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Os Estados Unidos do Prêmio Nobel da Paz Barak Obama empreendem uma guerra virtual contra a Rússia e preparam obstinadamente uma guerra real para ser travada em território ucraniano. Não importa a inviabilidade dessa aventura militar, do ponto de vista estratégico.
O objetivo não é controlar o território ucraniano e “salvá-lo para a democracia”, mas esgotar em combate o poderio russo mediante seu estrangulamento econômico e militar numa guerra convencional em terceiro país. É que nem os lunáticos neoconservadores instalados no Pentágono, no Departamento de Estado e no Conselho de Segurança Nacional proporiam um ataque direto à nação russa, dada sua condição de potência nuclear de primeira linha.
A estratégia central norte-americana é afirmar sua hegemonia mundial a partir da força. É-lhe intolerável a realidade de um mundo apolar ou multipolar em face da presença de um competidor nuclear como a Rússia e de uma potência econômica ascendente como a China, também ameaçadora, a médio prazo, no campo militar. Para os neoconservadores, a hora de agir é agora, antes que essas forças rivais criem raízes mais profundas. O pretexto ucraniano vem a calhar. Depois de derrubar um governo legítimo e colocar em seu lugar um bando de facínoras, o próximo passo é a incorporação da Ucrânia à OTAN, em aberto desafio à Rússia. Só com muito sangue frio Putin poderá contornar mais essa provocação no quintal da Rússia.
É muito fácil começar uma guerra de grandes proporções na terra dos outros, sobretudo quando se tem a ilusão de um poder assimétrico em relação ao adversário e mesmo quando não se tem certeza quanto aos efeitos. É que, uma vez instalado o caos que se segue a uma guerra, não basta ter imensa superioridade miliar para controlar suas consequências. Os Estados Unidos são peritos em começar guerras inacabadas: foi assim na Coreia, no Vietnã, no Iraque, no Afeganistão; mais recentemente insuflaram revoluções no norte da África, que resultaram em dramática carnificina e permanente instabilidade na Líbia e no Egito. Entretanto, quando se trata de conseguir a paz, os Estados Unidos lavam as mãos. Os outros é que cuidem do estrago que provocam, como no Haiti e no Iraque.
É muito fácil entender a estratégia dos chamados neoconservadores americanos que acabaram de colocar agora um representante na principal cadeira no Departamento de Defesa. Querem repetir o processo que levou à exaustão a antiga União Soviética. Dado que Estados Unidos e Rússia estão em virtual paridade nuclear, a solução é levar a Rússia à capitulação através de uma guerra convencional, não em território russo, que arriscaria uma guerra nuclear, mas no território de um terceiro país. Nada melhor, pois, que a Ucrânia.
O objetivo dos neoconservadores é tentar repetir uma estratégia que, embora tendo dado certo na liquidação da União Soviética, não liquidou o Estado russo que estava em seu coração. O Estado socialista desmoronou, mas a nação russa, mesmo ferida, continuou de pé. Putin tratou de recuperá-la por inteiro colocando-a na condição de um estorvo nuclear que limita a vontade de poder ilimitada de Washington. A intenção norte-americana de atacar o governo sírio esbarrou efetivamente no veto russo e chinês. Isso, claramente, expôs a impossibilidade prática do exercício de um poder hegemônico na era nuclear partilhada. Transformado num boneco operado pelos neoconservadores, Obama resolveu “estrangular” a Rússia com embargos econômicos.
Recordemos os passos que levaram à extinção da União Soviética a fim de examinarmos os paralelos atuais. Em meados dos anos 70, foi refundada em Washington por influência do então diretor da CIA, George Bush pai, a ONG denominada “Comitee on the present danger”, ou Comitê para o Perigo Presente (CPD). Tinha como principal objetivo estatutário “levar a União Soviética à rendição, se necessário por meios militares”. Do Comitê faziam parte 60 personalidades notáveis do círculo conservador norte-americano, sendo que o futuro Presidente Ronald Reagan filiou-se à ela pouco antes de eleger-se em 1979. Como Presidente, levou a posições de alto destaque no Departamento de Defesa, no Departamento de Estado e no Conselho de Segurança Nacional 33 integrantes do Comitê.
Em 1985, quando estive na Alemanha para cobrir a reunião dos Sete Grandes, andava por lá o chefe do Conselho de Segurança Nacional dos EUA, Richard Perle, membro do CPD, fazendo conferências sobre o conceito subjacente ao programa de escudo nuclear, então conhecido como Guerra nas Estrelas, que se baseava no princípio de “guerra nuclear protegida”. Perguntei aos alemães o que achavam daquilo, pois a guerra nuclear “protegida” no contexto de Guerra nas Estrelas implicava a proteção nuclear do território norte-americano, mas não do europeu. Os alemães com quem conversei estavam perplexos. Imagino que estejam perplexos de novo com a marcha forçada pela guerra em território da Ucrânia, que os expõe diretamente às forças militares russas convencionais em seu próprio território.
