sábado, 11 de maio de 2013

Para além do bloqueio aos médicos cubanos.

Pedro Porfírio -
Desequilíbrio e chavões grosseiros mostram que o corporativismo mercantilista é também mais embaixo.
No terremoto de 2010, ao invés de soldados,
Cuba mandou para o Haiti uma brigada de
1200 médicos. Em 2 meses, eles já haviam 
tratado de 30 mil vítimas de cólera e
realizado 3 mil cirurgias em condições
 precaríssimas.
Quando fiz a defesa documentada do vitorioso modelo de medicina adotado em Cuba, cuja maior referência é a inquestionável gama de avanços em benefício de uma população que sobrevive com dignidade, franciscanamente, a um criminoso bloqueio econômico de mais de 40 anos,  não imaginava que ia mexer num frenético vespeiro e suscitar reações psicodélicas, muitas permeadas de palavrões e de uma agressividade que revela desequilíbrio, insegurança e imaturidade,  merecedores de tratamento especializado.

Tudo numa tentativa infantil de mudar o foco da questão – a diferença concreta entre  a profilaxia de ganhos reais exibidos pela Organização Mundial de Saúde e a indústria do tratamento robotizado, que torna o médico um autômato sem  obrigação de raciocinar, custa os olhos da cara e inviabiliza a prática da medicina sem o uso abusivo  da parafernália eletro-magnética.
Em nenhum momento há qualquer referência nos mais de 180 comentários postados às benesses de um Estado que gasta uma grana preta com jovens de boa situação, que representam a grande maioria das faculdades estatais e delas saem para o “mercado” sem
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qualquer compromisso com a sociedade que os bancou num regime absolutamente injusto de alocação dos recursos públicos para educação: só o terceiro grau abocanha 51% (R$ 18 bilhões), isso sem falar nos facilitários de programas de renúncias fiscais e subvenções, como o Prouni.

A grande preocupação dos adversários da contratação de cubanos é apontá-los como  inaptos, exigindo que se submetam a uma prova enigmática, como bem descreveu o leitor Nelson da Cunha, inspirada no modelo doentio equivocado que drena para um ralo as verbas oficiais, impondo um insólito constrangimento diplomático do tipo:
 "Precisamos dos seus médicos, mas não confiamos na aptidão dos mesmos atestada por suas universidades".
 
Esses não  são imigrantes avulsos que se mudariam de mala e cuia, mas profissionais selecionados nos termos de convênios entre nações que devem respeito mútuo, com experiência em outros países, os quais só serão chamados devido à determinação dos patrícios de preferirem o litoral onde se esbaldam em exames sofisticados, muitos desnecessários, e nas vantagens das variadas fontes de renda.
 Prova, aliás, a que não submetem os nossos recém-formados que, ao contrário dos advogados, podem saltar direto de um pardieiro mercantil, com médias baixas e conhecimento relativo para o exercício pleno e incontrolável do trato com a vida, saltos responsáveis por alarmantes taxas de sucessivos erros médicos, o que levou o Ministério da Saúde a lançar este ano o Programa Nacional de Segurança do Paciente.
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Também em nenhum dos comentários discordantes se viu uma autocrítica honesta sobre as notórias deficiências de muitos dos nossos profissionais, cuja maior protuberância é o excesso de generalistas sem especialidades. Segundo o próprio Conselho Federal, dos 388.015 médicos do país, 180.136 deles, ou 46%, não têm especialidade, o que significa uma temeridade para o conselheiro Desiré Callegari, diretor de Comunicação do CFM.
A legislação do Brasil permite que qualquer médico graduado aqui, em qualquer das 200 faculdades existentes, mesmo sem ter feito residência médica, exerça qualquer especialidade. "Esses médicos que, por algum motivo, não obtêm especialização costumam ir para áreas da medicina que necessitam de mais profissionais, como na atenção primária de saúde ou nos atendimentos de urgência ou emergência", diz Callegari: "a população acaba sendo exposta a profissionais menos experientes e qualificados nesses atendimentos. O médico exerce a sua profissão com pouca experiência em relação a diagnósticos e orientações de tratamentos, por exemplo."
Resistência também aos medicamentos genéricos
Sabia que havia qualquer coisa de deprimente e deplorável na área, fruto da atuação perniciosa do poderoso e ultra-lucrativo complexo farmacêutico (temos mais farmácias hoje do que padarias), do sistema viciado de terceirização do SUS, das práticas levianas de burla das obrigações funcionais, do complexo de interesses vorazes emanados dos planos de saúde e  de uma didática acadêmica perigosamente voltada para a robotização dos profissionais de saúde.
Mas não imaginava que o estrago já se enraizara em várias gerações, explicando por que nenhum cidadão comum se sente no gozo do direito constitucional à assistência médica. Ou por que operários da construção civil (como os que reconstruíram o
Em greve, trabalhadores da obra do
Maracanã pediam plano de saúde privado
Maracanã) fazem greves para exigir contratações de planos privados de saúde.
E por que empresas e “cooperativas” de medicina de grupo deitam e rolam, arrancando aumentos cada vez mais extorsivos principalmente nos planos-empresas, que estão livres de controles oficiais.

