quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Veja e Polícia Federal. Falácias sobre prevenção de suicídios.

Uma curta nota, intitulada “Baixas na PF”, da coluna “Holofote”, assinada pelo jornalista Pedro Dias Leite (Veja, edição 2306, de 30/01/13), causou grande surpresa e indignação entre os policiais federais de todo o país. 

De acordo com a revista, o aumento do número de suicídios, entre os cerca de 10 mil integrantes da Polícia Federal, chamou a atenção do diretor-geral do órgão, delegado Leandro Daiello Coimbra. 

A média de um caso por mês, até outubro do ano passado, teria levado o órgão a lançar um programa de apoio psicológico aos policiais. “Os primeiros resultados foram animadores. Agora, o foco recairá sobre os integrantes mais velhos da corporação, que se mostraram resistentes à iniciativa na primeira etapa”, informou a nota.

Reproduzida por Ricardo Setti, em sua coluna na edição online da revista, a nota foi excluída, no dia seguinte, depois que dezenas de leitores que integram os quadros da Polícia Federal enviaram comentários, dizendo que não tinham conhecimento da existência do tal serviço. O jornalista informou que, em respeito aos leitores, retirou a postagem do blog e encaminhou a questão ao autor da nota, para apurar a questão em profundidade.

A falácia do diretor-geral, ou de algum de seus assessores (o colunista não revelou sua fonte), gerou uma reação em cadeia da Federação Nacional de Policiais Federais (Fenapef) e da maioria de seus sindicatos estaduais, que cobraram explicações do diretor-geral e dos superintendentes regionais do órgão sobre o serviço de apoio psicológico, do qual ninguém nunca ouvira falar e não sabe se existe, nem mesmo no papel. Até hoje, não se tem notícia que algum dos dirigentes da PF tenha indicado onde e como recorrer ao atendimento.

Psicólogos de plantão - Ninguém faz a mínima ideia de onde surgiu a informação sobre os primeiros resultados “animadores”. Nem quanto aos policiais mais antigos, que estariam recusando o apoio especializado, outro atentado de informação à lógica e à realidade. Só em eventuais alucinações, os muitos policiais federais que precisam de tratamento, dependentes de medicamentos controlados ou que dormem às custas de tranquilizantes, poderiam recusar acompanhamento psicológico ou psiquiátrico que não existe.

O Sindicato Nacional dos Servidores do Plano Especial de Cargos da Polícia Federal (Sinpecpf), que representa os profissionais de saúde do órgão, em nota, também contestou a veracidade da informação. A entidade informou que a PF conta hoje com apenas 15 psicólogos em seu quadro. 

Além de poucos, alguns pensam em alternativas com melhores perspectivas de remuneração e valorização profissional. Com uma equipe tão ínfima, é inviável implantar qualquer programa preventivo de apoio psicológico de âmbito nacional para atender, na realidade, em torno de 14mil servidores (11,5 policiais e 2,5 mil administrativos), lotados em mais de 160 unidades da PF, no Brasil e no exterior.

De acordo com o sindicato, hoje a atuação das equipes psicossociais da PF se restringe a ações pontuais, parte delas em caráter emergencial, o que nem de longe pode ser chamado de política ou programa preventivo de saúde. No ano passado, a única medida tomada pela PF, em decorrência da alta no número de suicídios, foi colocar dois psicólogos de plantão à disposição dos servidores na superintendência do órgão no Distrito Federal.

Cinismo ou escárnio - Apesar das muitas reclamações e evidências, ao que parece a direção do órgão não pediu a correção ou se retratou das informações truncadas nem para o público interno, muito menos para a opinião pública. Os gestores da renomada Polícia Federal, sempre solícitos em divulgar as grandes operações policiais, sob os holofotes da mídia, não demonstram muito empenho para tornar claros os problemas e soluções relacionados aos recursos humanos, como se estes não tivessem reflexos no desempenho das atividades do órgão e na qualidade de serviços oferecidos à sociedade.

Vejanão dedicou uma única linha ao assunto na edição seguinte. Na edição de Carnaval (2308, de 13/02/13), a seção de cartas do leitor, finalmente, abriu espaço para publicação de dois parágrafos da nota do sindicato dos servidores da PF que desmentiu a informação.

