Publicado Jornal da Ciência 04 Junho 2012
Manuel Domingos Neto
Professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense e coordenador do Observatório das Nacionalidades
Estão em curso iniciativas de modernização das Forças Armadas. A Estratégia Nacional de Defesa está sendo revisada e o Brasil prepara um "Livro Branco de Defesa Nacional" que mostrará a visão dos governantes acerca dos cenários em que se inserem os esforços para proteger o País. Os investimentos previstos para a produção de armas e equipamentos chegam a mais de 120 bilhões de reais nos próximos anos. Dispositivos legais recentes oferecem incentivos a esse setor industrial.
Manuel Domingos Neto
Professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense e coordenador do Observatório das Nacionalidades
Estão em curso iniciativas de modernização das Forças Armadas. A Estratégia Nacional de Defesa está sendo revisada e o Brasil prepara um "Livro Branco de Defesa Nacional" que mostrará a visão dos governantes acerca dos cenários em que se inserem os esforços para proteger o País. Os investimentos previstos para a produção de armas e equipamentos chegam a mais de 120 bilhões de reais nos próximos anos. Dispositivos legais recentes oferecem incentivos a esse setor industrial.
Assim,
entram na ordem do dia assuntos cruciais: as possibilidades de agressão
ao Brasil, a escolha de novos meios para as Forças, as diretrizes para a
cooperação militar internacional, a busca de autonomia tecnológica, o
tamanho das corporações e a distribuição espacial de seus efetivos, a
reforma do ensino militar e a formação de civis especializados em
assuntos de Defesa, entre outros.
Tais
temas foram tradicionalmente percebidos como exclusivos da alçada
militar, mas excedem as corporações, já que dizem respeito ao
desenvolvimento do País e à sua inserção no jogo global de forças. A
Defesa tem reflexos inequívocos sobre as perspectivas da sociedade. O
senso comum não atina, mas nenhum domínio da vida social está imune às
repercussões da montagem e manutenção dos instrumentos de força do
Estado. Mesmo os militares podem nem sempre captam plenamente os efeitos
abrangentes e multifacetados de sua própria função.
Cabe
à universidade brasileira preparar-se para contribuir com a formulação,
acompanhamento e administração das orientações governamentais relativas
à Defesa. Para efeito, o primeiro passo é enterrar ideias e posturas
desprovidas de senso.
No
mundo acadêmico, corporações e assuntos militares nunca foram admitidos
como objeto de estudo relevante, apesar de surgirem nos últimos anos
alguns sinais de alteração deste equívoco. O contingente de
pesquisadores envolvidos no debate estratégico tem se ampliado. Alguns
vasculham inovadoramente o interior das corporações, a mentalidade e o
pensamento dos militares bem como variados temas conexos. Em 2006, foi
criada a Associação Brasileira de Estudos da Defesa (ABED), sociedade
acadêmica que este ano realiza o seu sexto Encontro anual.
Mas,
a rigor, predomina a noção de que não cabe à universidade envolver-se
nos problemas da Defesa. É rarefeita e precária a oferta de disciplinas e
programas de pós-graduação que tematizem o militar e assuntos
relacionados ao uso força. Contam-se nos dedos as instituições capazes
de ofertar cursos de História Militar, História da Ciência, Sociologia
das Corporações Militares, História do Pensamento Estratégico ou
Economia da Defesa. O número de publicações acadêmicas, bem como o de
projetos de pesquisa em andamento sobre temas da Defesa, é irrisório em
vista de sua relevância social e política.
Na
universidade, há certo estranhamento - para não dizer menosprezo - em
relação aos que se dedicam à temática. Persiste a tendência de atribuir
tais assuntos à alçada exclusiva de profissionais das armas. Pior ainda,
alguns imaginam que civis voltados para esses temas sejam amantes da
guerra e dos instrumentos de força.
As
agências de fomento, hoje mais voltadas para as demandas específicas da
comunidade científica que para as necessidades do Estado, não reagem a
esta percepção descabida. A Capes e o CNPq sequer dispõem de comitês
assessores habilitados para o julgamento do mérito de propostas de
acadêmicos da área. Professores e pesquisadores dedicados aos Estudos da
Defesa disputam bolsas e auxílios em desvantagem com colegas de áreas e
especialidades científicas consolidadas; seus projetos são julgados a
partir de critérios rigorosamente inadequados.
Essa
situação é prejudicial ao Estado e à sociedade. Os acadêmicos não podem
fechar os olhos para instituições armadas que, bem ou mal, foram e são
decisivas na construção do País. Não há Estado sem aparelho de força e a
guerra interfere na perspectiva da sociedade. A guerra persistirá
fenômeno essencialmente político e os aparelhos militares são
sabidamente dispendiosos e complexos para que sejam concebidos e
manipulados a partir do desígnio exclusivo de seus integrantes.
