Leis sobre sexualidade, aborto, eutanásia, esterilização, drogas, liberdade de expressão e privacidade, entre outras, muitas vezes limitam um direito que deveria ser fundamental para qualquer ser humano. O reconhecimento da autonomia do indivíduo sobre seu corpo é um dos principais desafios jurídicos atuais
Por Túlio Vianna.
Uma sociedade não pode ser considerada livre se seus membros
não tiverem o direito de dispor de seus próprios corpos. O núcleo do
direito à liberdade é a autonomia sobre o próprio corpo e justamente por
isso o Direito, a moral e a religião se ocuparam durante tanto tempo
com a imposição de regras para regular a livre disposição dos corpos.
O direito ao próprio corpo ainda está longe de ser conquistado e
reconhecido como um direito fundamental da pessoa humana. As normas
limitando a autonomia dos corpos estão por todas as partes: limitações à
sexualidade, ao uso de drogas psicotrópicas, à liberdade de expressão e
até mesmo à vida e à morte. Tudo em nome de um suposto bem maior: a
coletividade. A maioria destas normas de regulação dos corpos, porém,
não evita que haja lesão a direito alheio, mas tão somente impõe um
modelo de conduta que a maioria julga adequado.
Estado democrático de direito – é sempre bom frisar – não se confunde
com ditadura da maioria. As liberdades individuais só podem ser
limitadas se – e somente se – o exercício de uma determinada autonomia
provocar dano a outrem. Assim, as pessoas, maiores e capazes, deveriam
ser livres para dispor sobre seus próprios corpos desde que com suas
ações não prejudicassem a ninguém. Na prática, porém, o Direito está
repleto de normas que limitam ações completamente neutras a terceiros.
A sexualidade sempre foi campo fértil para as limitações jurídicas
sobre os corpos. No passado já se puniu até mesmo a fornicação,
entendida como o relacionamento sexual por pessoa solteira. A sodomia
foi considerada crime no estado do Texas até 2003, quando a decisão da
Suprema Corte estadunidense no caso Lawrence v. Texas a considerou
inconstitucional. Detalhe: decisão por maioria de 6 a 3.
No Brasil, ainda hoje, pelo código penal em vigor, se um garoto de 13
anos mantiver relação sexual consensual com uma mulher maior de 18 anos
(uma prostituta, por exemplo), ela poderá ser condenada a uma pena que
varia de 8 a 15 anos (art.217-A CP). Manter casa de prostituição também
ainda é crime em nosso país (art.229 CP), numa indevida regulação do
corpo de mulheres maiores e capazes que deveriam ter o direito de dispor
do seu próprio corpo da forma que considerem mais conveniente.
Outra pérola de regulação sexual do nosso código penal ainda em vigor
é seu art.234, que pune com pena de até dois anos quem fizer,
“importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de
comércio, de distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho,
pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno”. Felizmente este último não
vem sendo aplicado pelos tribunais há algum tempo, ainda que não haja
uma decisão reconhecendo oficialmente sua inconstitucionalidade.
Não bastasse a lei conservadora, os tribunais tendem a ser bastante
moralistas na aplicação do Direito quando as questões versam sobre
práticas sexuais minoritárias. É paradigmática uma decisão do Tribunal
de Justiça de Goiás (Ap. 25220-2/213), que absolveu um acusado de
violentar outro homem sob o singelo argumento de que a violência teria
ocorrido em uma prática de sexo grupal. Nos fundamentos da decisão se lê
que: “a prática de sexo grupal é ato que agride a moral e os costumes
minimamente civilizados.
Se o indivíduo, de forma voluntária e
espontânea, participa de orgia promovida por amigos seus, não pode ao
final do contubérnio dizer-se vítima de atentado violento ao
pudor”(sic). Em outras palavras, pode-se dizer que o tribunal revogou o
então crime de atentado violento ao pudor (hoje, estupro) em orgias,
negando o direito à liberdade sexual àqueles que optam por práticas
sexuais moralmente reprováveis pela maioria.
O Código Civil também parece condenar qualquer prática polígama por
parte dos casais ao dispor, em seu artigo 1566, I, que são deveres de
ambos os cônjuges a fidelidade recíproca. Uma imposição inaceitável se
tratando de pessoas maiores e capazes de decidir sobre as práticas
sexuais que lhe aprazem.
Direito à vida e à morte
A relevância ao reconhecimento de um direito fundamental ao próprio
corpo vai muito além da liberdade sexual. É no direito à vida e à morte
que a regulação jurídica dos corpos se manifesta de forma mais evidente.
