Que a produção cultural
brasileira vem ganhando uma nova dinâmica não é nenhuma novidade. As velhas
fórmulas de sucesso levadas à exaustão pelas engrenagens da indústria cultural aos
poucos cedem lugar a um modelo mais plural, em que se multiplicam oportunidades
e se torna cada vez mais possível a emergência de iniciativas locais. A cultura
ganha vigor, e não mais apenas nas grandes capitais. O crescimento e a
descentralização dos recursos destinados ao setor são marcha sem volta.
Entretanto, se o momento é positivo
e favorável ao surgimento de experiências bem-sucedidas pelos quatro cantos do
país, a manutenção de grupos e entidades culturais e a continuidade de suas
iniciativas continuam sendo enormes desafios para seus produtores e gestores. Os
editais de financiamento se multiplicam, os recursos começam a irrigar a área e
os resultados se tornam aos poucos mais visíveis, mas a profissionalização
efetiva ainda é uma realidade distante da grande maioria daqueles que se
aventuram por esse caminho. Os empreendedores culturais brasileiros vivem aos
sobressaltos, obrigados a conviver com o fantasma da descontinuidade e com a
incômoda sensação de “fim de linha” a cada resultado negativo de edital, a cada
reunião de negociação de patrocínio frustrada. Como então explicar essa
situação paradoxal, que combina indicadores positivos com sinais de forte
instabilidade?
Uma primeira e óbvia resposta para
esta questão está na maneira historicamente descuidada com que as instâncias
públicas quase sempre trataram a cultura no Brasil. Está na ausência de
políticas claras, na adoção de modelos concentradores e conservadores e na
resistência dos governos, sejam eles de direita ou de esquerda, em considerá-la
como área estratégica. Tudo isso aliado à própria desarticulação do meio, que
teima em atuar de maneira fragmentada, pautado por diferenças e até mesmo por
vaidades.
É claro que não se pode desconsiderar
os avanços significativos que vêm ocorrendo, tanto na esfera das políticas
quanto na representatividade dos profissionais da cultura. Os últimos anos
foram de grandes articulações pela construção de um modelo mais justo e eficaz
para o setor, num processo de amadurecimento que, embora não tenha a velocidade
que desejaríamos, é claramente perceptível. No entanto, é necessário admitir
que ainda são grandes os desafios a serem vencidos até que tenhamos melhores
condições de trabalho nesse campo. Quanto mais se afasta dos grandes centros
urbanos, maior a dificuldade daqueles que atuam na área em identificar um fio
de meada para a costura de um trabalho mais profissional. A criação acontece
com espontaneidade e, em muitos casos, com bastante originalidade, mas perde em
força, com frequência, pela carência de referências técnicas e estéticas.
Artistas, grupos e instituições culturais, alheios também a uma série de
parâmetros básicos do campo da gestão, empreendem grandes esforços de criação e
produção, mas com resultados muitas vezes frustrantes.
A cultura tropeça no amadorismo e
na falta de informação, seja nas capitais ou no interior. Além disso, ressente-se
pela fragilidade de alguns elos de sua cadeia produtiva. Definitivamente, não
há como pensar em sustentabilidade para um setor obrigado a conviver com pontos
vulneráveis e sempre prestes a se romper quando submetidos ao menor esforço. O
pior é que boa parte daqueles que trabalham na área tem baixa percepção da urgência
de se fortalecer tais pontos. No âmbito da cultura, ainda persiste certa
tendência a visualizar apenas a área finalística, ou seja, os produtos finais e
os responsáveis diretos por sua concepção. Essa ênfase excessiva naquilo que é
levado aos olhos e ouvidos do público é até compreensível, na medida em que o
trabalho de criação representa a própria essência do setor. No entanto, é
imprescindível identificar e conferir o devido valor a outros elos menos
visíveis, mas essenciais para a viabilização de carreiras sustentáveis e, em
última instância, para a construção de um cenário cultural mais vigoroso no
país.
Entre os elos notadamente fracos
é possível citar a debilidade da infraestrutura cultural dos municípios
brasileiros, a baixa qualidade de parte expressiva dos serviços prestados por
fornecedores de toda sorte, a dificuldade para a formação de plateias, a
desarticulação entre cultura e educação e a falta de canais adequados para a
distribuição, em um país de dimensões continentais. Apenas um olhar sobre tais fatores e seu
enorme potencial de desestabilização é o bastante para que se compreenda o
descompasso da cena brasileira.