Ainda tenho esperança que os defensores da reserva de mercado que expõe um ralo com dinheiros públicos sejam minorias. Que minorias sejam os que estão inviabilizando os serviços de saúde para tirar proveitos pessoais indecorosos,  que sequer aceitam receitar um genérico por seus laços de dependência com laboratórios que lhes prestam todo tipo de carinho.
Imagino que a maior parte da classe médica entende que o seu legítimo direito à remuneração justa pela alta relevância de seu trabalho não passa por um jogo sujo que torna muito mais numerosa a rede de sanguessugas infiltrados em todos os labirintos da saúde ou atuando  sem recato no superfaturamento e na fraude de serviços, na indústria de exames caros, de cirurgias desnecessárias ou mesmo na avalanche de cesarianas forçadas.
A possível contratação de médicos fora do Brasil pôs a nu uma inquietação epidêmica e epidérmica, expondo as vísceras de um ambiente contaminado, a certeza de que há algo de podre a ser diagnosticado pelos médicos sérios, como o dr. Aloysio Campos da Paz, da Rede Sarah,  que teve de dar um chega pra lá nos próprios colegas e colocar-se ao lado dos pacientes para garantir a excelência do hospital que dirigia.
Governador de direita recorreu aos médicos cubanos
Junto com o destempero de recados intolerantes postados no nosso blog, o pior que aconteceu foi a tendência doentia de ideologizar e partidarizar as divergências, com expressões boçais que não podem ter partido de médicos ou estudantes de medicina, pois se assim fosse a necessidade de um choque de sensatez numa corporação envolvida diretamente com a vida e a morte seria uma operação de emergência inadiável. Corporação que não tem nada com maus hábitos fatais, como daquela médica do Paraná, especialista em abreviar a morte dos pacientes terminais.
Mal sabem esses subprodutos de um passado obscurantista que quem primeiro recorreu aos médicos cubanos foi um GOVERNADOR ASSUMIDAMENTE DE DIREITA, no
Afinado com os militares, o governador Siqueira
Campos  abstraiu divergências ideológicas
e chamou médicos cubanos para Tocantins.
passado ligado à linha dura do regime milita
r. Isso mesmo: principal artífice do Estado de Tocantins e primeiro chefe do seu Executivo, José Wilson de Siqueira Campos, que foi da Arena e do PDS, viu que só mesmo com um novo modelo de medicina pública, tal como se praticava naquela ilha, seria possível equacionar os problemas de saúde de muitos dos seus 139 municípios, dos quais 73 com menos de 5 mil habitantes.

