com os documentos divulgados por Snowden, os sauditas estavam armando terroristas na Síria no início de março de 2013. Os documentos também revelam que a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos estava plenamente consciente das ações dos sauditas e dos terroristas e aceitou sem objeções porque os Estados Unidos e a Arábia Saudita tinham um objetivo comum de mudança de regime na Síria.
A Arábia Saudita e outros apoiantes dos terroristas continuaram a fornecer uma grande ajuda financeira e militar aos grupos terroristas. Esta informação precisa ser colocada ao lado de outras revelações recentes sobre o fornecimento de armamentos aos grupos terroristas.
Uma série de relatórios de investigação da Búlgaro Investigating Reporting Network (BIRN) revelou toda uma rede de embarques ilícitos de armas para os terroristas sírios, pelos Estados Unidos e seus aliados. Isso continuou apesar de o presidente Trump ter ordenado a cessação do fornecimento de armas em julho de 2017. Por exemplo, a ilha croata de Krk já foi usada em setembro de 2017 para o transporte de armas dos Estados Unidos para o Oriente Médio.
O aumento da oferta de armas por rotas alternativas, como a Croácia e o Azerbaijão, segue a preocupação do governo alemão de que os americanos usaram suas bases militares alemãs para fornecer armas aos terroristas.
A preocupação alemã parece ter sido fundada em duas bases fundamentais. O primeiro deles é que a Alemanha está vinculada pela posição comum de 2008 sobre as exportações de armas que fazem parte do direito da União Europeia. Os Estados-Membros da União Europeia são obrigados a ter em conta oito critérios distintos antes da aprovação das transferências de armas do seu território para terceiros. Esses critérios incluem se o país receptor respeita os direitos humanos e também a preservação da paz, segurança e estabilidade regionais.
Não se pode dizer que o envio de armas para a Síria e, em particular, o fornecimento dessas armas a grupos terroristas diversos que apoiem os objetivos geopolíticos dos EUA, atende aos requisitos de respeito dos direitos humanos, e muito menos contribuem para a paz, a segurança e a estabilidade regionais.
A hipocrisia, que é inerente à posição da União Européia, pode ser vista pelo fato de que o embargo de armas da União Européia à Síria foi levantado em maio de 2013. O embargo foi levantado devido à pressão da França e do Reino Unido para permitir o fornecimento de armas de seus países para chegar aos grupos de oposição sírios.
O segundo fator, que é relevante neste contexto, é o Tratado de Comércio de Armas das Nações Unidas de 2014, que entrou em vigor em 24 de dezembro de 2014. O artigo 6 do Tratado sobre o Comércio de Armas proíbe o fornecimento de armas por um país onde eles estavam cientes ou normalmente deveria ter consciência de que essas armas seriam usadas em ataques contra civis ou na prática de crimes de guerra.
O artigo 11 do tratado cobre a situação em que as armas são enviadas para um local e desviadas para um terceiro. Os países membros do tratado são obrigados a tomar medidas para evitar que isso aconteça. Isso claramente não está sendo feito.
Entre os países que ratificaram o Tratado de Comércio de Armas estão a Austrália, a Bulgária, a Croácia, a República Checa, a França e o Reino Unido. Todos esses países foram cúmplices no fornecimento de armas e munições para, entre outros, a Arábia Saudita e Israel. Isto é especialmente problemático porque os Estados Unidos, a Arábia Saudita e Israel não são partes no tratado. Todos os três países têm sido importantes fornecedores de argumentos para grupos terroristas que operam na Síria e em outros lugares. As últimas revelações do Sr. Snowden confirmam o que havia sido amplamente conhecido ou suspeitado por um período considerável de tempo.
O grupo terrorista saudita Jaysh Al-Islam realizou execuções sumárias de civis, destruiu armas químicas por ataques a civis e também usou civis como escudos humanos. Mais uma vez isso está bem documentado, mas não impediu os Estados Unidos e a Arábia Saudita de fornecerem armas a esses e grupos similares.
O fato é que essas remessas de armas continuam sem prejuízo da ordem do presidente Trump de julho de 2017. O fornecimento de tais armamentos sob o nome de código da Operação Sycamore suscita sérias dúvidas sobre a extensão em que Trump está realmente no controle de seus militares e da CIA.