Sem dúvida, as questões elencadas
até aqui guardam enorme complexidade e demandam soluções imediatas do Poder Público,
da própria classe e da sociedade como um todo. Entretanto, é preciso perceber
que existe um aspecto ainda mais relevante e urgente nesse contexto. Um ponto
vem recebendo tratamento inadequado no Brasil, a despeito de sua incrível
capacidade de gerar impactos em toda a cadeia produtiva: a questão da capacitação.
Viajando por esses interiores, é possível constatar a ocorrência de certa letargia
motivada pela absoluta falta de conhecimentos nas diversas áreas do fazer
artístico-cultural. Existem lacunas impressionantes na formação de artistas e
técnicos, o que faz com que os resultados levados ao público tenham, muitas
vezes, níveis colegiais.
No entanto, é nas áreas-meio que
o problema se torna mais agudo. A carência de informações nos campos da
produção e da gestão é algo preocupante. Grande parte das vezes, as iniciativas
no mundo da cultura acontecem “na marra”, após longa peregrinação de seus
executores em busca de recursos, passando o pires entre os empresários locais e
recolhendo donativos classificados equivocadamente como patrocínios. O
desconhecimento dos canais de financiamento, a falta de noções de como elaborar
um projeto e a pouca habilidade para a captação são limites concretos a serem
transpostos.
O amadorismo, porém, não se restringe
aos procedimentos de busca dos recursos. A gestão dos projetos e do cotidiano
das instituições também ocorre, muitas vezes, de maneira precária. Na verdade, os
profissionais da cultura ainda não se apropriaram de uma série de ferramentas
essenciais do campo da administração, como o planejamento estratégico, a gestão
financeira, a logística e a gestão da qualidade, entre outras. O manejo
adequado dessas ferramentas de gestão poderia significar um grande salto de
qualidade para o meio, mas permanece como algo impensável para muitos daqueles
que nele atuam. Um bom exemplo disso é a dificuldade que muitos artistas,
produtores e gestores têm de trabalhar com planejamento, tanto de seus projetos
quanto de sua própria carreira. Metodologias de planejamento estratégico, por
exemplo, há muito presentes no ambiente empresarial, são praticamente estranhas
à área. Este fato talvez explique a paralisia e a falta de rumos que afeta a
vida de muitos grupos e entidades culturais brasileiros.
Talvez esteja aqui um dos grandes
desafios das instâncias culturais públicas no Brasil, seja no plano federal,
estadual ou municipal: formar gestores. Uma iniciativa de porte nesse sentido
foi implementada com sucesso pelo Ministério da Cultura do México há alguns
anos, mas permanece sem similar por aqui. Diante do despreparo que impera nos
bastidores da cultura brasileira, é imprescindível que o Poder Público tome
para si a responsabilidade por tal empreitada. As secretarias e fundações
estaduais e municipais, assim como o próprio Ministério precisam acordar para
esta necessidade premente. É importante que tenhamos profissionais tecnicamente
capacitados para buscar os recursos, geri-los de maneira eficaz e ordenar o
ambiente das organizações culturais, mas também devidamente sensibilizados para
reconhecer e valorizar a riqueza presente à sua volta. Precisamos de pessoas
aptas a desencadear pequenas revoluções em seu universo imediato, a captar,
processar e difundir informações para o benefício de suas comunidades.
No processo de formação de
gestores, outra premissa importante deve ser considerada: é necessário pensar a
cultura numa perspectiva sustentável, como forma de combater o vício da
eventualidade que impera entre nós. A vida dos artistas, grupos e instituições
culturais ainda é regida por ações de caráter efêmero e, quando muito, por
ciclos de trabalho anuais. A cultura no Brasil permanece limitada à dimensão do
evento, do transitório. Muito pouco se fala de planejamentos plurianuais, de
projetos de manutenção e de continuidade.
O próprio Ministério da Cultura demonstra
dificuldades para o estabelecimento de práticas que favoreçam a sustentabilidade.
Caminhando numa direção pouco razoável, trata os projetos de continuidade sem
nenhuma distinção em relação àqueles voltados à produção de eventos. Em 2009,
chegou ao ponto de lançar na rede um sistema para recebimento de projetos, o
SalicWeb, sem prever rubricas adequadas a propostas de manutenção. Este
problema vem sendo corrigido gradativamente pela equipe da Secretaria de
Fomento e Incentivo à Cultura, mas deixa evidente a incipiência da discussão do
tema nas esferas públicas.