Quando o CRM de Tocantins conseguiu a primeira liminar contra os médicos cubanos, seu filho, o senador Eduardo Siqueira Campos, do PSDB, subiu à tribuna para exigir do então governador Marcelo Miranda uma atitude corajosa em defesa daquele programa, que vinha produzindo resultados visíveis para a população do seu estado. “Há oito anos, em virtude de convênio, dezenas de médicos cubanos vêm atuando nos pequenos municípios de Tocantins, onde conseguiam prestar excelentes serviços de saúde à comunidade”.
R$ 35 mil para ter um ortopedista 
A segunda aleivosia desses ignorantes de má fé foi creditar à presidente Dilma Rousseff e ao PT, com fitos eleitorais e em face de “afinidades ideológicas”, a iniciativa de recorrer à contratação de médicos estrangeiros, especialmente os cubanos.
Foi a Frente Nacional dos Prefeitos que promoveu uma ida em massa à Brasília com o objetivo de pedir ao governo federal a imediata contratação de médicos fora do país e a redução das exigências do CFM.  Muitos alegavam que nem oferecendo salários superiores aos das grandes cidades conseguiam atrair profissionais litorâneos para seus municípios.
Houve um caso, no município maranhense de Açailândia, a 559 km de São Luiz, em que a Prefeitura levou um tempo e teve de colocar anúncios em jornais de outros Estados para contratar um ortopedista, oferecendo a bagatela de R$ 35.000 por mês.  

E olha que
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não se trata de uma cidadezinha: com a maior renda per capita do Maranhão, 104 mil habitantes e uma crescente atividade empresarial, ela conta com um hospital municipal de médio porte, além de 43 estabelecimentos de saúde, dos quais 37 ligados ao SUS. Por acaso, o Estado do Maranhão é o que registra a menor relação médico-população – 0,7 por 1000 hab.

Se um município desse porte teve que apelar, que dirá a situação de mais dois mil municípios onde moram pessoas até hoje dependentes da medicina caseira, de curandeiros ou de longos deslocamentos para avistar alguém de jaleco branco.
Mas não foram apenas os do interior que pleitearam a imediata contratação de médicos de fora para implementarem o programa saúde da família. O prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio, em encontro com a presidente Dilma Rousseff, defendeu  a contratação de médicos estrangeiros para atuar em hospitais da rede pública da Capital. Para ele, seria uma forma de atender às reclamações de gestores municipais de todo o País sobre a falta de profissionais interessados em trabalhar nas periferias das grandes cidades.
Brasileiros recusaram incentivos do governo
Toda a classe médica está sabendo que de há muito o governo federal vem incentivando à interiorização de profissionais.  Além do Programa Nacional de Valorização do Profissional de Atenção Básica – o Provab - , o Ministério da Saúde, em conjunto com o da Educação, incluiu no mesmo pacote o Programa Pro - Residência,  que prevê a abertura de residências médicas para formação de profissionais nas especialidades e nas regiões onde são necessários.  
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Ofereceu também  abatimento no saldo devedor do FIES,  financiamento da Caixa Econômica, com valores proporcionais ao período em que trabalharem em um dos 2.282 municípios (40,7%) oficialmente com carência de profissionais na atenção básica.
No entanto, muitas prefeituras não conseguiram implementar o Provab, programa que também oferece curso de pós-graduação em Saúde da Família, e uma bolsa mensal do governo federal no valor de R$ 8 mil durante um ano. Neste ano, o Provab recebeu 4.392 médicos nos serviços de atenção básica de saúde em 1.407 municípios. Esses números correspondem a menos de 30% da meta estabelecida.
Uma geração voltada para a medicina robótica
Parece claro que o grande problema está na didática manipulada sob influência de quem ganha excessivamente com o tratamento das doenças, em grande parte  resultantes da falta de informação adequada. Embora muitas das faculdades de medicina tenham problema até de cadáveres, o jovem sonhador, que veio de colégios caríssimos e ganha casa, comida e roupa lavada às nossas custas, é induzido a concentrar-se na medicina robótica, em que não terá de queimar a mufa e recorrer à sua sensibilidade, talento e vocação. E provavelmente não lhe passa pela cabeça a dívida que teria de saldar pela habilitação onerosa a custo zero para ele.
Como os pilotos dos jatos modernos, nossos acadêmicos embarcaram na dependência de diagnósticos por aparelhos de alta tecnologia, ao contrário que acontecia com as antigas gerações, como a do meu irmão já falecido,  cearense formado na Universidade da Bahia, que salvou muitas vidas quando tais geringonças  não existiam.
Para alguns, provavelmente uma minoria, a farra do recurso à “medicina nuclear” tem outras motivações nada científicas, assim como no abuso de cirurgias, prática que já levou as autoridades norte-americanas a promoverem um choque contra os exageros, já nos anos setenta.
É muito deprimente que alguns médicos brasileiros tenham perdido a noção da realidade, por conta da manipulação inconsciente em que se envolvem. É claro que os avanços tecnológicos não podem ser recusados, mas o conhecimento do paciente em toda a intimidade, como acontece no sistema do médico de família é muito mais eficaz, principalmente quando a ele se tem acesso antes de contrair doenças evitáveis pela orientação preventiva.
Muitos médicos brasileiros, porém, se sentem ameaçados e não querem nem ouvir falar em cuidados profiláticos e em políticas mais permanentes, como o saneamento  básico e a educação alimentar, que reduziriam ao mínimo as filas nos consultórios, clínicas e hospitais. Pelos mesmos motivos esses profissionais se recusam a receitar genéricos, induzindo pacientes a acreditarem que não são medicamentos confiáveis.