É importante assinalar que não se tratava apenas de retórica. Diretivas presidenciais de Reagan, na virada do primeiro para o segundo mandato, introduziram mudanças cruciais nos programas de computador que põem em posição de ataque os três sistemas estratégicos baseados em terra, mar e ar das forças nucleares norte-americanas. Através de vazamentos de imprensa, soube-se de mudanças fundamentais no SIOP (Single Integrated Operational Program, ou Programa Operacional Integrado Único), a parafernália eletrônica capaz de desencadear uma guerra nuclear contra a então União Soviética a partir do teatro europeu.
A principal alteração no SIOP, de acordo com os fragmentos de diretivas presidenciais secretas, recolhidos e reconstituídos por um cientista canadense, F. Knelman (em “America, God and the Bomb”), consistiu em recuar para oito minutos, pelo princípio do prêmio por resposta rápida, o início de um ataque nuclear total à União Soviética a partir do primeiro alarme. Não se tratava de uma questão acadêmica. Como um hipotético míssil soviético em cruzeiro levaria 36 minutos para mergulhar em território nacional norte-americano (trata-se de míssil disparado de terra: não se menciona a frota indetectável de submarinos nucleares, por expediente elusivo de convencimento), o programa Guerra nas Estrelas só se justifica se houver uma capacidade efetiva de interceptá-lo no meio da trajetória, isto é, no mínimo 18 minutos depois do disparo.
O mesmo tempo é o que levaria um míssil americano disparado de terra para alcançar o míssil hostil na estratosfera. Entretanto, seria necessário um sistema de detecção instantânea do início do ataque. Para qualquer efeito prático, não há possibilidade de alcançar o míssil antes que cruze o ponto médio da trajetória, a não ser de uma base em órbita. O programa Guerra nas Estrelas pretendia pôr bases em órbita, mas até lá seria necessário contar com a boa vontade dos estrategistas soviéticos para não atacarem primeiro. Por isso reduziram o tempo de resposta do SIOP a oito minutos, pelo que ficou limitado a um nível de redundância o processo de checagem para confirmar se um disparo captado na tela de controle eletrônico era um disparo real. Com isso ficamos todos expostos à possibilidade de uma guerra nuclear casual na medida em que o SIOP reagiria automaticamente a uma checagem errada sem tempo de consulta para resposta ao falso ataque do Presidente da República.
O primeiro passo para implementar Guerra nas Estrelas era ignorar o tratado SALT II, que vedava a construção de sistemas antibalísticos por parte de EUA e União Soviética. A lógica do SALT II, jamais aprovado pelo Senado norte-americano mas até então respeitado pelo Executivo, era simples: a dissuasão nuclear só se efetiva na base da autodestruição assegurada por quem iniciar uma guerra nuclear. Se um dos lados conseguir construir um sistema operacional que efetivamente proteja seu território de um contra-ataque nuclear, ele estará livre para desencadear um primeiro ataque sem medo de retaliação. Cientistas de todo mundo, inclusive americanos, questionaram as bases técnicas de Guerra nas Estrelas, mas Reagan, a fim de esgotar a União Soviética numa corrida tecnológica para construir seu próprio escudo, levou Gorbachev a uma posição insustentável por falta de condições econômicas e técnicas para isso.
Foi a combinação de pressão tecnológica, econômica e política norte-americana que levou a União Soviética à autodestruição. É este mesmo caminho que está sendo seguido agora para levar a Rússia à exaustão econômica e à rendição política. Não se trata de teoria conspiratória. Os norte-americanos, conscientes de sua superioridade militar e econômica, nunca escondem suas reais intenções. Seus movimentos são explícitos e claramente apresentados em documentos estratégicos públicos. Assim, eis como a intenção de eliminar qualquer possibilidade de “um novo rival” era colocada em 1992, imediatamente depois da derrota da União Soviética, pelo neoconservador Paul Wolfowitz, do CPD, então Subsecretário da Defesa, no Manual de Planejamento de Defesa:
“Nosso primeiro objetivo é prevenir a re-emergência de um novo rival, seja no território da antiga União Soviética seja em outro lugar, que coloque uma ameaça do tipo que foi colocado pela antiga União Soviética. Isso é uma consideração dominante sublinhando a nova estratégia de defesa regional e requer que previnamos qualquer tentativa de um poder hostil de dominar uma região cujos recursos poderiam, sob controle consolidado, ser suficiente para gerar poder global.”
