A falta de estrutura marca o sistema prisional do Brasil – Foto: Glaucio Dettmar/ Agência CNJ |
da Ponte Jornalismo.
APENAS 7% DAS UNIDADES PRISIONAIS
NO BRASIL TÊM DESTINAÇÃO EXCLUSIVA PARA ABRIGAR MULHERES; OUTROS 17%
SÃO ESTABELECIMENTOS ‘MISTOS’, PARA HOMENS E MULHERES.
Apesar
de corresponder a 6,4% da população carcerária no país, as
mulheres têm se tornando mais numerosas entre as pessoas detidas. Segundo o
Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), a
população carcerária feminina aumentou 567,4%, de 2000 ade 2014, enquanto a
média de crescimento masculino, no mesmo período, foi de 220,20%.
Com 37.380
mulheres presas, o Brasil tem a quinta maior população carcerária feminina
do mundo, ficando atrás de Estados Unidos (205.400 presas), China (103.766),
Rússia (53.304) e Tailândia (44.751), seguindo uma tendência mundial de
encarceramento em massa de mulheres, detidas principalmente sob acusação de
tráfico de drogas. De acordo com o relatório World Female Imprisonment List,
produzido pela Universidade de Londres, existem mais de 700 mil mulheres presas
no mundo hoje.
Penitenciárias
A
separação de estabelecimentos prisionais em masculinos e femininos no Brasil é
prevista pela Lei de Execução Penal (lei 7.210/84). Contudo, ainda é possível
encontrar presídios mistos espalhados no país.
Segundo o Infopen – Mulheres, cerca de 75% (1070) das 1.420
unidades prisionais brasileiras eram voltadas somente para homens; 17% (239)
eram unidades mistas (com uma sala ou ala específica para mulheres em
estabelecimento anteriormente masculino) e apenas 7% (103) eram destinadas exclusivamente a mulheres.
O levantamento não obteve informações sobre 1% (8) das unidades prisionais.
“Não há política pública específica pra tratar dessas mulheres
em presídios mistos, que muitas vezes acabam funcionando como simples extensão
dos masculinos. Relatos de violência sexual nesses ambientes são comuns”,
avalia Bruna
Angotti, advogada e coordenadora do Núcleo de Pesquisas do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).
MARCADORES
DE GÊNERO
Para Angotti, a mulher detida é vulnerabilizada desde o momento
do flagrante até a condenação definitiva.“Para
elas, a tensão sexual é um adicional, está sempre presente no ar. No limite, o
estupro é sempre uma ameaça.”
Em casos de flagrante, mulheres devem ser acompanhadas até
a delegacia por policiais mulheres – regra que, segundo ela, não costuma ser
respeitada. “É
comum mulher ser levada no camburão por homens. Imagina você, sozinha, num
carro com cinco outros homens, sendo levada para outro ambiente dominado por
homens. Muitas mulheres ter contato com outras mulheres só na penitenciária”,
afirma a pesquisadora.
Andrelina conheceu o cárcere a primeira vez aos 14 anos, quando
fugiu de casa e foi morar na rua. No total, passou pela antiga Febem 12 vezes e
chegou a ser detida três vezes quando era maior de idade. Segundo ela, a fila
para o presídio feminino era “mínima” e composta majoritariamente por mães,
irmãs e filhos. “Uma
faxineira da prisão falava ‘se a condenação chegou, o amor acabou’. Marido
quase não visita, só vai ver quando a mulher ainda está na provisória, quando
acha que ela vai sair. Quando a condenação sai, não aparece mais”,
conta.
Após
cumprir a última pena, há vinte anos, Andrelina fundou o grupo “Mães do
Cárcere”, na Baixada Santista, ONG que acompanha mulheres presas e familiares
de detentos, fornece orientações e denuncia abusos de poder.
Ao conversar com mulheres cujos familiares estão detidos,
Andrelina sente que há um receio por parte delas de serem julgadas. “Muitas vezes, essas mulheres têm medo
de serem vistas pela comunidade e pela família como traidora ou vulgar. É
difícil”.
Em sua visão, ainda há um preconceito sobre a mulher que muitas
vezes a faz acompanhar o marido preso mesmo a contra-gosto. “A mulher não abandona o homem. Ela
não pode faltar na visita, se não o homem já pensa que ela está traindo”, diz a
presidenta da ONG. A ativista vê uma diferença no comportamento de mulheres e
homens detidos. “A gente ainda não tem essa voz pra falar que o marido tem que
ir lá ver a gente. Com o homem não tem essa. Ele manda recado por amigo, mãe e
família”, completa.
A antropóloga
Natália Lago ressalta a importância de pensar as
mulheres não só nos presídios femininos. Segundo ela, a primeira experiência de
muitas detidas com o cárcere não ocorreu com a própria detenção, mas antes, a
partir de pais, irmãos, filhos e esposos.
