10 jun 2011
in Imprensa
Tags:charges, crônicas, ditadura militar, henfil, humor, istoé, redemocratização.
Felipe Torres Bueno - Lailiane Freitas Moreira - Laiza Ferreira Kertscher.
“Procuro dar o meu recado através do humor.
Humor pelo humor é sofisticação, é frescura.
E nesta eu não estou: meu negócio é pé na cara.
E levo o humorismo a sério.”
Humor pelo humor é sofisticação, é frescura.
E nesta eu não estou: meu negócio é pé na cara.
E levo o humorismo a sério.”
Henfil
Resumo: Com o período da redemocratização do Brasil
no final da ditadura militar como plano de fundo, esse artigo busca
analisar as crônicas e charges de Henfil publicadas na revista ISTOÉ em
1977. O cartunista está entre os maiores – senão o maior – nomes do
desenho humorístico brasileiro e sua importância no processo de
transição democrática do país é inegável. Através de traços tortos,
metáforas, disfarces na linguagem e muito humor, Henfil construiu uma
das mais significativas formas de oposição ao regime militar. Ao dar voz
ao personagem Ubaldo o paranóico e nas crônicas Cartas a mãe,
o cartunista conseguiu driblar a repressão e discutir pensamentos e
ideias abafadas pela ditadura. O estudo e a análise dos assuntos
retratados por Henfil ajudam a compreender como se deu o desfecho da
ditadura militar no Brasil, até chegarmos ao período democrático.
Palavras-chave: humor – ditadura – charge – crônica
Abstract: Using Brazilian
redemocratization period at the end of military dictatorship as
background, this article pursuit to analyze Henfil’s chronics and
cartoons published in ISTOÉ magazine in 1977. The cartoonist is among
the biggest – if not the biggest – names in Brazilian humorous drawing
and his importance in the process of democratic transition of the
country is undeniable. Through crooked lines, metaphors, disguises in
language and a lot of humor, Henfil built one of the most significant
opposition ways to military rule. By giving voice to the character Ubaldo the paranoid and by the chronics Letters to Mom,
the cartoonist managed to circumvent the repression and discuss
thoughts and ideas stifled by the dictatorship. The study and analysis
of those issues portrayed by Henfil help to understand how was the
outcome of military dictatorship in Brazil, until we get to the
democratic period.
Palavras-chave: humor – dictatorship – cartoons – chronics
Introdução
A democracia como conhecemos e como o mundo hoje amplamente discute
teve ao longo dos tempos entraves em seu exercício. Esse artigo visa
resgatar dados para reconstruir a imagem de um período da história que
ficou conhecido pela sua intransigência e suspensão dos direitos dos
cidadãos. Os governos de cunho antidemocrático faziam parte do cenário
político na América Latina. No Brasil, a ditadura militar teve início em
1964 e durou até 1985, mas deixou para trás um período com muitas
lacunas. Ao partir desse problema de pesquisa, esse trabalho busca
completar uma parte desse complexo quebra-cabeça, agravado pela forte
censura praticada na época. A pesquisa em livros, artigos e documentos
em geral revelou uma parte pequena da população, que apesar de
reprimida, ainda se colocava contra o autoritarismo. Recolher o discurso
da oposição se fez importante no trajeto da construção do artigo.
Nesse contexto, destaca-se com um dos mais notáveis integrantes dessa
oposição, que representou com louvor a opinião e ideias compartilhadas
por muitos, o cartunista Henfil. Sua obra, bem como sua importância
política e na manifestação da opinião de uma parte da população, foi
delimitada como objeto de estudo dessa pesquisa. De seu extenso trabalho
em jornais e revistas, optou-se pela análise de suas charges e crônicas
publicadas na revista ISTOÉ, já no período de distensão política do
país, no final dos anos 70. Através de metáforas, ironia e um humor
ácido, Henfil expunha ideias e dizia o que grande parte da população
engajada na luta pela democracia gostaria de poder dizer. Com isso, um
dos objetivos desse trabalho é analisar como essa postura irreverente de
Henfil se posicionava contra o autoritarismo. O primeiro ano de
publicações semanais de Henfil na ISTOÉ, 1977, foi escolhido como
período a ser estudado, ano em que a censura estava menos ativa e a
anistia dos perseguidos políticos já era discutida.
Preservar a memória é algo importante na medida em que serve de
instrumento para se pensar na sociedade e nas mudanças ocorridas nela.
Nesse percurso pesquisadores encontram cotidianamente dificuldades no
acesso a materiais que relatem o objeto de estudo. Durante a pesquisa
nos arquivos originais da revista ISTOÉ da Biblioteca Pública Estadual
Luiz de Bessa, em Belo Horizonte, Minas Gerais, foi constatado que em
seu acervo faltavam peças importantes para a construção do
quebra-cabeça. Várias edições da revista do ano de 1977 não constam mais
no arquivo da biblioteca, e delas apenas restaram vestígios como capas
rasgadas e páginas desprendidas. Das poucas edições que ainda restavam,
foram feitas fotocopias das páginas originais das publicações de Henfil
para análise e pesquisa.
Além dos textos de Henfil na ISTOÉ, o principal norteador para a
construção da pesquisa foi o livro “O rebelde do traço: a vida de
Henfil”. O livro lançado em 1996 traz a trajetória do cartunista,
contada por Denis de Moraes, que descreve os principais fatos da vida e
da obra de Henfil. O também cartunista Márcio José Melo Malta é outra
importante referência para os estudos, e suas pesquisas, bem como o
livro “Henfil: o humor subversivo” contribuíram para a construção do
artigo. Outras pesquisas previamente realizadas também colaboraram para o
conhecimento sobre a vida de Henfil.
Para contextualização histórica, serviram de apoio as pesquisas
realizadas por Cândida Emília Borges Lemos sobre o período da ditadura
militar e, principalmente, sobre a posição da imprensa no período. Obras
da jornalista Ana Maria Bahiana e do historiador Boris Fausto também
foram de grande importância para a compreensão da situação política em
que se encontrava o Brasil. Para uma melhor compreensão sobre a vida de
Henfil, que teve influência fundamental em seu trabalho, serviram como
base os documentários “Três Irmãos de Sangue”, dirigido por Ângela
Patrícia Reiniger, e “Henfil Plural”, idealizado pela TV Cultura.
