domingo, 12 de novembro de 2017

Cortes no orçamento para a agricultura familiar.

A atual situação das políticas para a agricultura familiar coloca em risco uma trajetória e um pacto social que remonta ao principio dos anos 1990. Foto: Guilherme Santos/Sul21.
Paulo Niederle, para a Coluna do GEPAD
A divulgação da proposta de lei orçamentária para o próximo ano ratificou o que muitos já sabiam: que a agricultura familiar não tem mais o mesmo espaço no atual pacto político nacional. Embora esta já fosse uma evidência decorrente da extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em 2016, ainda havia quem acreditasse que as políticas públicas de desenvolvimento rural poderiam ser reorganizadas e mantidas por outros órgãos, como o Ministério do Desenvolvimento Social ou a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Casa Civil, esta criada menos com a função de substituir o antigo ministério do que satisfazer a base aliada. Pois bem, os cortes no orçamento para 2018 não deixam dúvidas. A agricultura familiar foi um dos setores mais afetados.
A atual situação das políticas para a agricultura familiar coloca em risco uma trajetória e um pacto social que remonta ao principio dos anos 1990. Naquele momento, a agricultura familiar conquistou reconhecimento e legitimidade perante a sociedade. A capacidade deste segmento em produzir alimentos e absorver mão de obra, em um contexto de crise inflacionária e êxodo rural, tornou-se uma justificativa importante para a construção do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Hoje, por mais desigual que seja sua distribuição entre os próprios agricultores familiares e entre as regiões brasileiras (o sul ficando com mais da metade dos recursos, embora o nordeste detenha metade do total de estabelecimentos familiares), e apesar do fato de favorecer um modelo de especialização em commodities agrícolas, o crédito diferenciado cumpre uma função importante para a manutenção da agricultura familiar.
No entanto, como mobiliza principalmente recursos do sistema financeiro, o impacto do PRONAF nas contas públicas é menor do que geralmente se supõe (e que o governo divulga nos Planos Safra). O gasto do Estado para o próximo ano com a equalização da taxa de juros (diferença entre aquilo que o agricultor paga e a taxa que o banco ganha) deverá situar-se em torno de R$ 3 bilhões (se alcançar este valor). Em tese, este montante atenderia um público potencial de 4,3 milhões de agricultores familiares. Na prática, acompanhando a trajetória histórica, o número de estabelecimentos que acessam o crédito deve ficar em algo próximo a 700 mil. A grande maioria não acessa por razões diversas: burocracia, desconhecimento, risco de endividamento, ou mesmo porque não necessita.
Nos anos 2000, a sociedade começou a demandar mais da agricultura familiar, em particular uma resposta à pobreza, à fome e à desigualdade. À medida que se legitimava enquanto categoria social, a agricultura familiar também passou a revelar que sua conformação era muito heterogênea, abarcando um significativo contingente de agricultores pobres. E mesmo com as políticas diferenciadas de crédito, muitos destes agricultores continuavam com dificuldades para encontrar um lugar ao sol. Assim, diferentes grupos sociais desencadearam lutas específicas por reconhecimento e novas políticas de inclusão social e produtiva. Os casos mais conhecidos são aqueles dos assentados de reforma agrária e das comunidades quilombolas.
Neste momento ganharam expressão, por exemplo, as políticas de aquisição de alimentos da agricultura familiar, as quais visam assegurar segurança alimentar e nutricional para grupos sociais em situação de vulnerabilidade e/ou são direcionadas à alimentação escolar. Estas políticas se tornaram particularmente relevantes porque conseguiram conciliar o estimulo à produção agrícola com a inclusão produtiva (algo para o que as políticas de transferência de renda se mostraram mais limitadas). Além disso, elas revelaram uma capacidade inaudita para promover hábitos alimentares saudáveis e sustentáveis dentre os consumidores beneficiários. Assim, ao mesmo tempo em que os agricultores diversificaram a produção, criaram cooperativas e associações, e ampliaram a produção de alimentos orgânicos, os estudantes da rede pública, por exemplo, passaram a ter acesso à “comida de verdade”.
O fato é que, em um balanço destes vinte anos de políticas para a agricultura familiar, a primeira coisa que se destaca é o importante saldo em termos de fortalecimento deste segmento social, o que é fruto da ação do Estado, dos movimentos sociais, da academia e, sobretudo, dos próprios agricultores. Nenhum agricultor ou agricultora presente no primeiro Grito da Terra, em 1995, reivindicando atenção do governo, imaginava que o Brasil produziria neste período uma cesta com duas dezenas de programas de desenvolvimento rural.