“Há muita mulher nos presídios em circulação, abastecendo as
prisões com roupas, alimentos e outros produtos”. Além
da infra-estrutura material, ela ressalta o trabalho afetivo feito pelas
mulheres de acompanhar os familires detidos. “O papel de cuidar construído para a
mulher continua nas prisões”, afirma.
As visitas fazem uma diferença importante na experiência dessas
mulheres, não só pelo impacto psicológico e emocional, mas também pelo acesso a
produtos não oferecidos pelo presídio. Essa é a avaliação de irmã Margaret Gaffney,
integrante da Pastoral
Carcerária de São Paulo, que visita presídios femininos da
capital paulista semanalmente.
“Não receber visitas é ficar sem o jumbo [pacote com produtos de
limpeza, vestuário e alimentação enviados pelas famílias]. O que o presídio
manda costuma não ser suficiente e as famílias é que dão essa assistência. Não
é só absorvente”, diz Gaffney.
Outra
situação se refere às visitas íntimas. Tanto na masculina como na feminina, é
preciso solicitar autorização e apresentar documentos que comprovem a relação
entre o(a) preso(a) e o(a) visitante. Enquanto as visitas íntimas para homens
acontecia já na década de 1930, para mulheres isso foi reconhecido enquanto
direito apenas em 1999.
Para Bruna Angotti, o cárcere não afeta só o direito de ir e
vir, mas uma perda de autonomia e de outros direitos como o reprodutivo: “É a leitura de que o corpo feminio
não é passivo de desejo e subjetividade. A prisão está ali para aniquilar
a potência feminina enquanto potência humana, inclusive a sexual”.
Um problema se refere à falta de padronização sobre as regras
para as visitas íntimas nos presídios femininos. “Como não há uma padronização, cada
lugar faz de um jeito. Em alguns presídios só a visita é mensal e outros que
exigem horário marcado”, diz Bruna Angotti.
Na avaliação de Bruno
Shimizu, defensor do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública de
São Paulo, há uma maior flexibilização da aplicação dessas
regras nos presídios masculinos: “Se
faz mais vista grossa com eles. Nas femininas, a fiscalização é seguida mais à
risca. Já vi caso de uma detenta que recebeu falta grave por ter engravidado na
prisão”, relata.
Em
2013, Roberta* permaneceu seis meses detida em regime fechado no Centro de
Progressão Penitenciária de Franco da Rocha, na região metropolitana de São
Paulo. Ela conta que, quando maridos iam visitar as esposas, as outras detidas
saíam da cela e deixavam o casal a sós.
“Algum
ruído já era entendido como desrespeito”, relata. Segundo ela, em situações
como essa, a detida costumava ser encaminhada ao setor de disciplina e podia
receber uma advertência ou até ser remanejada de cela. “É complicado porque tem
um rodízio para dormir nas camas. Se mudar de cela, ela entra na fila de novo e
espera mais tempo dormindo no chão”, conta Roberta.
A
visita íntima só foi regulamentada para mulheres detidas em 1999. Para casais
homoafetivos só em 2011, após a publicação de resolução pelo Conselho Nacional
de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), do Ministério da Justiça. A
medida revogou a Resolução número 01/1999, que omitia os relacionamentos
homoafetivos nas recomendações feitas sobre visitas íntimas.
Segundo Bruna
Angotti, autora do livro “Entre as Leis da Ciência, do Estado e de Deus – o
surgimento dos presídios no Brasil”, nas décadas de 1930 e 1940
eram comuns prisões sob acusações como vadiagem, escândalo e mendicância. No
estado de São Paulo, em 1943, o “escândalo” foi o único “crime” em que o número
de mulher (60) é superior ao de homens (48).
“Há um modelo de mulher a ser seguido e aquelas consideradas
‘desviantes’ são retiradas de circulação”. A
pesquisadora vê uma semelhança entre as “bêbadas e escandalosas dos anos 40” e as
mulheres detidas sob acusação de tráfico hoje. “Prender é definir quais
comportamentos são aceitos na sociedade. Se restitui na cadeia o que é ser
mulher e o dever ser feminino”.
Para ela, presídios femininos costumam trazer um ambiente
infantilizado, com paredes e acessórios cor-de-rosa, o que não se vê nos
masculinos. “É um
ambiente pensado para docilizar a mulher”, avalia.
Em sua avaliação, o sistema carcerário reproduz o sexismo
presente na sociedade extramuro. “Se
a presa é mãe, é comum a pergunta ‘mas ela não pensou nos filhos antes de
cometer o crime?` A mulher é julgada não só pelo crime que cometeu, mas também
pelos papéis que foram socialmente atribuídos a ela”, afirma.
“Se a sociedade é machista, racista e homofóbica,o sistema de
Justiça não é diferente. Produzimos diferenças e hierarquias o tempo todo aqui
fora e nos presídios isso vale também. A prisão está no mundo”, diz a
antropóloga Natália Lago.
* nome
fictício criado para preservar a identidade da vítima.
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