De Ribeirão das Neves a ISTOÉ
Em 1944 o Brasil presenciava o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas e
o restabelecimento da democracia, quando, em Ribeirão das Neves, Minas
Gerais, nascia Henrique de Souza Filho (1944-1988), o Henfil. Filho de
Henrique de Souza e Maria da Conceição e criado sob a rígida moral
católica, os primeiros traços foram feitos ainda criança, quando
desenhava santos para sua mãe. Poucos anos depois de seu nascimento,
“Henriquinho”, como era chamado, se mudou com a família para a capital
mineira, onde deu os passos iniciais para a futura carreira de
cartunista e teve os primeiros contatos com questões sociais e políticas
(MORAES, 1996).
Henfil e seus dois irmãos, o sociólogo Herbert de Souza (Betinho) e o
músico Chico Mário, compartilhavam de uma doença hereditária que
incapacita o corpo de controlar sangramentos e compromete a coagulação
sanguínea, a hemofilia (MALTA, 2011). A doença trouxe complicações para a
vida dos irmãos, mas ao mesmo tempo, deu à eles mais vontade de viver e
reforçou outra herança, o sentimento de indignação com a injustiça,
herdado de Dona Conceição.
Henfil teve seu primeiro cartum publicado aos 17 anos, em um periódico da Juventude Estudantil Católica (JEC), onde começou a desenvolver sua visão política. Depois, com ajuda de Betinho, conseguiu o emprego de revisor da revista Alterosa
e foi lá que percebeu sua verdadeira vocação de cartunista, enquanto
divertia a equipe ao fazer desenhos pornográficos. Foi nessa época
também que Henrique Filho passou a utilizar a corruptela de seu nome,
Henfil (MORAES, 1996). A partir daí, ele passou a desenhar charges para a
revista e criou dois dos seus mais conhecidos personagens, Os Fradinhos.
O frade baixinho, que representava a esquerda, uma denuncia da
hipocrisia dos poderosos e o frade cumprido, o oposto, pois fazia uma
paródia do autoritarismo.
Depois vieram outros personagens, que sempre na fronteira do
atrevimento, criticavam o duro período da ditadura que vivia o país,
como a talvez mais conhecida de suas criações, Graúna. Henfil também passou por um dos críticos e bem humorados veículos de oposição na imprensa, o tablóide O Pasquim,
onde desenhou por muitos anos. Bahiana (2006) inclui Henfil no grupo
que ficou conhecido como “patrulheiros ideológicos”. Na segunda metade
dos anos 1970, aparentemente, toda a cultura, a mídia e a
intelectualidade brasileira era de esquerda. Com isso, algumas pessoas
desse grupo, mesmo que fossem contra a ditadura, faziam uma espécie de
“vistoria ideológica”, para fiscalizar se os outros membros da oposição
não haviam passado do limite.
Cada personagem criado por Henfil retrata uma frente de luta de seu
criador, que junto ao seu humor afiado, representou uma das principais
manifestações da oposição do período militar. Outro personagem famoso, Ubaldo o paranóico, tinha suas charges publicadas ao lado das crônicas que Henfil intitulava Cartas a mãe, que inicialmente foram publicadas no Pasquim, mas
em março de 1977 passaram a ser um item semanal da revista ISTOÉ. Lemos
(2008) descreve o nascimento da revista em 1976, durante o processo de
abertura política, e portanto, com a tesoura da censura menos ativa. A
ISTOÉ apresentava uma visão mais à esquerda e reunia um rol de
jornalistas veteranos, com artigos assinados, em que eram manifestadas
opiniões voltadas para a busca pela democracia.
Foi nesse contexto em que eram publicadas as Cartas a mãe,
crônicas na qual Henfil manifestava idéias políticas sobre o regime,
como se conversasse com sua mãe. A figura de Dona Conceição era usada
como um escudo, pois segundo o próprio Henfil, ninguém poderia se
intrometer em uma relação de filho pra mãe (REINIGER, 2006). As crônicas
e as charges de Ubaldo resistiam através metáforas, jogos de imagens e
disfarces excessivos de linguagens, mas durante os sete anos de sua
publicação, representaram um alívio e um fio de esperança para os
engajados na luta pela democracia (MORAES, 1996).
A paranóia de Ubaldo: o retrato do medo no Brasil
Ao partir de uma análise comportamental das pessoas em pleno regime
ditatorial, Henfil cria um personagem baseado na onda de medo em que a
população vivia. É a partir da observação que “Ubaldo o paranóico”
nasce. Visto isto, a identificação de parte dos brasileiros com a figura
cômico-trágica do quadrinho é inevitável. Com um toque de humor ácido a
tirinha passou a integrar às suas crônicas, Cartas a Mãe, que eram
publicadas semanalmente pela revista ISTOÉ.
Nos textos de Henfil, seja numa leitura de seus desenhos ou mesmo nas
crônicas, era possível constatar um discurso de esquerda, de
posicionamento contrário à ditadura, bem como as conseqüências por ela
trazidas. Não satisfeito com esse quadro opressor, o cartunista e
articulista passa a denunciar a censura do governo militar, a
intransigência e tortura, a forte campanha de alienação das massas
através de falsas propagandas do governo e a desigualdade social gerada
por um imbróglio modelo desenvolvimentista.
Criado em 1975, numa parceria com jornalista Tárik de Souza, Ubaldo
foi inspirado em seus criadores e em tantos outros intelectuais da
época. “Características de Tárik – a barba e o cabelo comprido –
e dele próprio – como o hábito de andar de sandálias de couro, para não
apertar os dedos dos pés” (MORAES, 1997, p.219). Assim, foi
assimilada no quadrinho a personalidade de Henfil e Tárik, como a forma
de agir e a paranóia obsessiva de perseguição frente às situações
recorrentes em relação ao terror da tortura. As cenas sempre apresentam a
figura da charge em uma situação de medo eminente. Sobre esse episódio
Souza relata:
Ambos nos acusávamos de paranóicos – e não faltavam razões de todas
as ordens para que estivéssemos certos. (…). Até que resolvemos
transformar num personagem de papel e traço essas inquietações comuns.
