quarta-feira, 20 de março de 2019

O suicídio e a farda: o silencioso sofrimento dos policiais no Brasil.


Os policiais brasileiros estão deprimidos e cometendo suicídio. A situação vem sendo objeto de estudo de pesquisadores e de protesto por policiais diante da falta de política de prevenção e de dados sobre a questão. A Sputnik Brasil ouviu cientistas e policiais em três estados brasileiros sobre o contexto desse cenário trágico.
Alexandre Félix Campos decidiu se tornar policial civil em São Paulo, pois sonhava, como muitos jovens policiais, ajudar a proteger a população. Passados 15 anos de uma carreira promissora como investigador, ele começou a sentir o fardo da profissão. O policial passou a ter crises de dores crônicas, ansiedade e depressão. Queixando-se da falta de apoio da instituição, começou a se tratar. O tratamento já dura sete anos e hoje Alexandre denuncia a falta de cuidado psicológico com os policiais e a condição de "subcidadania" à qual os agentes de segurança estão submetidos.
'Eu não aceitava ser fraco'
"Nos últimos 10 anos, eu tive, assim próximo — pessoas do meu convívio, amigos, colegas de trabalho — eu tive cinco casos [de suicídio]. Cinco casos de amigos meus, pessoas com quem eu trabalhava, pessoas que estavam do meu lado. São cinco casos. Mais aquele caso que eu te falei de um escrivão que morreu alcoolizado nas ruas porque […] inclusive, morreu na rua mesmo. Ele saiu bêbado e morreu na rua, encostou em um muro lá e morreu. Então são seis, né? Na verdade, eu considero seis, porque esse cara também se suicidou. Ele foi se matando aos poucos. Sempre tem", lembra o policial Alexandre, taciturno, em entrevista à Sputnik Brasil.
Alexandre ainda esclarece que, com exceção deste caso, que considera o sexto caso de suicídio que viu entre colegas, todos os outros tiraram a própria vida usando arma de fogo.
Hoje, no estado de São Paulo, morrem mais policiais devido a suicídio do que em confrontos nas ruas. Entre 2017 e 2018, foram 71 suicídios nas Polícias Civil e Militar paulistas, enquanto nove policiais morreram em confronto nas ruas. 
O policial relata que o trabalho na polícia lhe acarretou uma série de problemas de saúde, pessoais e psicológicos. Ele conta que a dedicação total nos primeiros 15 anos como policial fez com que ele se afastasse da família e com que seu casamento acabasse. Da mesma forma, Alexandre passou a sentir dores crônicas em decorrência do estresse da profissão.  "Eu, por exemplo, não fiz uso excessivo do álcool, nem de nenhuma outra droga ilícita. No entanto, eu me viciei em analgésico, porque eu tinha tantas dores, passava tanto mal […] e eu tomava um monte de analgésico para poder suportar aquilo", lembra.
A aura criada em torno da profissão e da instituição, além da identidade assumida como policial, ele explica, retardou sua busca por ajuda. "Eu não queria, eu não podia, eu não aceitava ser fraco. Assim, po***, o cara tem 30 anos de polícia, eu tenho só 15, estou na metade do caminho, como assim?", explica o policial, mostrando que se comparava com colegas há mais tempo na profissão.
O que ele mais lamenta desse período é que, quando não havia mais como resistir à necessidade de pedir ajuda, não encontrou o apoio que necessitava. "Logo depois, eu adoeci. E no momento em que eu não consegui mais disfarçar que eu estava doente e que eu precisava me cuidar, eu passei a ser tratado como um problema. Então não é só a sensação, mas a própria realidade é muito dura", recorda o agente de segurança paulista.
"Um policial que chega e fala 'olha, eu tenho um problema psicológico', esse cara vai ser tratado como um problema. E todo mundo vai querer se afastar dele. É isso que acontece comigo e com outras pessoas", assinala Alexandre.
Esse quadro de desamparo é descrito pelos pesquisadores como um dos fatores de risco principais para o adoecimento psíquico e o suicídio entre os policiais brasileiros.
A pesquisadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Dayse Miranda, é uma das principais especialistas na questão no Brasil. Coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção do Laboratório de Análise da Violência da UERJ, ela coleciona artigos sobre a questão, além de ser autora do livro "Por que os policiais se matam".
Miranda, em entrevista à Sputnik Brasil, aponta três fatores importantes de suas pesquisas sobre os motivos e características que levam os policiais ao suicídio. Segundo ela, as pesquisas mostram que ser do sexo masculino e ter acesso a uma arma de fogo são fatores que podem estar ligados ao suicídio entre policiais. Além disso, a pesquisadora destaca também a ausência de políticas para lidar com os profissionais adoecidos mentalmente, que, mesmo em tratamento, continuam com armas ao alcance.
"Não existe, pelo menos falando das instituições que eu estudei aqui no Brasil, com exceção de São Paulo, uma política definida do acautelamento do uso da arma de fogo. Ou seja, policiais, que estão adoecidos, têm acesso à arma de fogo", aponta.
A pesquisadora explica que, no caso do Rio de Janeiro, em particular, não há um regulamento para essa situação. E isso se daria porque muitos policiais fazem bicos fora da corporação para complementar renda. Ficar sem a arma atrapalharia funções paralelas.
"A terceira variável que é importante, além do acesso, é também como que essas organizações policiais lidam com esse tema. Elas não têm uma política de humanização, de lidar com esse profissional. Então, normalmente o policial é visto como um profissional que precisa dar resultados, precisa atender a demanda da sociedade, independentemente da sua condição de saúde emocional e mental", aponta Miranda.
O estresse da profissão, segundo as pesquisas de Dayse Miranda, não seria o maior problema, e sim a falta de mecanismos para coibir o adoecimento dos policiais. "O risco não é um problema para o policial. O que é um problema para o policial é a falta de cuidado com ele. Isso eu vi em todas as instituições, não só no Brasil como também nos Estados Unidos e na Inglaterra", diz a pesquisadora da UERJ.
O ambiente de desconfiança e insegurança das instituições policiais, somado à falta de reconhecimento e de acolhimento com os agentes, cria uma situação indesejada de vulnerabilidade para os policiais que exige uma política para saúde mental dos profissionais.
A subcidadania e a contradição na narrativa policial
"Tem uma coisa que me irrita profundamente desde sempre. Já tive várias discussões sobre isso. Porque aquelas pessoas que querem te elogiar, elas te dizem assim: 'admiro muito seu trabalho, porque você é extremamente importante, porque você arrisca sua própria vida para proteger a minha'. Eu falei: 'eu não, não é bem por aí'.
"Quero protegê-los, sim, o meu trabalho é protegê-los, sim, mas eu preciso também me proteger, porque eu também tenho mãe. Minha mãe também chora se eu morrer. Eu tenho filhos, meus filhos vão sentir minha falta se eu morrer", reclama Alexandre.
"A gente lida diretamente com a expressão mais fria, mais dura da humanidade. A gente vai lidar com inquérito para investigar pedofilia. Poxa, eu tenho filhos, cara! Sabe!? Você vai ver imagens de uma criança sendo violentada. Isso não é fácil", acrescenta.

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