Brasil ainda sonha em lançar foguete
Uma
tragédia que matou 21 profissionais civis no Centro de Lançamento de
Alcântara, no Maranhão, e adiou os projetos do programa espacial
brasileiro completa dez anos nesta quinta-feira (22). No dia 22 de
agosto de 2003, às 13h26, o foguete Veículo Lançador de Satélites (VLS)
foi acionado antes do tempo e ficou pronto para a partida.
Ainda faltavam, porém, três dias para o lançamento do protótipo, o
terceiro desse foguete (V03), e toda a estrutura em volta dele
continuava montada. Com a ignição prematura do VLS – que tinha 21 metros
de altura e colocaria em órbita dois satélites de observação terrestre
–, a torre acabou explodindo e matando os homens que trabalhavam ali.
Segundo o relatório final de investigação, concluído pela Aeronáutica
em fevereiro de 2004, houve um “acionamento intempestivo” (súbito) de
um dos quatro motores do VLS, provocado por uma pequena peça que ligava o
motor. Mas até hoje não se sabe por que esse detonador disparou, embora
duas hipóteses tenham sido levantadas: corrente elétrica ou descarga
eletrostática (transferência de energia por contato entre dois corpos).
A comissão de investigação descartou a possibilidade de sabotagem, de
grosseira falha humana ou de interferência meteorológica, mas apontou
“falhas latentes” e “degradação das condições de trabalho e segurança”.
Esses pontos de fragilidade estavam ligados à segurança em terra (as
saídas de emergência, por exemplo, levavam para dentro da própria torre
de lançamento) e de voo, à perda de pessoal tecnicamente qualificado e à
falta de contratações, à defasagem salarial e de recursos financeiros, à
sobrecarga de trabalho e ao estresse por desgaste físico e mental dos
operadores.
De acordo com o texto, “identificou-se uma expressiva defasagem entre
os recursos humanos e materiais previstos como necessários ao projeto e
os efetivamente disponíveis”. Testemunhas ouvidas na época informaram
que não sabiam que os motores de arranque do foguete haviam sido
instalados antes do previsto. Elas ignoravam, portanto, o perigo que
corriam, e algumas chegaram a reclamar de levar choque ao tocar no corpo
do VLS.
Na opinião do presidente da Associação Aeroespacial Brasileira (AAB), Aydano Carleial, o
desastre não foi uma indicação de falta de capacidade técnica
brasileira, mas de ausência de organização e método, pois o processo foi
feito com pressa e de forma improvisada, o que aumentou ainda mais os
riscos.
“O grande problema foi a perda humana. A paralisação do programa
espacial ocorreu mais pela comoção, pela falta de reação, pelo fato de
as promessas não terem sido cumpridas”, avalia Carleial, que é
engenheiro eletrônico formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica
(ITA) e trabalhou durante anos no Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe), responsável por fabricar os satélites brasileiros.
Na
visão do major-brigadeiro Hugo Piva, um pioneiro do nosso programa
espacial, a falta de verba prejudicou seu avanço. Até 1987, quando houve
uma redução do investimento, os foguetes aprovados para voar não
falharam, aponta. “Depois disso, lançaram três: todos falharam, um deles
causando a maior tragédia da história”, destaca Piva, que já não
trabalhava no projeto do VLS em 2003.
Indenização às famílias
As 21 vítimas do acidente foram enterradas com honras militares, na
presença do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e as famílias
receberam uma indenização de R$ 100 mil do Ministério da Defesa, além de
pensões mensais proporcionais ao salário de cada um dos homens mortos.
Alguns parentes também entraram na Justiça para receber um valor
compatível com o que as vítimas ganhariam ao longo de toda a vida
profissional, mas o processo ainda se arrasta nos tribunais. Além disso,
o Ministério do Planejamento está questionando as gratificações pagas
nas pensões, e há a possibilidade de as famílias terem o valor reduzido
ou até terem de devolver parte do que receberam.
O engenheiro de computação Artur Varejão, de 28 anos, filho do
engenheiro mecânico Cesar Augusto Costalonga Varejão, que morreu em
Alcântara, lembra que havia falado com o pai um dia antes da tragédia e
que soube do acidente por uma funcionária da base, pela internet. O
anúncio oficial da tragédia à família só veio às 22h – quase 9h após a
explosão.
“Meu pai nem ia lá nesse dia, porque já estava tudo pronto. Comecei a
telefonar, mas celular raramente funcionava lá, então não estranhei. Aí
começou a passar na TV, eram 14h quando fiquei sabendo, deu plantão na
Globo, só estávamos minha mãe e eu em casa”, recorda Artur, que era
muito próximo do pai e chegou a trabalhar um ano com ele no Inpe.