Naquele tempo, os arrastões eram feitos pelos militares, que já
manifestavam preferência tétrica finais de semana. Muitos amigos
desapareceram assim. (SOUZA, 2006: 8).
Desta forma, Henfil, ao desenhar charges como Ubaldo traz a tona
muitas características da sociedade que vivia sob a ditadura, e satiriza
o fato do grande temor de todos. Ubaldo não denuncia o regime e nem faz
nada que possa ser considerado revolucionário, apenas receia ser
perseguido e reprimido, para tanto em nenhuma charge ele cria uma
situação que possa colocá-lo em oposição ao regime militar. Ao
contrário, ele evita palavras de ordem como constituição, protesto,
civil, diálogo, parada, entre outras. Além de sempre se precaver e fugir
de pessoas ligadas às ideias da redemocratização. Ele vive uma
constante paranóia de perseguição, fato que o impede de expor livremente
suas opiniões e que o coloca como vítima do regime.
O traço do personagem é simples, não há detalhamento rebuscado dos
braços, cabelos, pernas, roupas e não explora a ambientação do cenário. A
personificação da figura do paranóico está manifestada no olhar, na
expressão facial. A técnica do desenho explora os movimentos, algo
importante para se dar dimensão do posicionamento de Ubaldo frente às
situações de pensamento antagônico à repressão.
Bandas, cavalarias, e… censura?
Diferente dos cartuns, as charges nem sempre são divididas em quadrinhos. E não era diferente com as histórias de Ubaldo o paranóico,
em que muitas vezes suas imagens eram dispostas sem organização
definida. Mas havia casos em que Henfil utilizava do quadrinho como um
recurso adicional para sua charge, para melhor demonstrar mudanças na
atitude do personagem ou definir cada quadrinho como uma cena distinta.
E uma desses casos foi na charge do dia 7 de setembro de 1977 (ISTOÉ,
nº 37, p. 82). No dia em que a independência do Brasil completava 155
anos, Henfil não pôde deixar tornar burlesca a paranóia de Ubaldo também
na data comemorativa. Logo nos primeiros quadrinhos, o personagem
demonstra com empolgação seu desejo de ir ao desfile de comemoração da
independência do país. Ubaldo também mencionou seu apreço por itens
característicos da parada, como as bandas, a cavalaria e os tanques.
Mas, logo em seguida, Henfil usa um quadrinho completamente em
branco, sem qualquer traço. Uma cena que visualmente não diz muito, mas
que no contexto histórico do período pode ter vários significados.
Depois da demonstração do interesse do personagem por um desfile de
exaltação ao Brasil, o quadrinho em branco pode significar a censura ao
próprio sentimento nacionalista de Ubaldo. A censura prévia da palavra
escrita e das imagens publicadas e publicáveis, através do decreto-lei
no. 1.077 de 26 de janeiro de 1970, proibia sumariamente qualquer
manifestação considerada contra o regime, tais como menções positivas
que pudessem ser tomadas como divulgação de indivíduos considerados
inimigos do governo vigente ou vistos como ameaça a sua soberania
(BAHIANA, 2006).
Embora em 1977 o Brasil estivesse às vésperas da abolição da censura,
Henfil satiriza o sentimento de privação das exposições de ideias
contrárias ao regime que ainda preocupava os opositores. Ubaldo, que
sempre prenunciava um perigo eminente, teme que sua manifestação de
interesse por itens que exaltem o nacionalismo, seja interpretada como
uma provocação e logo desiste da ideia de participar do desfile.
Uma conversa com o presidente
“Dona Maria de Deus!”. Foi acompanhado dessa interjeição que Henfil
iniciou a crônica em forma de carta para sua mãe, publicada no dia 7 de
setembro de 1977 (ISTOÉ, nº 37, p. 82). Nela, o cartunista disse ter
acabado de chegar de uma conversa “de bastidores”, na qual ele teria
sido convocado para discutir uma proposta com o presidente. Logo de
início, já afirmou que estava disposto a trocar sua tara por pés pela
volta de seu irmão no Brasil. O irmão de Henfil, como foi homenageado na
canção “O Bêbado e a Equilibrista”, famosa na voz de Elis Regina, era
Betinho, importante sociólogo e ativista político, que se encontrava
exilado do país naquele ano.
Segundo Malta (2011), Betinho sempre serviu de parâmetro para o
irmão, e seguiu seus passos na luta pela redemocratização do Brasil. A
tara por pés, por sua vez, era uma paixão conhecida de Henfil. Quando
pequeno, sua mãe cortava os corpos das mulheres de maiôs nas revistas, e
restava ao pequeno Henfil se fixar no que sobrava: os pés das moças. E
como ele mesmo se definia, acabou por se tornar o maior tarado por pés
(MILAN e GUERRA, 2009). O humor, elemento essencial nas crônicas e nos
quadrinhos de Henfil, pode ser notado quando ele brincou ao dizer que
não sabe se o irmão valeria esse sacrifício, mas disse que depois
pediria o habeas corpus. A garantia constitucional, que na
época estava suspensa pelo Ato Institucional nº5, é mais uma alusão à
luta pelos direitos democráticos do país.
A tara bem como a coleção de pares de sapatos foram usadas como
representação de algo de grande importância para Henfil, mas que ainda
assim ele ofereceu em troca da volta do irmão exilado para o país. Ao
usar como exemplo uma hipotética conversa com o então presidente Ernesto
Geisel, cujo nome não é citado, Henfil se mostrou engajado na luta pela
anistia política. Os perseguidos políticos eram representados na
crônica pela figura de Betinho. Luta pela qual Henfil não hesita em
trocar seus “valiosos sapatos” e disse ter entregado tudo para o
presidente.