Veja no que dá a febre de exames como a ressonância
Gestão da saúde nas mãos de médicos de alto a baixo
Independente de preferências ideológicas é preciso reconhecer que, embora tenha o maior orçamento do país em relação a outras áreas, inclusive educação, a saúde pública brasileira é extremamente precária.  Somando os orçamentos da União, estaduais e municipais, chegamos a R$ 150 bilhões em 2012 e a população continua apontando o sistema de saúde como o maior vilão do serviço público.
É preciso lembrar que toda a rede pública está em mãos de médicos, do Ministério da Saúde ao diretor do posto local. Não é honesto abstrair essa informação básica. Médicos costumam fazer lobbys, procurar políticos e apoios classistas para assumirem as direções e os orçamentos das unidades de saúde, cortejadas por inescrupulosas máfias de fornecedores e prestadores de serviços.
Muitos sequer têm conhecimento de administração hospitalar,  mas não medem expedientes para ter uma nesga do poder na área.  Quando um profissional alega que  falta tudo numa unidade de saúde, e falta mesmo em muitos lugares, ele tende a culpar os governos, que podem também ser responsabilizados. Mas e o seu colega que trocou o paciente por uma chefia? E o material que some como um fato consumado e corporativamente abafado?
Compras superfaturadas, relacionamentos promíscuos com fornecedores e tolerância com colegas que não aparecem (lembram do caso recente no Hospital Salgado Filho, do Rio de Janeiro?) são praticados por colegas sob o constrangimento do corporativismo: o diretor de hoje pode ser o subordinado de amanhã e vice-versa.
Tudo isso se junta na barricada contra o modelo preventivo, que é desprezado mesmo  nas unidades públicas criadas com esse fim, como acontece nas clínicas de saúde da família  implantadas pelo prefeito Eduardo Paes, no Rio de Janeiro. Aí, além das barreiras corporativistas, pesa também a falta de informação da população, que não faz diferença entre uma clínica dessas e uma UPA de pronto socorro.
Temos, portanto, um impasse de natureza conceitual. No Brasil onde todos querem se dar bem da noite para o dia, é cada vez mais difícil reformular as políticas de saúde, sem que haja um movimento de fora para dentro do sistema, pensando  primeiro na população,  sem que isso signifique postar-se contra a corporação.
É sobre a necessidade de mudar que escreverei meu próximo artigo.
PEDRO PORFÍRIO  é jornalista, escritor e teatrólogo. Tornou-se repórter muito jovem e exerceu várias funções públicas, como Secretário Municipal de Desenvolvimento Social por duas vezes, bem como mandatos de vereador no Rio de Janeiro em 4 legislaturas.
Matéria Lincada de: 

Continue Lendo sobre este Assunto:

Por que os médicos cubanos assustam? http://maranauta.blogspot.com.br/2013/05/por-que-os-medicos-cubanos-assustam.html

 Médico Pedro Saraiva opina sobre a vinda dos 6.000 médicos cubanos. http://maranauta.blogspot.com.br/2013/05/pedro-saraiva-sobre-vinda-dos-6000.html

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