O
quanto e como a sociedade deve gastar com armamentos e corporações
militares? Que tipo de arma e de profissional militar a comunidade
nacional precisa para assegurar sua sobrevivência autônoma? Sem
pretensões expansionistas, o país deve gastar com aviação embarcada?
Seria melhor dispormos de um submarino nuclear ou de instrumentos
operados a partir da costa? Vale a pena despender bilhões em aviões de
última geração fabricados no exterior ou concentrar recursos na produção
própria? Como e de que jeito o ensino militar deve ser alterado?
Tais
questões transcendem a caserna. Sem civis habilitados a discuti-las em
profundidade, o poder político tomará suas decisões condicionado por
vieses corporativos limitantes e capazes, inclusive, de abrigar práticas
perdulárias. Corporações não declinam facilmente de veleidades
autárquicas, mesmo que em prejuízo da eficácia e da economia de recursos
públicos. As Forças Armadas brasileiras não revelam cultura de
integração de esforços. Em mais de 60 anos de funcionamento, a Escola
Superior de Guerra não consolidou um curso de estado-maior conjunto.
O
olhar civil abalizado é indispensável para o bom entendimento em
matéria de Defesa. Quando vontades corporativas não se afinam, resta
ouvir vozes mais distanciadas. Não por outra razão, definições centrais
das estratégias militares das grandes potências são entregues a civis
adrede preparados. Interessante observar que, se em Harvard um professor
pode propor com naturalidade, na ementa de seu curso, a questão "como
controlar os militares?", na universidade brasileira isso soaria exótico
e certos oficiais tomariam como "provocação".
Os
militares brasileiros reclamam investimentos e apontam o sucateamento
das Forças. Entretanto, não está claro se a atual estrutura de gastos em
Defesa é a melhor. Não constam disponíveis estudos sobre desperdícios
resultantes de sobreposição de esforços. Cada corporação exige seu
complexo hospitalar e seu sistema de ensino; busca a glória de suas
escolas de excelência às vezes a revelia da cooperação entre si e com os
aparelhos públicos civis.
A
ideia de uma Universidade da Defesa que contemple necessidades comuns e
específicas das corporações não é seriamente cogitada. A possibilidade
de conjugação de serviços demandados pelas corporações é sempre
contraposta pela arguição enfática de suas especificidades. Tais
argumentos não podem ser contraditados sem pesquisas acuradas e
reflexões abrangentes.
O
Poder Executivo precisa de civis preparados para discutir e contribuir
adequadamente com a gerência dos intrincados assuntos militares. As
organizações militares, o Parlamento e o Judiciário, da mesma forma.
Como a formação de especialistas não ocorre da noite para o dia, cabe
cuidar o quanto antes. Esses profissionais, incorporados à administração
pública, assegurariam melhor a dinâmica administrativa que oficiais
provisoriamente designados para servir em Brasília.
O
descuido na formação desses especialistas acarreta um prejuízo da maior
gravidade: as formulações concernentes ao aparelho militar e a política
de Defesa tendem a incorporar pressupostos, premissas e conceitos
emanados de potências que, de longa data, investiram forte e
continuamente em quadros acadêmicos civis. Cabe ao Estado brasileiro
dispor de amparos conceituais e epistemológicos capazes de traduzir
adequadamente a percepção nacional e o meio acadêmico é insubstituível
neste sentido.
Ademais,
universidades preparadas para tratar de temas da Defesa ajudariam a
viabilizar reformas no ensino militar. A formação do militar moderno tem
um pé na corporação e outro na academia civil. No Brasil, o ensino
militar guarda resquícios do século XIX: há oficiais que desde criança
não conheceram senão o ambiente militar. Em consequência, podem não
perceber a potencialidade da esfera acadêmica civil para a Defesa.
Os
governantes devem estimular as universidades a abrir espaço para
núcleos de pesquisa, departamentos e institutos com pessoal e
infraestrutura adequados para a oferta de cursos de graduação, mestrado e
doutorado voltados para os Estudos da Defesa. Quando a formação do
militar brasileiro contemplar a passagem pelo mundo acadêmico civil, com
certeza teremos comandantes mais aptos a compreender a sociedade.
É
saudável constatar que o militar e a política de Defesa estejam
entrando na agenda política de forma inteiramente diversa daquela que os
brasileiros conheceram ao longo do século XX. Indicação neste sentido é
a inédita reunião dos partidos de esquerda (PT, PSB, PCdoB e PDT) dia 4
de junho, em Brasília, para debater os grandes projetos da estratégia
nacional de Defesa. Agora não se trata mais de concentrar a atenção nas
intervenções castrenses na vida política, mas de garantir efetivamente
proteção a uma sociedade que se projeta no cenário global. Que a agenda
política contemple o apoio do Estado aos Estudos da Defesa nos centros
universitários!
FONTE: http://www.defesanet.com.br/defesa/noticia/6319/O-apoio-do-Estado-aos-estudos-da-Defesa
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