A luta pela redemocratização e a posição política de Henfil ficaram
claras quando, na conversa fictícia, o presidente colocou algo no bolso
de Henfil e disse ter devolvido o poder aos civis. Henfil logo afirmou
não ser o representante ideal para os brasileiros graças a elementos
estrangeiros e capitalistas que sempre estiveram presentes em sua vida.
Em sua justificativa, ele diz que toda essa influência externa, além de
não lhe dar legitimidade para ser considerado um representante dos
brasileiros, tornava ilegível toda a sua intelectualidade. O cartunista
ainda citou exemplos da cultura pop, em sua maioria, tipicamente
norte-americana que influenciou a ele e a outros jovens da época, como o
rock, produtos de marcas famosas e até Walt Disney.
Por fim, Henfil afirmou ser o operário civil, o representante ideal
que indicaria para o poder do Brasil. No final da década de 70, o
cartunista começou a desenhar para a imprensa sindical, e quando
conheceu a liderança que estava mudando os rumos do sindicalismo no
Brasil, o então metalúrgico Lula (Henfil: Filho Do Brasil, 2008). Essa
sua fase de militante de esquerda levou a fundar, junto com o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o PT (Partido dos
Trabalhadores) (FENAE, 2005).
Avanços e retrocessos da distensão política
O final da década de 1970 veio como a promessa de abertura política.
Porém não foi só um momento de avanços nos direitos constitucionais,
houve também recuos. A população brasileira estava esperançosa de que
enfim o país pudesse respirar e agir com naturalidade ao expor suas
ideias. O caminho para esse resultado foi complicado e representou
tensões de várias partes. O povo que ansiava pela redemocratização, a
facção linha dura da ditadura que não queria rachar com o regime
ditatorial, e a linha branda dentre os militares, conhecida como o grupo
Sorbonne, os responsáveis pela viabilização do retrocesso do governo
militarista (LEMOS, 2009).
O cartunista Henfil em seu quadrinho do dia 14 de setembro de 1977
(ISTOÉ, nº 38, p. 86) refletiu sobre o momento de instabilidade, que ora
tendia para uma abertura, ora dirigia-se para um cerco feito de leis
autoritárias. Nesse impasse, o último quadro da charge traz um menino
segurando um catavento, objeto com a qual o governo do presidente Geisel
fez as comemorações em 1977 do dia da independência.
A figura do garotinho e seu brinquedo
movido a vento representam algo que é recorrente, cíclico, que sempre
volta ao um mesmo ponto. O regime militar teve seus períodos de
afrouxamento e tempos de extremo rigor e intolerância. Além também de
reproduzir a idéia dos regimes totalitários na Europa, como o fascismo e
o nazismo, em que num momento crítico de desconfiança e temor, crianças
e pessoas aparentemente inofensivas poderiam significar espiões do
governo. Muitos jovens chegaram de fato a servir a esses regimes, e
assim os pais tinham de ser cautelosos ao conversar sobre questões
políticas sem que seus filhos ouvissem.
Algo bem semelhante nesses regimes eram a manipulação através das
propagandas e a da educação, sobre isso Carvalho (2007, p. 9-10) comenta
que “o fascismo perpetua-se com uma Nação submissa, sem espíritos
críticos, sem vontades individuais, mas com “uma alma coletiva”. Os
ideais fascistas, eram inculcados, primeiramente, nos jovens, pois se
considera que as crianças, antes de pertencerem às famílias, pertenciam
ao Estado.
Ubaldo sempre temeroso frente à situação do Brasil se esquivava de
todas as formas das discussões a respeito dos progressos e da
resistência do governo relativo à proposta de uma nova
institucionalidade. Um cidadão então se dirige ao personagem e afirma
que só em 1978 decidiriam sobre a ação que estabeleceria novas leis de
caráter democrático. Significa aí a pugnação do governo na decisão do
novo projeto político, que na figura do presidente Geisel estava
associado ao “pacote de abril”, um plano de medidas para conter o avanço
da oposição, o partido MDB.
As propagandas do governo e a censura à imprensa
A censura à imprensa foi instaurada junto ao golpe de 1964 com a
finalidade de se autenticar o regime militar e foi instrumento de
controle dos militares para se criar uma boa imagem do país. Apesar de
fazer um retrato bonito de uma nação, essa imagem era ilusória. Esse
processo de alienação da população dava-se por meio de proibições aos
meios de comunicação em propagar o descontentamento e pensamentos
contrários à ditadura. Além disso, também vetava a disseminação de
filmes, livros, músicas e estudos históricos que reforçassem uma
ideologia de tendência esquerdista ou mesmo qualquer possibilidade
contestatória ou libertária.
A exemplo disso, Henfil, em sua crônica semanal publicada na revista
ISTOÉ no dia 14 de setembro de 1977 (ISTOÉ, nº 38, p. 86), evidenciou a
forma como a imprensa transmitia sua programação de teor ufanista, mais
especificamente a “TV Blim Blim”, forma como o cronista gostava de
chamar a Rede Globo. Ao citar o programa Globo Repórter, ele
pretendia ilustrar o que seria a forte campanha do governo de criar uma
visão positiva do Brasil, um país de grande extensão, de vasta natureza
e de diversidade étnica. Martins explica esse esquema de legitimação do
governo militar por meio dos meios de comunicação:
Em sua maioria, os meios de comunicação compartilhavam com o regime,
na fase áurea do milagre econômico brasileiro, sua proposta
político-econômica excludente. O governo exercia um forte controle sobre
os meios de comunicação que tendiam, obviamente a apoiá-lo. Através de
uma política de concessão de licenças ou registros para atuação de
emissoras de televisão, jornais, revistas, etc., o governo criava uma
espécie de vínculo político que, de certa forma, convertia o apoio
inicial dado pelo Estado aos donos das empresas de comunicação em
dividendos políticos, criando assim uma poderosa infra-estrutura no
nível da propaganda ideológica. (MARTINS, 1999, p.15).