Essa linha estratégica está sendo trilhada religiosamente no sentido de evitar que a Rússia seja um embaraço para a hegemonia militar absoluta norte-americana, contornando a realidade elidida da virtual paridade nuclear. O SALT II foi revogado, unilateralmente, pelos EUA. Eles se recusam, por outro lado, a fazer um tratado de desmilitarização do espaço. Assim, é necessário recuar à geopolítica anterior à Guerra Fria para entender os movimentos americanos. De fato, há uma década e meia a possibilidade real de uma guerra na Ucrânia está sendo preparada metodicamente pela OTAN, que agora mesmo acaba de decidir aumentar o comprometimento de orçamento militar de seus membros (2% do PIB) por pressão americana. Desde 1999 que a Organização avança para o Leste. Naquele ano, incluiu a República Checa, a Hungria e a Polônia. Uma segunda expansão se deu em 2004, incluindo Bulgária, Estônia, Latvia, Lituânia, România, Eslováquia e Eslovênia. Com isso, quase metade dos países atualmente membros da OTAN foram incorporados, rumo ao Leste, depois do fim da URSS. Paralelamente expandia-se para Leste a União Europeia, cujo último movimento seria a tentativa de tomada de posse da Ucrânia. E só não houve a efetiva incorporação da Ucrânia e da Geórgia, formalmente sinalizada na cúpula de Bucareste em 2008, porque dessa vez Putin reagiu pela força, pois se tratava, a seu ver, de colocar uma fortaleza militar hostil no quintal de seu país.
O cerco militar à Rússia segue uma tríplice estratégia: alargamento da OTAN, expansão da União Europeia e promoção da “democracia”, obviamente desconsiderando o risco de uma guerra aberta. Diante do baile estratégico que foi a absorção da Crimeia pela Rússia, com apoio esmagador da população da península, os Estados Unidos se movem na direção da guerra através inicialmente de sanções econômicas, a partir de uma posição forte, recém-conquistada, no campo da energia. Contudo, não nos iludamos. Uma guerra convencional seria de alto interesse norte-americano, desde que ela pudesse esgotar a capacidade militar e econômica russa sem o risco de escalar para uma guerra nuclear. É com essa possibilidade que os neoconservadores contam para iniciar a guerra.
Sabemos, por outro lado, pela experiência histórica, que os Estados Unidos não se preocupam muito em como acabar com guerras. Para eles trata-se de um jogo estratégico para assegurar a afirmação da hegemonia mundial. Por isso, no momento, a única força capaz de parar a máquina de guerra americana é o povo dos Estados Unidos, tocado pela consciência de solidariedade com os bilhões de inocentes do mundo, e eles próprios, que sofreriam as consequência de uma guerra proto-nuclear. É necessário que os inocentes rompam com a passividade, falem e votem. De fato, os Estados Unidos podem esgotar as forças econômicas e militares dos russos numa guerra em território de terceiro. Mas o que acontece com uma potência derrotada, humilhada, sitiada, e não obstante de posse de um imenso arsenal nuclear?
Aos que consideram essa análise exagerada peço que leiam “Foreign Affairs”, uma das mais prestigiosas revistas do estabelecimento norte-americano, em detalhados e esclarecedores artigos sobre a “crise” na Ucrânia, na edição de setembro último. Um deles diz claramente: “a crise na Ucrânia é nossa culpa”, referindo-se aos Estados Unidos. No corpo da matéria vem a narrativa da marcha da OTAN para Leste, em confronto direto com entendimentos anteriores com os russos e sob constantes protestos destes. Ali também se encontra o relato do caos planejado pelo Departamento de Estado e ONGs patrocinadas pelo Governo norte-americano para derrubar o governo legítimo pró-russo de Kiev, colocando em seu lugar um governo que tem pelo menos quatro membros proeminentes neofacistas.
Ainda em termos de medidas provocativas contra a Rússia, destaca-se a monstruosa derrubada do avião comercial MH 17 sobre o Leste da Ucrânia, um típico atentado terrorista que os Estados Unidos pretenderam atribuir a forças pró-russas. Falso. O avião, de que já não se fala mais muito sintomaticamente, foi derrubado por forças do governo de Kiev, conforme denunciou o presidente russo Vladmir Putin, numa reunião internacional, com base em investigações independentes, e com praticamente nula repercussão no Ocidente.