Questões como aborto, eutanásia, esterilização e muitas outras são
reguladas pelo Direito, em regra dando pouquíssima liberdade aos
interessados de disporem de seus próprios corpos.
Vê-se com clareza isso no direito ao aborto, reconhecido na maioria
absoluta dos países da Europa e dos estados americanos. No Brasil, por
uma nítida influência religiosa, criou-se a ficção jurídica de que o
embrião não é parte do corpo da mãe, pois já teria direitos a serem
reconhecidos a partir da concepção. Assim, chegamos a situações
absurdas, em que fetos anencéfalos possuem mais direitos que a mulher
maior e capaz que o carrega no ventre. Uma clara demonstração das
dificuldades a serem enfrentadas no reconhecimento do direito à
autonomia sobre o próprio corpo.
Também na regulação da morte as restrições são várias. A eutanásia é
punida como homicídio (art.121 CP) e o suicídio assistido é punido com
penas de até 6 anos (art.122 CP), obrigando-se muitas vezes ao
indivíduo, mesmo quando consciente, a levar uma sobrevida vegetativa
contra sua vontade.
A esterilização cirúrgica de pessoas casadas só pode ser realizada
com o consentimento expresso do cônjuge (art.10, §5º, da Lei 9.263/96) o
que, na prática, limita o direito de muitas mulheres de optarem por não
engravidar.
Liberdade de consciência e de expressão
O reconhecimento do direito a dispor do próprio corpo tem como
corolário a liberdade de consciência e também a liberdade de alteração
de consciência por meio de drogas psicotrópicas, desde que evidentemente
o uso de tais drogas não provoque danos a terceiros. Não cabe a um
Estado no qual a liberdade é direito fundamental uma atuação
paternalista por parte do governo no sentido de proibir que pessoas
maiores e capazes provoquem danos a seus corpos. Deve o Estado, sim,
proteger a saúde de crianças e adolescentes, mas no momento em que se
reconhece sua plena capacidade jurídica, é preciso que se reconheça
também seu direito a usar drogas que alteram sua consciência, ainda que
estas lhe venham a causar um eventual dano à saúde.
O que se vê, porém, em relação às drogas psicotrópicas, é uma
regulação jurídica dos corpos que chega ao cúmulo de considerar crime o
uso recreativo de drogas de baixíssima danosidade ao organismo, como é o
caso do cloreto de etila (lança-perfume). Um controle jurídico
obsessivo dos estados de consciência, que pune inexplicavelmente o uso
de drogas mais leves que o próprio álcool.
O direito ao próprio corpo manifesta-se ainda na liberdade de
expressão e na de não expressão, que chamamos de privacidade. É preciso
que se reconheça a cada indivíduo o direito de se expressar quando e
como queira, mas também o direito de se manter em silêncio e em sossego,
longe dos olhares e das câmeras alheias. Por óbvio não se pode admitir
que sua expressão ou sua privacidade possa causar dano a direito alheio.
Por certo justifica-se seu cerceamento, se a expressão de um pensamento
for lesiva à honra ou o exercício da privacidade for lesivo ao direito à
informação de interesse público. A regra, porém, deve ser que um
indivíduo possa se expressar ou se recolher à sua privacidade conforme
sua conveniência, o que, lamentavelmente, tem se tornado exceção.
A grande batalha jurídica do século XXI será pela libertação dos
corpos das normas impostas pelo arbítrio da maioria. Somos herdeiros de
uma cultura religiosa que nos impôs ao longo da história uma infinidade
de restrições morais e, posteriormente jurídicas, ao uso de nossos
próprios corpos.
Não há nada de democrático na imposição pela maioria de normas de
conteúdo exclusivamente moral a uma minoria. Se uma conduta não lesa nem
gera riscos de lesão a direitos alheios, não há por que ser proibida.
A liberdade de um povo não está simplesmente em escolher seus
governantes. Não se pode considerar livre um povo que decide os rumos de
seu governo, mas que nega a cada um de seus indivíduos a autonomia de
decidir sobre os rumos de seu próprio corpo.
Liberdade é, antes de tudo,
poder decidir sobre o próprio corpo.
FONTE:http://www.revistaforum.com.br/conteudo/detalhe_materia.php?codMateria=9386/O%20direito%20ao%20pr%C3%B3prio%20corpo
Nenhum comentário:
Postar um comentário