E assim o antivestibular, palavra citada para caracterizar uma
sociedade que está ilhada da informação, é também a representação do
falso sistema de seleção de estudantes ao ingresso do ensino superior,
que cobrava nas provas um conhecimento sobre pontos da história
proibidos de serem falados. Sem o acesso ao conhecimento e com a
desconstrução da visão crítica através da repressão do governo à
imprensa, as pessoas tinham uma visão limitada e equivocada sobre
assuntos de viés político e sobre tudo o que estava acontecendo no
mundo.
Henfil, ao final da crônica, fez uma desconstrução das propagandas do
governo antidemocrático. Ele formulou perguntas sobre essas campanhas
publicitárias e frases de ordem do momento, sejam a favor ou contrárias à
ditadura. Assim, Henfil ironicamente responde com uma das campanhas do
governo Geisel o que seria um povo desenvolvido. Propaganda que ficou
famosa por ter criado o emblemático personagem Sujismundo, explorava a
noção de que “povo desenvolvido é povo limpo”. E segue, ao dizer que a
liberdade é “uma calça velha, azul e desbotada”, em alusão ao movimento
Tropicália, aos Mutantes, a Caetano Veloso e a Gilberto Gil que
propuseram uma difusão da cultura.
Ao questionar o que seria inflação, ele cita o verso “Digo: não” da
música “É proibido proibir”, de Caetano Veloso. “Quantos partidos
existem no país?” foi a indagação que permitiu expor o quanto
antidemocrático o regime era, isso estava expresso na frase da campanha
do regime “Brasil: ame-o ou deixe-o”.
Ao se discutir sobre a renda per capita, a reposta não
poderia deixar de ser sarcástica frente à discrepante desigualdade
social que assolou o país no período de 1968-1985, “Mexa-se!” era o
discurso da política nessa época para que unidos e munidos da força de
trabalho os brasileiros pudessem construir um futuro promissor.
O governo também tentou inculcar na cabeça das pessoas a noção de uma
nação grande, de pessoas iguais, apesar da diversidade. Dessa maneira,
sobre a pergunta quantas raças formaram o Brasil, Henfil responde com
uma frase do jogador de futebol Pelé, que disse que “o Brasil foi feito
por nós, mas nós ainda não estamos preparados para democracia”.
(citação) A propriedade do futebol nas suas inúmeras vitórias e a
importância para a população brasileira levou o governo a explorar e
propagar valores progressistas como, “90 milhões em ação, para frente
Brasil salve a seleção!”, música sobre o êxito da seleção na Copa do
Mundo do México em 1970, que reforçou o poderio do país e a idoneidade
dos estadistas.
Esse jogo de perguntas e repostas se encerra com o trecho da música
“Eu te amo, meu Brasil” (DOM, 1970), de uma propaganda do governo no
objetivo de exaltar o país. O verso em questão é “Aí vão ver que ninguém
segura a juventude do Brasil” e está em diálogo com a lição passada por
Henfil sobre todas essa indagações lançadas por ele como forma de
refutar o sistema do governo que propiciava uma desinformação em massa,
que deixava estudantes sem memória histórica, soltos dentro de um tempo
na qual eles não podem refletir.
A gente te vê por aqui
Na charge do dia 21 de setembro de 1977 (ISTOÉ, nº 39, p. 82), Henfil
mostra como nem ao assistir televisão, Ubaldo conseguia se ver livre de
sua mania de perseguição. Pelo contrário, para o personagem, durante um
simples momento de lazer, ele poderia ser alvo de um dos meios de
manipulação do regime ditatorial. Logo no primeiro quadrinho, Ubaldo
sentado em frente ao aparelho televisor, se pergunta se além de assistir
a televisão, ela não poderia assisti-lo também. O personagem logo se
prepara para desligar o aparelho, quando surge o logotipo da Rede Globo na tela com o seu famoso “blim blim”, que instantaneamente assusta Ubaldo.
O logotipo da Globo apareceu como uma metáfora, de um olho
que observa quem o assiste. Desde sua fundação, em pleno regime
ditatorial, a Globo já exercia grande influência sobre os brasileiros.
Lemos (1988, p. 6) descreve o nascimento da TV Globo Rio, em 1965, ainda
aliada à companhia norte-americana Time-Life. Anos depois, a
Globo é nacionalizada, mas desse período ficaram o método empresarial de
direção norte-americano. Com a criação do primeiro telejornal em rede
brasileiro, o Jornal Nacional, a Globo foi sintonizada por todo
o país e começava a criar sua supremacia sobre as outras redes de
televisão. A nova rede de TV brasileira florescia sob a influência da
ditadura militar, e seguia como um auxílio na divulgação para as
campanhas ufanistas do governo.
Ainda assustado, Ubaldo dialoga com a televisão, e se justifica ao
dizer: “Tava brincado! Tava só brincando, Doutor! (sic)” (HENFIL, 1977,
p. 82). O “doutor” tão temido por Ubaldo era Roberto Marinho, então
diretor-presidente da Globo. Ubaldo, ao se dar conta que também estava
sendo “assistido” pela Rede Globo, logo teme a força política de Roberto
Marinho e de sua rede de televisão, que assumiu um papel importante na
legitimação de propostas do governo militar e foi utilizada como
instrumento importante para promover idéias em favor do governo.
Henfil, Diaféria e o medo
Em uma das crônicas mais claramente direcionadas aos militares, o
assunto da carta à Dona Maria do dia 21 de setembro de 1977 (ISTOÉ, nº
39, p. 82)é o medo. O temor que a população sentia de seus então
governantes, mas que não podia sequer ser demonstrado. Henfil começa com
justificativas à mãe, e já avisa que o que tem pra falar é algo que
interessa não só aos militares, mas principalmente a todos os
brasileiros. O cartunista tranquiliza a mãe, e diz que sabe lidar com
situações difíceis e que não vai se envolver em problemas.
O que inspirou Henfil a tratar do assunto foi o caso de Lourenço
Diaféria, cronista que foi preso e processado por ter escrito “Herói.