“Meu pai estava no projeto há 25 anos, era um entusiasta, mas
sempre foi muito realista, sabia dos perigos, da falta de recursos, da
precariedade. Só que parecia que não tinha medo, estava empolgado, era
um projeto de vida também. Aliás, todos eram técnicos ótimos e
trabalhavam meio que por ideologia”, diz Artur.
jovem chegou a acompanhar um teste de ignição de um propulsor de
primeiro estágio do VLS, quando perguntou: “E se isso explode?” O pai
respondeu que não sobraria nem um fio de cabelo, mas que até então nunca
havia acontecido nada.
“Minha desilusão maior é com o governo, que nunca nos ligou ou enviou
um psicólogo. Dez anos é muito tempo para os familiares e a sociedade
terem uma resposta, uma satisfação”, afirma Artur.
Mudanças exigidas
Entre as várias recomendações feitas pelo relatório de investigação
após o acidente em Alcântara, foi pedida a modernização da plataforma de
lançamento de foguetes. A atual conta com uma torre de apoio, para fuga
de funcionários em caso de emergência.
Os profissionais agora têm três opções de saída: uma escada, um poste
como o dos bombeiros e um tubo de tecido em que a pessoa se joga e
escorrega até embaixo.
Segundo o presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB), José
Raimundo Braga Coelho, a nova torre permite uma fuga rápida, sem riscos,
e tudo o que havia sido perdido foi recuperado e modernizado.
De acordo com ele, o acidente de 2003 permitiu que o programa
espacial brasileiro revisasse todas as atividades operacionais
desenvolvidas na base de Alcântara, a infraestrutura de solo para dar
suporte aos lançamentos, o próprio VLS e seus sistemas.
As vítimas do acidente de Alcântara
Amintas Rocha Brito; Antonio Sergio Cezarini; Carlos Alberto Pedrini; Cesar Augusto Varejão; Daniel Faria Gonçalves; Eliseu Reinaldo Vieira; Gil Cesar Baptista Marques; Gines Ananias Garcia; Jonas Barbosa Filho; José Aparecido Pinheiro; José Eduardo de Almeida; José Eduardo Pereira II; José Pedro Claro da Silva; Luis Primon de Araújo; Mario Cesar de Freitas; Levy Massanobu Shimabukuro; Mauricio Biella Valle; Roberto Tadashi Seguchi; Rodolfo Donizetti de Oliveira; Sidney Aparecido de Moraes; Walter Pereira Junior
A previsão da AEB é que um voo-teste do VLS seja feito em 2014, com
um segundo lançamento estipulado para 2016, que deve levar uma carga
útil contendo um experimento tecnológico. O foguete completo, em sua
quarta versão (V04), deve ser lançado em 2017, já com um pequeno
satélite a bordo.
O primeiro protótipo do VLS (V01) foi lançado em dezembro de 1997 e o
segundo (V02), em dezembro de 1999 – mas ambos falharam e foram
destruídos na partida.
Objetivos do programa espacial
Coelho explica que os principais objetivos do programa espacial
brasileiro são fazer com que o país tenha um centro de lançamentos em
operação, foguetes capazes de colocar satélites nacionais em órbita e a
possibilidade de vender esses serviços a outros países.
Para isso, a AEB lançou no ano passado a quarta edição do Programa
Nacional de Atividades Espaciais (Pnae), que substitui a de 2005 e vale
até 2021. Segundo o texto, essa versão é mais realista que as
anteriores, pois “busca o caminho da realização concreta e produtiva”, e
não apenas sonha.
“Esse é um planejamento de longo prazo, ainda carece de ajustes, que
serão feitos anualmente. Vejo a nossa situação atual com certa tristeza,
gostaria de ver um satélite lançado por mês ou pelo menos seis por
ano”, afirma o presidente da AEB.
Ele espera que o orçamento da agência chegue a quase R$ 500 milhões em 2014.
Projetos VLS e Cyclone
O programa espacial brasileiro se divide atualmente em dois grandes
projetos para lançar foguetes: o VLS, coordenado pelo Instituto de
Aeronáutica e Espaço (IAE), subordinado ao Departamento de Ciência e
Tecnologia Aeroespacial (DCTA), do Ministério da Defesa; e o Alcântara
Cyclone Space (ACS), uma empresa pública binacional (brasileira e
ucraniana) criada em 2006 para lançar satélites por meio do foguete
ucraniano Cyclone-4, a partir da base de Alcântara.