Foram três décadas investindo recursos financeiros, trabalho, tempo e conhecimento de diferentes atores sociais para criar este arranjo. Hoje, contudo, nem o mais pessimista dos analistas que acompanharam a construção e os impactos destas políticas parece acreditar no ritmo de desconstrução das mesmas.
Além da extinção do MDA, recursos direcionados para agricultura familiar foram reduzidos sob a justificativa do ajuste fiscal. Diversas políticas foram paralisadas, reformuladas ou colocadas em revisão. O caso do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) tem sido um dos mais debatidos e publicizados. Em janeiro de 2017 estimava-se uma redução de cerca de 30% nos recursos deste programa em relação à execução do ano anterior (quando foram aplicados R$ 340 milhões). No entanto, em julho já se apontava que a redução atingiria 67%. Por sua vez, uma primeira versão do projeto de lei orçamentária apresentada pelo governo reduzia o orçamento para menos de R$ 4 milhões. As reações foram imediatas. Agricultores, associações, cooperativas, sindicatos e o próprio Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) exigiram a reconstituição do orçamento.
Inicialmente, o Ministério do Desenvolvimento Social, que historicamente sempre aportou a maior fatia dos recursos, destinava apenas 750 mil reais (para uma programa de âmbito nacional!). Para muitos, o valor soou como chacota. Na última versão do orçamento, contudo, o Ministério alocou 173 milhões, fazendo com que o orçamento geral do Programa subisse para 178 milhões. Há sindicados e cooperativas comemorando a vitória. A verdade, entretanto, é que o valor ainda é muito inferior àquele investido em 2016, o qual já era considerado muito aquém do necessário. Apenas à título comparativo, nos anos de maior operação, o PAA chegou a executar (o que é diferente de orçar) quase R$ 1 bilhão. Ademais, tendo em vista a demanda ainda não suprida pelo programa, antes do impeachment o CONSEA já demandava o aumento do orçamento para 2,5 bilhões.
Criado em 2003, no primeiro ano do Governo Lula, o PAA é internacionalmente reconhecido como uma das principais inovações em termos de políticas públicas para a agricultura familiar. Agências e organizações de cooperação para o desenvolvimento rural difundiram o modelo brasileiro alhures. O programa já foi adotado e adaptado por inúmeros países. Em suma, em virtude de programas como o PAA, o Brasil se tornou uma referência global na construção de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional. É importante que, daqui para frente, não se torne exemplo para processos de desconstrução das mesmas, ainda mais em um contexto em que o espectro da fome volta a rondar o mundo (com um aumento de 80 milhões para 180 milhões de pessoas de 2015 para 2016).
Mas não é apenas uma questão de fome. Agora unimos a fome com a vontade de comer. Na última década obesidade aumentou 60% no Brasil. Junto com isso aumentaram os índices de hipertensão, diabetes, câncer. Também aumento o consumo de alimentos industrializados. O que reduziu foi o consumo de feijão. Além disso, um fato interessante é que o Brasil passou a importar feijão da China e de outros países. Este é o tipo de problema para o qual o PAA pode ser uma das respostas mais efetivas, estimulando a produção deste gênero básico da dieta alimentar brasileira. Mas isto também demanda mudanças na lógica de outras políticas. É mais difícil o PAA estimular os agricultores familiares a plantar feijão (ou frutas, verduras e legumes) quando a taxa de juros, as garantias de comercialização e o sistema de assistência técnica para o plantio de soja ou milho são mais atraentes.
O fato é que, mesmo em tempos de ajuste fiscal, seria possível ter crédito público a juro zero para a produção de determinados gêneros alimentícios básicos – assim como para a produção orgânica e agroecológica. O efeito desta medida para as contas públicas seguramente geraria menos prejuízos do que financiar soja e milho de maneira altamente subsidiada, ainda mais considerando os efeitos que os alimentos industrializados derivados destas commodities possuem em termos de insegurança alimentar e nutricional (incluídos os custos de saúde pública para combater as doenças diretamente associadas à dieta alimentar). 
Não há dúvidas de que investir no PAA e em programas similares, como a aquisição de alimentos da agricultura familiar para a alimentação escolar, é uma decisão política e administrativa muito mais lógica, do que as alternativas espúrias como a famigerada “ração” recentemente idealizada pelo prefeito de São Paulo. Basta saber quando o governo vai conceder a devida atenção a este tipo de programa e, efetivamente, recompor seu orçamento.
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GEPAD é um grupo de pesquisa sobre agricultura familiar e desenvolvimento rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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