Não fosse a postura do jornalista Ricardo Setti, poucos saberiam que a informação atribuída ao dirigente máximo da PF não é verdadeira. A maioria dos leitores de Veja que acompanha apenas à versão impressa continua desinformada sobre o tema. Resta torcer para que a nota desperte o interesse para abordagens mais precisas e profundas no semanário ou em outros veículos de comunicação.

Na melhor das hipóteses, alguém antecipou a notícia de ideias ou medidas que ainda não saíram do plano das intenções. Neste caso, Veja tomou uma “barriga” (que na gíria jornalística refere-se à informação falsa divulgada como furo de reportagem). Ou o diretor-geral da PF e seus assistentes desconhecem a realidade do órgão que administram. 

Na hipótese mais pessimista, talvez se tenha tratado assunto tão sério de forma irresponsável e leviana, num desrespeito aos policiais federais que, de fato, precisaram ou estão necessitando de apoio especializado. Soa como cinismo ou escárnio à memória e aos familiares dos muitos colegas que já se foram, de forma trágica, sem qualquer acompanhamento ou atenção por parte do órgão.

Lacunas ignoradas - Perde o leitor, a sociedade e autoridades, a quem cabe tomar as iniciativas para que metas, ações, programas ou serviços relacionados à saúde mental de profissionais de segurança pública, e não apenas da PF, deixem de ser apenas boas intenções ou pretexto para promoção pessoal de seus gestores. 

Esta é uma questão da mais alta relevância pública: afinal, são agentes do Estado, armados, que estão nas ruas para prestar segurança à população. Ter certeza que todos os policiais estão aptos e em plenas condições mentais para agir na linha de frente contra a criminalidade, cada vez mais violenta, sem que representem ameaça à própria incolumidade e a de cidadãos, mais que desejável, também é (ou deveria ser) prioridade de políticas de segurança pública.

Para além do preocupante aumento de suicídios ou tentativas (cerca de 20 casos de policiais federais, ativos e aposentados, nos últimos dois anos), faltam reportagens que revelem as razões de altos percentuais de policiais afastados por problemas de estresse, depressão e vários outros problemas psicológicos ou psiquiátricos. Há unidades da PF em que as licenças para tratamento de saúde chegam a 30% do efetivo.

A inexistência de acompanhamento dos servidores que passam por traumas e as implicações daqueles que se envolvem em ocorrências violentas, que vitimam os próprios policiais, cidadãos e até os criminosos são lacunas ignoradas pela instituição. Algumas polícias militares mantêm programas que nunca foram sequer comentados na poderosa PF.

Assunto reservado - Além da natureza estressante da própria atividade de risco, como em outras corporações, na PF certos fatores agravam a situação: falta de reconhecimento, sobrecarga de trabalho, viagens, jornadas extenuantes, relações hierárquicas autoritárias, assédio moral e disciplinar, perseguições e discriminações, chefias despreparadas. Além de degradar o ambiente de trabalho, desmotivam e culminam no afastamento de policiais.

Em termos de acompanhamento periódico das condições psicológicas de profissionais que usam armas de fogo, o ramo de segurança privada, que emprega vigilantes em bancos, transporte de valores, escolta armada e segurança pessoal, tem controle mais efetivo que a própria PF. 

Por lei, vigilantes são obrigados a passar por avaliação psicotécnica e exames médicos, anualmente. Por ironia, a atividade é fiscalizada pela própria PF, confirmando o velho ditado de que “em casa de ferreiro, o espeto é de pau”.

O assunto suicídio ainda é tratado com reserva nas redações, o que talvez explique a falta de espaço ou interesse. Contudo, sobram pautas e fontes sobre suas causas e meios de preveni-lo.

Mas a dor e a morte de policiais, parafraseando Chico Buarque, não costumam sair nos jornais brasileiros.

[Josias Fernandes Alves é agente de Polícia Federal, formado em Jornalismo e Direito e diretor de Comunicação da Federação Nacional de Policiais Federais]


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