Morto. Nós.” na “Folha de São Paulo”, em 1977. A crônica homenageava o
heroísmo do sargento Silvio Hollembach, que morreu ao cair num poço de
ariranhas no zoológico de Brasília para salvar um garoto. No texto, o
cronista também citou o Duque de Caxias, e a menção foi considerada uma
ofensa ao Exército Brasileiro pelo autoritário governo Geiseil e pelo
então Ministro do Exército Silvio Frota (Folha de São Paulo, 1980).
Inicialmente, Henfil descreve como a identificação com o caso lhe
provocou medo, mas ele logo acrescenta e provoca, ao dizer que sentiu
mesmo foi decepção ao ver que os “fortes” militares se deixaram atingir
por uma simples crônica.
O cartunista sintetiza o problema ao definí-lo como a falta de
aceitação dos militares para o fato de que as pessoas possam temê-los, e
não apenas respeitá-los. Mas ao mesmo tempo que critica, Henfil é
cauteloso em sua provocação, e usa seu humor afiado para expor uma
explicação. Como se conversasse amigavelmente com os militares, ele
afirma que se as pessoas os feriam, não era por não gostarem deles, mas
que essa agressão era apenas um mecanismo de defesa de alguém temeroso.
Medo esse que admitiu lutar contra para escrever a crônica em defesa à
Diaféria, mas também para que se pudesse enfim respeitar os governantes
do Brasil, sem adesismo, adulação ou oportunismo.
Muito mais do que atacar agressivamente o governo militar, as
críticas de Henfil eram um forma de instigar quem lia suas crônicas e
charges a refletir sobre a situação então vivida pelo país. E foi nessa
linha de ponderação e com muito humor que Henfil terminou sua defesa. O
cartunista propôs que, ao invés de atacarem a Diaféria com um processo,
os militares lhe respondessem com outra crônica. E se ele
contra-atacasse com um poema, os responderiam com outro “com todas as
redondilhas e sextilhas”.
Os ventos que fazem o Brasil
Na charge Catavento II (Final), que acompanha a crônica publicada na revista ISTOÉ do dia 19 de outubro de 1977 (ISTOÉ, nº 43, p. 82), na seção Cartas a mãe,
Henfil critica a abertura econômica brasileira ao capital estrangeiro e
a vinda de diversas multinacionais para o país. Essa abertura aconteceu
durante o período do Milagre Econômico, que durou de 1968 até 1973,
quando ocorreu a crise do petróleo. As medidas tomadas nesse período
geraram um aumento exorbitante na dívida externa brasileira e acentuou a
dependência do capital estrangeiro. Outras conseqüências também
afetaram o país, como a enorme concentração de renda por uma parte
determinada parte sociedade em detrimento da maioria. Na charge ficam
explicitadas essas questões, além de criticar o uso das propagandas
ufanistas, ao utilizar mais uma vez os desenhos de cataventos.
No quadrinho, o Cartunista desenha um homem de terno, que seria
responsável por uma das multinacionais instaladas no Brasil. Esse
personagem cobra a conta de pela utilização do vento de outro cidadão
que utilizava o catavento, com a seguinte frase: “isto ser à conta do
vento…” (HENFIL, 1977). Sobre o cenário econômico do Brasil na década de
1970, Fausto relata:
Um problema existente desde a fase do “milagre” residia no fato de
que o crescimento econômico acelerado tinha como alavanca importante a
capacidade ociosa das empresas [...]. Para continuar crescendo seria
necessária ampliar o investimento, contando com novos e maiores recursos
externos, pois a poupança interna era insuficiente. Esses recursos não
faltaram. Eles entraram no país principalmente sob a forma de
empréstimos. Daí resultou porém o aumento da dívida externa, tanto
pública como privada (FAUSTO, 2009, p. 497).
O catavento foi utilizado pela primeira vez pelo Regime Militar na
década de 70, quando lançou mais uma de suas campanhas Ufanistas, desta
vez com o slogan “O Brasil é feito por nós”. De acordo com Alves, outro slogan muito
divulgado na década de 70 foi: “O Brasil é feito por nós”, no qual
podemos perceber que o enunciador busca identificar todos os cidadãos em
um mesmo espaço, dessa forma a construção do país passa a ser de
responsabilidade de todos. No entanto, é possível perceber certa
contradição entre a idéia de construção em conjunto (feito por nós) e o
símbolo usado para representar esta construção, o cata-vento. Este é um
objeto não estático que se move com a ação do vento. Pode-se então ver
um “nós” simbolizando o governo e assim são eles os que fazem o país, e
um cata-vento simbolizando o povo que é levado pelos ventos a fazer o
que os “construtores” do país querem que seja feito (ALVES, [200-], p.
2988). A Agência Nacional de Comunicação desenvolveu uma propaganda
ensinando a população a fazer um catavento verde e amarelo e
convocando-a sair às ruas com seus brinquedos em punho para comemorar a
Semana da Pátria.
Uma partida de futebol
Henfil, em sua crônica semanal do dia 19 de outubro de 1977 (ISTOÉ,
nº 43, p. 82), escreve para sua mãe comparando a situação política da
época com uma partida de futebol. O cartunista escreve como se fosse um
torcedor fanático pelo seu time e com esperanças de vitória, mesmo
depois de várias derrotas, mas ainda assim não consegue prever o
resultado do jogo. Porém o que estava em disputa não era uma partida de
futebol, e sim o futuro do país.
Em 1977 quem estava no poder era o General Ernesto Geisel, que
assumiu a presidência em 1974, após o fim do milagre econômico. O
general encontrou grande insatisfação de boa parte da população, e teve
que enfrentar os avanços legais dos partidos de esquerda naquele
momento. Devido a isso ele inicia o processo de abertura política do
país, que de acordo com ele seria gradual, lento e seguro.
Durante toda a crônica o autor faz menções e utiliza expressões
típicas do vocabulário esportivo. Por exemplo, ao descrever o quanto a
luta pelo fim da ditadura está mais intensa em todas as regiões do país e
como a “massa fiel” está cada vez maior, e demonstra com isso o grande
descontentamento de parte da sociedade com o Regime.