O ânimo dos neoconservadores norte-americanos para o confronto global com os russos, a partir da economia, ganhou força com a revolução energética representada pela exploração de gás de xisto nos Estados Unidos através de uma das mais criminosas tecnologias do ponto de vista ambiental, o fracting. O sucesso comercial do empreendimento, com rápida expansão de produção de gás e petróleo de xisto, possibilitou atacar o principal pilar da economia russa, grande produtora e exportadora de petróleo e gás, e, simultaneamente, “tranquilizar” os europeus quanto à possibilidade de cessação de suprimento de gás russo à Europa, o qual seria substituído pelo norte-americano.
Não se sabe se os sauditas entraram nesse jogo por razões geopolíticas, evitando reduzir a produção de petróleo para prejudicar os russos, ou por suas próprias razões de tentar inviabilizar economicamente a produção de hidrocarbonetos por fracting. O fato é que também grandes empresas norte-americanas, que investiram pesadamente no petróleo e gás de xisto, estão tendo pesados prejuízos com a redução do preço do petróleo, que agrada mesmo só ao consumidor. Por outro lado, as promessas supostamente infinitas do fracting se revelaram surpreendentemente limitadas nos últimos meses: em Monterey, na Califórnia, reservas de petróleo de xisto antes avaliadas em 13,7 bilhões de barris foram reavaliadas oficialmente para 600 milhões, ou 96% menos. Além disso, a opinião pública norte-americana começa a ser mover contra o fracting: segundo uma pesquisa de opinião recente, em 2008, 48% a 38% dos norte-americanos apoiavam essa tecnologia; em novembro último, 47% a 41% se manifestaram contra. Isso certamente reflete a comprovação inequívoca da destruição ambiental, sobretudo de aquíferos, que essa tecnologia suja provoca no meio ambiente de forma irreversível.
Enquanto o mercado de hidrocarbonetos não sofrer nova reviravolta, refletindo o fracasso da Califórnia, a Rússia, sem dúvida, será penalizada pela estratégia norte-americana de seu estrangulamento econômico. Putin, com sua frieza característica, ponderou que a Rússia é um país autossuficiente e, de qualquer modo, tem meios de retaliação – imaginando certamente um embargo na exportação de gás para a Europa. Uma importante ficha para a Rússia é certamente a China, que já lhe garantiu um contrato de fornecimento de gás por 20 anos no montante de 400 bilhões de dólares, e que tem se alinhado com ela em questões geopolíticas, como no caso da Síria. Contudo, estamos claramente diante de uma escalada.
O novo passo estimulado pelos EUA foi a recente decisão do Parlamento da Ucrânia de renegar sua neutralidade. Note-se que o próprio Kissinger, num artigo recente, assinalou que a solução definitiva para a crise ucraniana, de uma forma aceitável pela Rússia, seria transformar a Ucrânia num país neutro entre a União Europeia/OTAN e a Rússia, como aconteceu com a Finlândia na Guerra Fria. Contudo, Kissinger é um velho conservador lúcido, não um neoconservador alucinado. Os EUA, sob controle destes, indicam que não aceitarão perder mais essa oportunidade de guerra. Tudo indica que forçarão a Rússia a aceitá-la. Com a integração da Ucrânia na OTAN, numa iniciativa indiferente aos milhões de russos e russófilos no Leste do país, a aliança militar ocidental estaria nas costas da Rússia, o que significa ameaça direta a seu território. O mínimo que a Rússia buscaria seria retalhar a Ucrânia com apoio local, o que de uma certa forma foi ensaiado na Crimeia. Seria então uma guerra global em território ucraniano?
E nós, que temos a ver com tudo isso? Os inocentes entre nós acham que os neoconservadores norte-americanos veem com muita naturalidade nossa aproximação, via BRICS, com sua arqui-inimiga Rússia. Acreditam que a gravação das conversas da Presidenta foi mero divertimento. Acham que as tentativas de desestabilização do legítimo Governo brasileiro atual, assim como o reeleito, são fenômenos exclusivamente internos, ou resultantes dos impulsos éticos de alguns tribunais. Pelo fato de termos passado à margem de guerras, e estarmos no centro de um continente peculiarmente pacífico, nos acostumamos a não pensar geopoliticamente – mesmo porque, na era nuclear, a geopolítica devia estar definitivamente fora de moda. Contudo, querendo ou não, estamos no jogo. Se o preço do petróleo cair abaixo de 40 dólares o barril, a exploração do pré-sal estará inviabilizada. Se os Estados Unidos fizeram a guerra contra a Rússia em território ucraniano, teremos de fazer difíceis escolhas.
J. Carlos de Assis - Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB.
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