Os principais organizadores deste comércio de armas parecem ser tanto a CIA quanto o Comando de Operações Especiais. Ambos os grupos são conhecidos por operar independentemente do controle efetivo. Antes das últimas revelações do BIRN, havia relatórios anteriores das mesmas organizações do uso da Silk Airways, uma empresa com sede no Azerbaijão, por distribuir armas a grupos terroristas usando esta companhia aérea civil. Isso também é contrário aos acordos internacionais de aviação, que proíbem o uso de companhias aéreas civis para o embarque de equipamentos militares.
A Austrália, que é signatária do Tratado sobre Comércio de Armas, parece não ter sido perturbada pelo destino das exportações de armas, nem pelos usos para os quais essas armas podem ser colocadas. Em julho deste ano, o ministro da indústria de defesa, Christopher Pyne, expressou seu desejo de que a Austrália se tornasse um exportador de armamentos muito maior. Ele foi citado dizendo que as exportações seriam utilizadas para consolidar relações com países em regiões voláteis como o Oriente Médio. Ele também disse que essas exportações poderiam ser usadas para reforçar os laços militares com os principais Estados, como os Emirados Árabes Unidos com os quais a Austrália compartilhava interesse na luta contra o Estado islâmico e “equilibrando o poder crescente do Irã na região”.
A declaração do deputado Pyne parece ser uma falta do artigo 6 e do artigo 11 do Tratado sobre Comércio de Armas, na medida em que sabe ou deve saber que o utilizador final dessas exportações de armas são grupos terroristas. Longe de lutar contra o Estado islâmico, os Emirados Árabes Unidos tem sido nomeado como um dos principais apoiantes.
Também é difícil entender por que Pyne deveria desejar “equilibrar o poder crescente do Irã na região” quando é óbvio que a intervenção do Irã no Iraque e na Síria, a convite dos governos soberanos legítimos de ambos os países, foi um fator importante na batalha cada vez mais bem sucedida contra IS e grupos terroristas similares. Os grupos cujos aliados de Mr Pyne estão armando não só procuraram minar os governos desses dois países, mas também foram a fonte de morte, destruição e miséria humana incalculáveis.
As revelações dos documentos divulgados pelo senhor Snowden e os vários relatórios relativos ao envio ilegal de armas a grupos terroristas receberam pouca ou nenhuma cobertura nos meios de comunicação tradicionais australianos. Isso reflete uma relutância geral pela mídia dominante para descrever com precisão o que está acontecendo no Iraque e na Síria e, em particular, o papel desempenhado pelos vários grupos terroristas e o apoio que recebem por países aliados à Austrália, em particular a Arábia Saudita e os Estados Unidos .
O tratamento de mídia desigual concedido às várias partes na Síria pode ser ilustrado pela análise diferencial aplicada à libertação de Aleppo e Raqqa. No primeiro caso, os terroristas foram removidos de Aleppo pelas operações combinadas do Exército sírio e seus aliados russo, iraniano e Hezbollah. As baixas civis foram invariavelmente descritas em termos de um desprezo despreocupado quanto à vida humana pelas forças sírias e russas.
A batalha contra as forças de Isis em Raqqa foi conduzida em grande parte pelos EUA e são os chamados aliados da “coalizão”, incluindo a Austrália, assim como a operação destrutiva anterior e muito similar em Mosul. Raqqa foi quase totalmente destruído. Comparações precisas foram desenhadas com o destino de Dresden e Berlim na conclusão da Segunda Guerra Mundial. O número de mortos por civis foi em milhares. Os números precisos não podem ser determinados até o escombros ter sido limpo. A escala da destruição e o número de mortos mal foram relatados na mídia convencional.
A explicação mais provável para isso é dizer a verdade sobre o padrão de fornecimento de armas aos terroristas e a intervenção ilegal dos EUA e seus aliados da “coalizão” na Síria, como a Austrália, cai fora da narrativa preferida que é constantemente demonizar a Síria, a Rússia eo Irã, independentemente da evidência real.
No caso da Austrália, porque, ao contrário dos Estados Unidos, Israel e Arábia Saudita, é signatário do Tratado de Armas das Nações Unidas, portanto, tem uma responsabilidade adicional em relação aos usos aos quais as armas fornecidas aos terroristas são colocadas. Isso exigiria, inter alia, a crítica dos Estados Unidos. A história dos últimos 70 anos mostra que a adoção de uma posição independente e baseada em princípios em tais assuntos é mais do que se pode razoavelmente esperar do governo australiano sucessivo.
James O’Neill é um advogado australiano Barrister Law, exclusivamente para a revista on-line “New Eastern Outlook” .
A imagem em destaque é do autor.
A origem original deste artigo é New Eastern Outlook
Copyright © James ONeill , New Eastern Outlook , 2017
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