Em determinado momento do texto, Henfil relembra as eleições de 1974
ao dizer “quantas e quantas vezes nossos gols (legítimos!) não foram
anulados? Me lembro que conseguimos uma vitória limpa em 1974 e eles
conseguiram anular. Pô! Ganharam da gente no tapetão! E depois mudaram
as regras do jogo para evitar que chegássemos na liderança” (HENFIL,
1977). A eleição para Presidente da República ocorreu de forma indireta,
sendo eleito por um colégio eleitoral; já os Senadores e Deputados
Federais e Estaduais foram escolhidos de forma direta.
O MDB, partido de oposição ao Governo, conseguiu expressiva vitória
sobre a ARENA, partido da situação. Além disso, o MDB lançou a
candidatura do então deputado Ulysses Guimarães a presidência da
República, que saiu em campanha por todo país para denunciar o atual
governo. O MDB conseguiu conquistar 16 das 22 cadeiras do senado.
Segundo Gaspari,
O resultado das eleições de 1974 encurralou a ditadura. O MDB vencera
as disputas para senador em dezesseis dos 21 estados, indicando que
dentro de quatro anos conquistaria a maioria no Senado. (…) A ditadura
militar estava economicamente robusta (GASPARI, 2004, p.14).
No entanto, a ARENA continuou a ser maioria no Senado, pois por meio
de uma manobra política apenas uma parte da Assembléia oi renovada em
1974. O cartunista também critica em sua crônica a manipulação da
sociedade feita pelos generais militares, que através dos esportes,
obras faraônicas e campanhas ufanistas, conseguiram manter parte da
população acreditando que o Regime Militar era o melhor modelo a seguir,
além de não se preocupar em criar políticas de inclusão social.
Desta forma, Henfil termina seu texto acreditando que aquele ano será
diferente, com a efetivação do processo de distensão do regime e após
treze anos se dará o fim da Ditadura. “A benção do seu gavião da fiel,
HENFIL” (HENFIL, 1977).
O medo da máquina repressora
A paranóia de Ubaldo manifestava-se nos seus mais simples hábitos. O
cuidado para que não fosse pego pela máquina repressora da ditadura
tornou-se algo inerente nas suas ações. Ao sair de casa, o personagem,
na charge publicada na revista ISTOÉ do dia 9 de novembro de 1977
(ISTOÉ, nº 46, p. 98), previne-se de todas as formas. Ele leva consigo
todos os documentos que provam sua cidadania, para que numa provável
apreensão ele possa se retratar e assim apresentar-se como um homem
comum, afastado dos ideários contrários aos dogmas da ditadura.
Ubaldo teme ser preso. Previne sua mãe para chamar o Dr. Sobral caso
não volte para casa ao ir à banca de revista. Heráclito Fontoura Sobral
Pinto, o Dr. Sobral, foi um jurista brasileiro, com experiência em dois
golpes de Estado, o de Vargas e de 1964. Em ambos, ele dedicou seu
trabalho a defender os perseguidos políticos e fazer críticas pesadas ao
regime arbitrário, apesar de inicialmente ter sido a favor do golpe de
1964 por se dizer anti-comunista.
Quando percebeu o teor autoritário, ele se virou contra o governo e
passou a abarcar os problemas políticos e com o aparato repressivo de
artistas, políticos, jornalistas, estudantes e principalmente
religiosos. Ao examinar o discurso lingüístico da carta de Sobral em
retaliação ao governo militar, que o prendeu brutamente em detrimento de
supostas atividades subversivas no Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB), Habib cogita que o manifesto foi um simples revide e
comenta analiticamente sobre episódio:
O contexto da situação da represália vivida por Sobral Pinto
configura-se como o elemento desencadeador de seu protesto. Entretanto,
seu protesto não se restringe ao fato da represália sobre a sua pessoa,
mas em favor da situação daqueles que, injustamente oprimidos, não têm
como se defender depois da edição do AI-5, uma vez que esse ato cerceia
as garantias do Poder Judiciário e os direitos do cidadão brasileiro
(HABIB, 2008, p.123).
Abusos sofridos pela sociedade marginalizada
Sarna. É com essa palavra que metaforicamente Henfil começou a
escrever a sua crônica, Cartas à Mãe, no dia 9 de novembro de 1977
(ISTOÉ, nº 46, p. 98). Algo que provoca coceira incômoda, causa
desconforto. A sarna no texto vem personificada na figura de Hélio
Pereira Bicudo, jurista, militante dos Direitos Humanos e a pedra no
sapato de Erasmo Dias, Secretário de Segurança Pública do Estado de São
Paulo entre 1974 e 1979. Dedicado à vida em defesa da população diante
das dificuldades enfrentadas no difícil acesso à Justiça, Bicudo também
esteve engajado nas denúncias da atuação do Esquadrão da Morte,
organização militar que surgiu para procurar e matar criminosos
perigosos. No entanto o que estava acontecendo eram várias chacinas
promovidas pelos policiais militares, que ao contrário do objetivo real
da organização, não levavam em consideração a periculosidade dos
suspeitos. Sobre o abuso dos policiais, Bicudo comenta:
Os crimes cometidos por policiais militares no cumprimento de tarefas
relativas ao policiamento ostensivo, passaram, na prática, a ficar
impunes – julgando sempre o Tribunal de Justiça Militar da corporação,
com evidente esprit de corps ao absolver milicianos com apoio
em discutíveis interpretações de textos que contemplam circunstâncias
capazes de eximir a responsabilidade. (BICUDO, 1984, p.75).
Com sutileza nas abordagens pertinentes ao pensamento político,
Henfil mais uma vez faz uma indagação sobre o momento. Por que um país
sob uma ditadura militar e com uma grande extensão como o Brasil não
existem presos políticos? Em comparação feita por ele com outros países
em regime ditatorial, é possível constatar a virulência das ditaduras no
cenário da América Latina. A resposta para a pergunta está associada à
perseguição e assassinatos de pessoas contrárias ao governo. Bicudo
(1984, p. 76) atribui o crédito de centenas de mortes ao militares,
ocorridas em operações típicas de guerra em países submetidos à ocupação
militar, deflagradas contra os pobres e os marginalizados, sobre o
pretexto de combater uma criminalidade crescente.