Para Aydano Carleial, da AAB, a parceria com a Ucrânia tem se
justificado economicamente, mas no papel o acordo não prevê
transferência de tecnologia.
No caso do VLS, segundo o tenente-coronel Alberto Walter da Silva
Mello Junior, gerente do projeto desde setembro de 2011, o foguete
sofreu uma revisão completa após o acidente de 2003, teve um
aprimoramento nos sistemas de segurança e passou a ser certificado pelo
Instituto de Fomento e Coordenação Industrial (IFI).
“As redes elétricas e pirotécnicas do veículo foram todas
modernizadas. Há vários dispositivos de segurança novos, e o sistema da
plataforma de lançamento também interrompe eventuais descargas elétricas
ou ignição inadvertida”, enumera.
Mello Junior destaca que foram listados todos os fatores que poderiam
ter contribuído para o acidente em Alcântara, e cada uma dessas
possíveis causas foi eliminada.
Para o gerente, o VLS é o carro-chefe do programa espacial brasileiro
e gera conhecimento para capacitar o país na conquista do espaço. Além
desse projeto, há parcerias com a Alemanha para produção de foguetes e
com a China para fabricação de satélites.
“Hoje o Brasil é o 11º no índice de competitividade espacial, segundo
o Relatório Futron, uma agência independente que mede o nível dos
países nessa área. E o VLS é de extrema importância para nos qualificar
na concorrência internacional. Se você não desenvolver, ninguém te ensina“, analisa Mello Junior.
Na visão do tenente-coronel, o programa espacial não se trata
simplesmente de lançar um VLS com satélites científicos, meteorológicos,
de defesa ou observação da Terra, mas desenvolver tecnologia para a
indústria.
“Mais de 50 empresas trabalham hoje no projeto do VLS. Desenvolvemos
aço de alta resistência que tem sido usado em trens de pouso de aviões,
criamos pás para turbinas de energia eólica, fizemos um sistema de
navegação de aeronaves que informa a posição delas e para onde devem ir,
processamos combustível sólido, entre outras coisas. Nosso objetivo é
desenvolver o país”, diz Mello Junior.
“Só vamos ter autonomia completa de comunicação quando tivermos
satélites e condições de lançá-los, senão vamos continuar à mercê da
disponibilidade e da conveniência de outros países. A partir do momento
em que o VLS for lançado, vamos mudar de patamar na comunidade
internacional e melhorar nosso índice de competitividade”, avalia o
gerente do projeto, que tem um orçamento anual de R$ 15 milhões. Quando
funcionar efetivamente, será capaz de pôr em órbita um satélite com até
250 kg, a 750 km de altitude.
Falta de coordenação geral
Para Aydano Carleial, presidente da AAB, a participação de diferentes
instituições civis e militares (DCTA, IAE, Inpe e AEB) no programa
espacial e o envolvimento de dois ministérios diferentes (da Defesa e da
Ciência, Tecnologia e Inovação) não é ruim, mas a falta de uma
coordenação geral prejudica sua eficácia.
Ele acredita que precisa haver mais clareza e consistência com os
objetivos históricos do Brasil na área espacial, como a capacidade de
fabricar e lançar satélites de interesse nacional, e o acesso ao espaço
por meio de foguetes brasileiros, lançados do nosso próprio território.
“Essas metas estratégicas são as mesmas há 30 anos. Por duas
décadas, não houve projetos para dar continuidade ao programa. Vários
planos foram concebidos, mas tudo para o futuro. Não considero a falta
de recursos o maior problema, mas a gestão, a organização institucional,
a forma de cobrar resultados. Os projetos precisam ter começo, meio e
fim, serem algo mais responsável”, diz.
Carleial lembra que, até hoje, o Brasil só colocou em órbita dois
satélites simples e pequenos 100% nacionais, lançados em 1993 e 1998,
respectivamente. O SCD-1 e o SCD-2 recolhem e transmitem dados
ambientais (como temperatura, qualidade da água e características do
solo), mas não processam nem interpretam nada.
Em desenvolvimento, o país tem o satélite Amazônia, que deve
monitorar a região amazônica e está previsto para ser lançado em 2015.
Há ainda o satélite Lattes (que deve ser lançado em 2017 para monitorar
as condições atmosféricas da Terra e fazer uma varredura no céu em busca
de fontes de raio X), o Sabiá-Mar (parceria entre Brasil e Argentina
para monitorar o território marinho das duas costas, que deve ser
lançado em 2018) e o Cbers-3 (sigla em inglês para Satélite
Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres, uma parceria com a China que
deve ter seu lançamento até o fim deste ano; os outros dois anteriores
já foram lançados).
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