Outro ponto que evidencia a falta
de debates sobre um tema tão relevante é a insistência do Ministério em negar a
aprovação de determinadas rubricas dos projetos sob a justificativa vaga de que
se tratam de “despesas de responsabilidade do proponente”. Este procedimento
obriga os artistas, grupos e entidades culturais a esgotarem suas reservas,
inclusive aquelas provenientes de vendas de produtos e ingressos, ao final de
cada ciclo anual. Os proponentes são pressionados a gastar com o projeto aprovado
todos os recursos captados de outras fontes, diga-se de passagem, a duras
penas, como se fosse pecado buscar alguma estabilidade financeira com a criação
de um fundo de reserva.
Instabilidade maior, impossível,
certo? Errado. A coisa pode ser ainda pior. O equívoco ganha proporções mais
sérias quando nos deparamos com a existência de mecanismos de incentivo que, a
pretexto de defesa do interesse público, impedem a comercialização de produtos
realizados com os recursos repassados aos proponentes. Ao proceder dessa maneira,
as secretarias de cultura condenam de vez os empreendedores a se tornarem
escravos de tais mecanismos. Aos artistas contemplados por essas leis é negado
o direito legítimo de buscar a consolidação de sua carreira por meio da venda
direta de seus produtos ao público. Naturalmente, é fundamental que os governos
estabeleçam regras que garantam a correta aplicação dos recursos e acessibilidade
àquilo que foi produzido por intermédio dos instrumentos de financiamento.
Entretanto, adotar procedimentos restritivos como esses, muitas vezes de forma
descuidada, é neutralizar a intenção do incentivo à cultura e tratar o setor
com um desrespeito que não encontra paralelos em outras áreas merecedoras de incentivos
governamentais. Será que os produtores agrícolas beneficiados, por exemplo,
aceitariam entregar sua produção gratuitamente à população e prosseguir na
dependência total do Governo? Isso seria justo e produtivo?
Situações como essas expõem, mais
uma vez, a fragilidade do elo capacitação. Por todo o país, é notável a
carência de gestores públicos aptos a lidar com as engrenagens burocráticas,
mas também capazes de avaliar previamente os impactos de suas decisões
administrativas sobre o meio. Infelizmente, grande parte dos cargos-chave em
nossas instâncias culturais públicas continua a ser ocupada por pessoas
estranhas ao metier ou sem nenhuma
experiência do outro lado do balcão. Isso sob os olhares resignados de uma
classe desmobilizada.
O tom crítico dessas linhas,
longe de se caracterizar como mais um manifesto ácido e pouco propositivo, visa
trazer para a roda alguns pontos de vista sobre temas importantes para o
universo cultural brasileiro.
A cultura é um direito
constitucional do cidadão e precisa ser tratada como tal. Além disso, é um
recurso econômico inesgotável, que pode render cada vez mais ao país. A consolidação
do setor passa necessariamente por uma atuação responsável dos governos, por
meio de investimentos na cadeia produtiva como um todo, e não apenas em seus
elos mais visíveis. Há que se pensar mais seriamente em instrumentos e
políticas que favoreçam a continuidade do trabalho de artistas, grupos e
entidades por todo o país, e não apenas a proposição de ações efêmeras. Nesse
sentido, é necessário buscar o rompimento de certas amarras burocráticas, de
forma a permitir o financiamento a planos plurianuais de manutenção de
entidades culturais de caráter relevante para a sociedade.
Entretanto, é na questão da
formação que precisamos apostar a maior parte das nossas fichas. As discussões
de políticas para a cultura ora em curso no Brasil somente resultarão em
avanços significativos quando houver, nos municípios, pessoas conectadas com o
mundo e, a partir de bases técnicas seguras, capacitadas para atuar pela
transformação da realidade à sua volta.
ROMULO AVELAR.
Administrador,
produtor e gestor cultural. Atuou em empresas como Fiat, MBR e Teatro Alterosa,
e na área pública, como Diretor de Promoção da Fundação Clóvis Salgado –
Palácio das Artes, de Belo Horizonte, e Presidente da Comissão Técnica de
Análise de Projetos da Lei Estadual de Incentivo à Cultura de Minas Gerais. Consultor
de diversos grupos e entidades culturais, entre eles o Grupo Galpão e a Casa do
Beco. Autor do livro “O Avesso da Cena: Notas sobre Produção e Gestão Cultural”.
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