Lei do Ventre Livre
A crônica de Henfil, publicada em 28 de dezembro de 1977 (ISTOÉ, nº 53, p. 74), na seção Cartas a mãe da revista ISTOÉ, faz uma releitura da Lei do Ventre Livre,
no dia em que se comemorava 106 anos desde sua promulgação, em 1871. A
Lei assinada pela Princesa Isabel previa que todos os filhos nascidos de
mulheres escravas a partir daquela data estariam livres, o que
possibilitaria transição gradual do regime de escravidão para a mão de
obra livre.
Na crônica quem sanciona a Lei é a Princesa Dona Conceição, mãe de
Henfil, a quem era direcionada todas as crônicas desta seção. A mãe do
cartunista ficcionalmente decreta que a partir daquele dia todos seriam
livres, e teriam o direito de votar e escolher seus representantes, além
de garantir e discutir vários outros direitos e temas pertinentes ao
período.
Em 1977 o processo de abertura política já havia começado, mas
caminhava a passos lentos, como queriam os Militares. Porém as
movimentações por parte dos grupos de esquerda e do movimento estudantil
eram intensas. Sobre esse período Lemos (1988) comenta:
1977 foi o ano do grito político dos estudantes [...]. As lutas
estudantis ocuparam todo o cenário político do ano. Em março, milhares
de estudantes ocuparam as ruas para protestar contra prisões de
militantes de esquerda em São Paulo e clamar por uma anistia ampla,
geral e irrestrita. (LEMOS, 1988, p. 34-35).
Na crônica o cartunista revoga todas as leis de arbítrio decretadas
pelo regime militar, que impediam as pessoas de terem uma vida livre e
de exercerem os seus direitos políticos, além de criar contrapontos com a
liberdade que passariam a ter. No parágrafo 1° da lei do Ventre Livre,
Henfil devolveu o direito de exercício pleno da democracia, e extinguiu a
Lei Falcão, que regulamentava a propaganda política da época e impedia
que os candidatos falassem durante o horário eleitoral. Além de citar
fatos da época, como a fala do ex-jogador de futebol Pelé, que chegou a
dizer que a população brasileira não estava preparada para a democracia.
No próximo parágrafo, o autor defendeu o direito dos estudantes e das
organizações estudantis, que eram proibidas de existir, e pôs fim ao
Decreto-Lei 477, que ficou conhecido como o “AI-5 das Universidades”, o
qual punia professores e alunos acusados de subversão. Em seguida,
Henfil fala sobre os direitos trabalhistas, e incluiu a organização de
sindicatos livres e das greves e critica a alta taxa de impostos e os
subsídios dados às grandes multinacionais.
A partir daí, nos próximos parágrafos, é garantido à liberdade de
expressão, a liberdade de imprensa, o fim da censura, a volta do habeas corpus
e do direito a um julgamento dentro da Lei, em que todos são inocentes,
até que se prove o contrário. E por fim, Henfil revoga todos os “atos
anticoncepcionais”, ou seja, os Atos Institucionais. Assim,
analogicamente, Henfil traça um paralelo de dois momentos autoritários
da história do Brasil: um é o período escravocrata e o outro o Regime
Militar. Ao fazer esta comparação são expostas as principais medidas que
privavam a população do direito de liberdade.
Considerações Finais
O processo de distensão do regime iniciou em 1974 com o presidente
Ernesto Geisel e durou até 1985 quando José Sarney assumiu a Presidência
da República no lugar de Tancredo Neves, que veio a falecer. Henfil,
depois de vários anos dedicados a abertura política do Brasil, faleceu
em 1988 sem ao menos ver se concretizar de fato a democracia que tanto
almejou. As Cartas a mãe, Ubaldo e tantos outros personagens
conseguiram discutir e polemizar o período de redemocratização do
Brasil, e principalmente fazer oposição ao regime militar de forma
consistente e significativa, que se tornou referência na luta pela
anistia.
Observa-se a proximidade entre o Henfil e seus personagens bem como
com o povo brasileiro. Os mesmos temores, desejos, opiniões estavam
reprimidos em grande parte da população, e esses sentimentos foram
manifestados através de personagens como Ubaldo ou nas palavras que
Henfil dirigia a sua mãe. Um ano após a criação da Revista ISTOÉ, em
1977, as últimas páginas passaram a ser ocupadas na revista pelas suas
crônicas e charges, que contribuíram para que se discutissem questões
vívidas pelo país no momento, e que viriam a ser o desfecho do regime
militar no Brasil.
Neste artigo visamos, através de um recorte do extenso trabalho de
Henfil, analisar sua influência no processo de transição do período da
ditadura para a democracia. Seu humor irreverente conseguiu estremecer
valores impostos pelo duro governo, e representaram uma necessidade
persistente de oposição, que demandava de uma parte da população. O
estudo de sua obra é fundamental para o preenchimento das lacunas
deixadas pelo período do autoritário governo militar no Brasil, para que
se compreenda como de fato, deixamos os conhecidos “anos de chumbo” até
que voltássemos ao período democrático.
Referências
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SAMWAYS, Daniel Trevisan. Censura à imprensa e a busca de legitimidade no regime militar. IX Encontro Estadual de História do Rio Grande do Sul, [200-].
Olá Francisco. Eu e minhas colegas ficamos felizes que você tenha postado o nosso artigo em seu blog, respeitando a autoria. Não vemos isso fácil hoje em dia. Ficamos felizes também que o artigo esteja sendo acessado por tanta gente inteligente, que tem agregado informações ao trabalho a partir da caixa de comentários. Esse artigo já nos rendeu uma premiação na faculdade e um belo comentário de Márcio Malta, a principal fonte bibliográfica do nosso artigo. Que bom que gostou e postou ele aqui...ajuda a disseminar as nossas ideias. Grande abraço.
ResponderExcluirFelipe Torres Bueno.